5
Caminhávamos pelas ruas de Cupertino e a mamã relatava-nos as façanhas incríveis que o papá realizava na guerra: os costumes bárbaros dos inimigos, a fertilidade das terras de África que ele tinha ido conquistar, os novos lugares que iria ver e que, no regresso, nos descreveria. Como sempre, quando os olhos lhe começavam a marejar deixava cair algumas lágrimas durante alguns minutos. Logo a seguir, mais confortada, procurava concentrar-se sobre argumentos frívolos e fingia-se indiferente.
– E também voa? Andará nos aviões que nos passam sobre a cabeça? – perguntou Angelina.
A mamã fechou os olhos e suspirou. Parou para compor o vestido, embora não estivesse amarrotado. Ajeitou os cabelos e, em seguida, fixou-nos às duas nos olhos. Primeiro a mim, porque era a mais velha, depois a Angelina. Perceberia mais tarde, no decurso da vida, que ela recorria à fantasia quando a realidade era demasiado dura para relatar, quando a escuridão envolvia como um manto negro as paredes de casa, a esperança nos dias futuros, cada nova alvorada. Era assim que faziam todas as mulheres da aldeia. Os segredos e as pequenas mentiras das mulheres passavam de um ouvido ao outro, palrando e deformando-se. Era desta forma que salvavam os nossos sonhos de crianças.
– Angeli’, sabes o que faz o vento quando estamos dentro de um avião? – começou a contar, como se conhecesse mesmo os aviões. – O vento bate-nos na cara cerradamente, como as gotículas de água perto de um riacho. A terra parece uma colcha colorida e os campos de Cupertino lenços de fantasia. As casas, pontinhos minúsculos…
Falava e gesticulava rápido e de modo intenso. Em seguida, aos suspiros e às palavras, juntou novamente as lágrimas. Um choro abafado. Aquelas palavras quentes, familiares, formavam um universo simples, reconhecível, habitável para nós, crianças, criado propositadamente para nós.
Depois, como se nada fosse, começou a enumerar aquilo que via nas bancas do mercado:
– Isto é a salada, estas são as hortaliças, este é o pão.
Uma respiração novamente profunda e tranquila fazia-lhe vibrar o peito. A realidade regressava e era brutal somente para ela.
Contou as moedas no bolso cosido dentro da saia.
– Uma lira, duas liras, três liras – enumerava devagarinho.
Se Angelina a interrompia, zangava-se. Mexia no cabelo, rebentava. Compunha o vestido e recomeçava a contar.
Eu sabia contar bem – essa era talvez a minha qualidade –, então, eu tocava-lhe na mão, obrigava-a a cerrar o punho com as moedas dentro. Depois fazia-a abrir a palma da mão e contava juntamente com ela. A mamã fitava-me com olhos sonhadores. Queria ainda acreditar que a realidade e o sonho pudessem verdadeiramente misturar-se, como nos seus relatos, trocar de vez como numa mão de cartas.
– Uma lira, duas liras, três liras – contava juntamente com ela.
– Uma lira, duas liras, três liras…
Meu Deus, como era bela. Enquanto fixava as moedas, tinha um ar contemplativo, concentrado num cálculo que lhe afastava para um lugar distante o olhar. As pupilas eram escuras. Um ou outro fio prateado embranqueciam-lhe os cabelos.
Comprou sardinhas a uma mulher corpulenta e azeda, com um nariz portentoso. Os olhos, muito belos, de um azul-celeste, brilhavam como dois rebentos no meio da terra árida.
Olhou de esguelha para a mamã, mas ela não fez caso disso. A peixeira usava um vestido castanho-acinzentado e uma camisa branca cujas mangas sujas de sangue haviam adquirido uma estranha coloração alaranjada. Pegou nas sardinhas e pôs-se a esquadrinhar a mamã de braços cruzados, com um ar quase de desafio. Depois, demorou-se com o olhar sobre o decote, do qual sobressaíam dois abundantes seios. Deslocou o peso do seu corpo gordo de uma perna para a outra, antes de retirar o peixe da balança e de o depositar nas mãos da nossa mãe.
Voltámos com passo apressado para casa, cumprimentando com rápidos acenos as mulheres que se cruzavam connosco na rua. A comadre Nunzia recolhia a roupa lavada, estreitando entre os braços lençóis, guardanapos, aventais, lenços e cuecas de todos os tamanhos enquanto um volumoso maço de chaves lhe tilintava de lado, na cintura. A Cimmiruta, que passava os dias numa cadeira empalhada à frente de sua casa, de verão e inverno, desafiando as intempéries e o vento mistral, mastigava tremoços ou grão seco e sentava-se com a cadeira virada ao contrário, pondo os braços sobre as costas desta, como se estivesse na primeira fila do espetáculo da rua que se desenrolava diante dela.
À noite, comemos à mesa as sardinhas. Não gostava delas, cheiravam a erva podre, mas fingi que gostava, por amor a ela.
Estava taciturna e parecia triste. Angelina não parava de falar. Revolvia a comida no prato porque também não gostava de sardinhas.
– Estás bem, mamã? – perguntei-lhe.
Nesse momento, chegou a avó Assunta. Trazia uma carta do papá da frente. Tinham-na entregado enquanto estávamos no mercado.
– Lê, lê – pedia à nossa mãe, contando que a carta tinha sido trazida por um novo carteiro, com uma barbicha à moda de D’Annunzio5.
A mamã, porém, não a ouvia, concentrada na ideia de que não sabia ler. Os olhos brilhavam-lhe como duas pequenas escamas de peixe.
– És a mais crescida, Tere’ – disse-me –, podes ser tu a ler.
A avó Assunta fixou-me como se me quisesse auscultar a alma. «Não gaguejes, Tere’, lê bem», advertiam-me os seus olhos pequenos e claros.
Agarrei com força a carta nas mãos e levei-a para perto da janela. O sol desaparecia dos telhados das casas com um raio em forma de cruz por detrás da torre do relógio. A igreja ficou por alguns instantes de uma bela cor alaranjada, na última luz do poente.
– Lê bem, Tere’. Devagarinho.
Aquela palavra penetrava na minha cabeça como a lâmina de uma faca. Devagarinho. E respirava. Devagarinho. E a voz estrangulava-se-me na garganta. Eu queria que tudo fluísse de modo veloz. Que as palavras não tropeçassem nos meus dentes, como se não encontrassem o fôlego para saírem. Gostaria de me tornar invisível. Era isso que queria. Queria ir ter com a makara para lhe pedir que me pusesse esse feitiço.
A mamã enervou-se e estreitou-me a carta nas mãos. Angelina irritou-se e cruzou os braços no peito:
– Ela não consegue, tem medo. Sabe que não é boa a falar – sentenciou.
A voz saiu-me num tom perverso. Ela tinha a língua solta e eu não. Era bonita e eu não. Estendi a mão, impulsionada por uma força melancólica e por uma raiva que naquele momento me fazia odiar a minha irmã.
A carta principiava deste modo: «Minha cara mulher, eu estou bem. Espero que tu também», e terminava assim: «Dá um beijo às meninas. Regresso em breve. Marido e pai devoto.»
A voz titubeou um pouco, mas depois ficou segura e forte, como se uma força externa a prendesse a cada letra. A avó Assunta saiu com o lenço bordado sobre os olhos e a mamã arrumou tudo à pressa. Estava desejosa de se retirar para o quarto e refletir sobre as palavras do nosso papá com a carta nas suas mãos.
*
Eu não conseguia dormir. Observava Angelina que respirava de modo calmo e regular. Estendida sobre a minha cama, mas, como sempre, deitada em posição invertida. Os seus pés magros chegavam-me até ao rosto. Sobre a almofada, uma cabeleira de caracóis negros caía até ao chão.
Levantei-me lentamente para ir até ao quarto da nossa mãe. Não tive coragem para entrar. Espiei-a por uma fresta no umbral da porta. A mamã estava sentada numa cadeira encostada à mesa de cabeceira. Quatro velas dispostas nos cantos da cama criavam halos indefinidos, projetavam sobre os muros gigantes filiformes e assustadores.
Estava nua, imóvel como uma estátua de cera. O efeito do seu corpo atingiu-me com a potência de uma bofetada. Era ainda bela, mas o tempo, mago trapaceiro, havia dado início ao seu injusto desgaste. As mãos, estendidas ao lado das ancas, eram rugosas e cheias de bolhas. Os seus seios tinham-se transformado no peito acolhedor de uma matrona gorda. Ouvi-a respirar profundamente umas dez vezes, sustendo o ar nos pulmões para em seguida expirá-lo muito lentamente. Quando se levantou vi-lhe as coxas ainda bem delineadas, o ventre levemente amolecido, o sexo escuro. Voltou-se para o espelho e observou-se. As nádegas brancas destacavam-se na meia-luz do quarto como duas luas claras. Os dedos fechavam-se em forma de caracol, como que a agarrar algo. Olhava para baixo e observava o punho como se faz quando tentamos apanhar uma mosca com as mãos. Seguramo-la com o punho bem cerrado e depois abrimos lentamente a mão, regozijando-nos por a ter capturado. A mamã, porém, observava as mãos enrugadas com a desilusão estampada no rosto.
Sentia-me tão culpada, e ao mesmo tempo tão inocente que, se pudesse, tê-la-ia abraçado com força. Teríamos ficado assim, mãe e filha, a embalarmo-nos, como dois amantes debaixo de um céu de bombas.
Regressei para a cama com um nó na garganta e observei Angelina. Lá fora, o vento uivava com força. A avó Assunta dizia sempre que em noites destas o vento imitava o demónio e que seria melhor que todos evitassem sair. Concentrei-me naquele rumor, sentindo-me em segurança no interior da casa aquecida. Angelina dormia tranquila. As narinas abriam-se e fechavam-se devagar. Nutria um sentimento estranho pela minha irmã. Por vezes era amor, outras, ódio. Eu crescia e ao mesmo tempo crescia comigo também aquela espécie de ódio, semelhante a um substrato de alcatrão, sedimentado precisamente no fundo do meu coração. Tal como o amor, tinha mil razões e nenhuma para existir, e quando procurava uma explicação conseguia somente dizer a mim mesma: «Porque era ela, porque era eu.»
– Angelina, acorda!
De repente, tinha vontade de falar com ela, sentia a urgência de uma confidência íntima que só com a minha irmã poderia partilhar.
– Angelina.
– Que queres? É de noite. Não dormes? – respondeu-me com a boca empastada do sono.
– Alguma vez pensas no papá? – questionei-a, ainda que não existisse um verdadeiro motivo para acordá-la de noite e fazer-lhe perguntas sobre aquelas coisas; ou melhor, um motivo havia, mas escondia-o até de mim mesma. – Pensas no papá que está na guerra?
O barão Personè tinha entrado na nossa casa. Supostamente devia tê-lo odiado, devia ter-me causado asco. Deveria talvez ter coberto de escarros as pegadas negras deixadas pelos seus mocassins de pele de cabrito. Contudo, ao invés, apenas conseguia sentir por ele o exato oposto. Nessa noite, não conseguia parar de pensar nos fatos desusados do papá, nas calças que bamboleavam em redor das meias, nos erros gramaticais das suas cartas, nas suas mãos calejadas.
Angelina esfregou os olhos e bocejou demoradamente antes de me responder.
– Sim, penso – disse finalmente, mas não me era suficiente como resposta.
– E da cara dele, recordas-te bem dela? Mesmo bem?
Fez sinal que sim, mas a sua afirmação foi logo depois desmentida pela cabeça que girou primeiro para a direita e de seguida para a esquerda.
Fez estalar a língua no palato antes de dizer que não, algo que fazia sempre, uma coisa de maria-rapaz.
– Na outra noite tive um sonho – retomei eu. – Vi-o no meio de outros soldados, vestido com uma farda enlameada e cheia de buracos.
– E que estava ele a fazer no sonho?
– Estava a escavar uma cova, e atirava para dentro dela, uma a seguir à outra, as espingardas dos seus companheiros.
– E a seguir?
Angelina tinha agora os olhos arregalados. Tinha ficado curiosa com o sonho, e também com o discurso sobre o papá.
– A seguir também ele se lançava lá para dentro. Ao longe chegavam os tanques dos russos.
– Como sabias que os tanques eram russos?
– Lembras-te do filme que fomos ver ao cinema?
Em duas ocasiões tínhamos ido ver ao oratório os filmes Luce6 que o regime difundia para demonstrar a bravura dos nossos soldados. Desde a última vez, porém, a mamã tinha-se recusado a lá voltar. As cenas de batalha deixavam-na inquieta e faziam-lhe pressagiar o pior para o nosso pai.
Angelina fez estalar de novo a língua.
– Os tanques russos tinham uma estrela vermelha. Os do meu sonho também a tinham.
– E, na tua opinião, o que quererá isso dizer? Os russos são maus?
– Não sei, Angeli’. Só sei que eu também não me recordo bem da cara do papá, ainda que no sonho a conseguisse ver nitidamente.
Calei-me porque o som do vento se tinha tornado muito forte.
Penetrava através dos espaços vazios das janelas, insinuava-se por baixo das portas, e causava-me arrepios.
– Tere’ – disse-me a certa altura Angelina –, mas tu tens medo que o papá morra?
– Porque é que me fazes essas perguntas? Sabes bem que as crianças não devem falar da morte.
– Mas os grandes morrem. Até o avô morreu. E foste tu a dizer que viste o papá a escavar uma cova. Pode ser a mesma cova que escavam no cemitério para aqueles que já não se encontram entre nós.
– Não devemos pensar nessas coisas. Isso são pensamentos reservados aos adultos.
Naquele momento, foi o amor que predominou sobre tudo o resto. Senti que tinha sido injusta e má por tê-la acordado e assustado com as minhas inquietudes.
– Escuta-me com atenção, Angeli’, pensa no secretè da mamã.
– E que tem ele que ver?
O secretè era o móvel secreto do quarto de dormir dos meus pais. Nós crianças estávamos absolutamente proibidas de o abrir e espiar o seu conteúdo. A mamã estava sempre a dizer-nos que abri-lo era pior do que partir um espelho e muito pior do que beber ou tocar com as mãos na água de um charco no qual estava depositado o corpo inchado e pútrido de um sapo morto.
– Uma vez abri-o e olhei lá para dentro – confessei a Angelina.
Ela levou as mãos à boca e arregalou os olhos.
– No seu interior não encontrei nada de mau, Angeli’, só cartas com a assinatura do papá e uma caixinha com alguns colares.
– E depois disso não te aconteceram coisas más?
Sacudi a cabeça.
– Nada. Estás a ver? Pensamos que uma coisa é má e, ao invés, não é. Talvez estejamos convencidos de que a guerra é má e que onde se combate exista a morte, mas, ao invés, é como o secretè da mamã.
Ficou contente com a minha resposta. Aninhou-se debaixo do lençol e deixou que eu a aconchegasse.
Entretanto, o pensamento do secretè voltou-me à cabeça. O ouro, as cartas assinadas e as fotografias de todos aqueles familiares que já não existiam. Sobretudo os rostos de pessoas que eu nunca conhecera, retratados com a sua roupa boa, de pé sobre o empedrado da viela ou da praça. Uma série de sorrisos forçados e de rostos que acabavam sempre por se transformar em expressões abstratas, surreais. Desses, porém, evitei falar à minha irmã. Procurei afastar da minha cabeça aquelas imagens e enfiei-me debaixo do lençol, deitando-me de lado e pondo a minha mão entre as pernas.
– Tere’?
– O que foi?
– O barão era bonito, não é verdade?
Fechei os olhos para rever de novo mentalmente a sua figura esbelta e o fato impecável. Recordei-me também dos mocassins de pele de cabrito engraxados.
– Sim, Angeli’, era bonito.
5 Referência ao famoso escritor Gabrielle D’Annunzio (1863 – 1938), cuja obra e excêntrica vida e carreira política marcaram o início do século XX italiano. (N. do T.)
6 Filmes produzidos e distribuídos pelo Instituto Luce, acrónimo de L’Unione Cinematografica Educativa (União Cinematográfica Educativa), uma empresa criada pela ditadura fascista italiana, em 1924, com propósitos de propaganda. (N. do T.)