6
Na manhã seguinte, a mamã vestiu-se de ponto em branco com um vestido de cor clara justo no peito. Passou pelos lábios um fio de azeite e penteou com cuidado os seus cabelos. Penso saber o que a levou nessa manhã a fazer o que fez. O amor. Era o amor, essa armadura de madeira dura, que lhe mantinha firme o pulso enquanto penteava cuidadosamente cada caracol preto do seu cabelo. Enquanto sacudia o tecido do vestido, sabe-se lá quantas vezes usado em ocasiões importantes da sua vida. Enquanto ajeitava a fita branca nos cabelos de Angelina, enquanto fazia um pequeno golpe na ponta do dedo para colorir com um pouco de vermelho vivo as suas faces pálidas.
Até essa manhã, não fazia ideia de como era a herdade do barão Personè. E, embora já me tivesse cruzado com ele na rua, de ele inclusivamente já ter estado em minha casa, e de a sua vida ser revelada até ao mais ínfimo pormenor nas histórias que os mais grandes contavam, ele efetivamente continuava a ser um desconhecido para mim. Sabia que era viúvo e que tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Via ao longe a sua casa branca e rosa, colorida como os papéis dos rebuçados. Imaginava-a mole e comestível, como a mais saborosa das delícias, e não propriamente igual a uma casa verdadeira. Paredes falsas, pessoas falsas, tudo falso.
A aldeia real estava aprisionada entre dois campos em forma de ferradura e fedia a estrume, a animais exaustos, a camponeses que trabalhavam sem descanso de sol a sol. Em criança, quando imaginava algo de belo, era a herdade dos Personè que me vinha à mente. Fechando os olhos, podia inclusivamente saborear essa casa de bonecas: sabia a algodão-doce.
Caminhávamos devagar pelas ruas de Cupertino. Eu segurava a mão direita da mamã, e Angelina a mão esquerda. As casas encavalitadas umas nas outras, os telhados à medida, sem beirais, portas e janelas pequenas. Cal viva deitada por cima da pedra nua. Atravessámos o centro histórico com a cabeça baixa, como se tivéssemos uma vergonha para esconder. Ultrapassámos o santuário da Grottella, onde José tivera a experiência mística dos muitos êxtases que o haviam tornado santo. A mamã largou-nos as mãos e benzeu-se várias vezes. Eu e Angelina imitámo-la. Ao afastarmo-nos do casario, ficava-se com a impressão de se ter criado uma zona franca entre a natureza e o homem. A estrada que se percorria para deixar para trás o centro da aldeia era uma cesura que se abria por entre oliveiras e alguns vinhedos. Mais além, na linha de horizonte, elevava-se o muro do cemitério novo. Enquanto atravessávamos os campos amarelecidos pelo sol, demorava o olhar sobre as gotas de orvalho que pendiam dos fios de erva e oscilavam como pirilampos, sobre os troncos nodosos das oliveiras, sobre as ondas de luz que fendiam o ténue manto de nuvens e me ofuscavam. Aqui e ali alguns pormenores insípidos, como os grupos de velhos nos cruzamentos que anuíam constantemente por via de um incessante tremor da cabeça, ou os montes de lixo que desfeavam os muros caiados que davam para os campos, ou a visão dos camponeses de costas curvadas sobre a terra a apanhar ramos; tudo isto despertava em mim a suspeita de que a beleza tivesse desertado deste mundo, ou melhor, de que a beleza talvez até tivesse sido o ponto de partida original, mas que o tempo, a velhice, a pobreza ou a maldade tivessem acabado por deturpá-la, um pedaço de cada vez. Razão pela qual a beleza e a fealdade acabassem sempre por viver uma ao lado – ou dentro – da outra, como o depósito no vinho novo.
A mamã caminhou com um falso sorriso durante todo o percurso. Guardou para si mesma aquilo que pretendia fazer. De tempos a tempos largava as nossas mãos e limpava os olhos com a palma da sua, como para enxugar as lágrimas que não saíam.
Quando a herdade Personè surgiu no horizonte, suspirou profundamente e encostou-se a um pequeno muro caiado. Estava uma manhã quente. O calor sufocante envolvia tudo, parecia um pano de caixão. O campo era silencioso. Eu e Angelina estávamos paradas e de pé. Não nos mexíamos, sustínhamos a respiração. Tínhamos ambas medo. Sob a sombra de um ulmeiro ouvia-se o som de um sapo, o seu coaxar rítmico era como um soluço musical baixo e doce, uma bola de ar que rebentava num trilo argentino.
– Já vamos. Deixem-me só retomar o fôlego – a mamã sentiu-se na obrigação de dizer, como se o canto do sapo lhe tivesse recordado os seus deveres.
Assim que se restabeleceu, demos-lhe as mãos: sentíamo-nos estrangeiras naquele lugar e precisávamos da sua proteção. Percorremos deste modo a alameda que conduzia até à herdade. Eu e Angelina virávamos os olhos em todas as direções para admirar as árvores plantadas na bordadura do empedrado. As flores das cerejeiras atraíam vespas e abelhas. Podia-se vê-las a ir, vir, voltear, penetrar nos cálices para depois novamente voarem dali para fora. À medida que o grande portão de entrada da propriedade se tornava cada vez mais próximo, a mamã ia aumentando a força com que nos apertava as mãos, assim como a frequência dos seus suspiros. Conseguíamo-los contar. Um a cada passo dado. Um ritmo cadenciado, sem improvisação.
Veio abrir-nos a porta uma mulher seca e engelhada, com um olho estrábico e um tufo de cabelos claros que espreitava da touca apertada. Esquadrinhou-nos a todas. Primeiro à mamã, depois a mim, por fim a Angelina.
– Que querem daqui? – inquiriu com um tom brusco.
Provavelmente tinha lido nas nossas caras os dias de privação, as noites passadas a comer couve cozida. A roupa remendada, o vestido da mamã, que tinha os mesmos anos que eu. Ou talvez tivesse ido para além disso e, somente ao fixar-nos nos olhos, tinha visto os quartos defumados e malcheirosos da nossa casa, os cortinados gastos, a cara da avó Assunta quando se lhe reviravam as entranhas porque já não restava nada para comer e ela e a mamã jantavam folhas de rabanetes. O reboco que caía aos bocados, as teias de aranha nas paredes, a lenha que faltava, o frio nos ossos, os pés inteiriçados. Aquela velha megera, azeda como a bruxa da aldeia, tinha lido tudo, do nosso presente e do nosso passado.
– Procuro o barão – respondeu a mamã, tentando mascarar o medo.
– E quem devo anunciar?
– Dizei-lhe que sou a esposa de Nardo Sozzu.
A criada disse para nós entrarmos e afastou-se subindo com passinhos leves uma escadaria que terminava com a visão de uma estátua de São José que imperava do alto de um banco. Na sala exibiam-se objetos de todo o tipo e proveniência: quadros que retratavam cenas de caça, tinteiros finamente cinzelados, quatro pares de almofadas para cada poltrona. Surpreendeu-me a penumbra da divisão, tantas janelas, mas com as portadas semicerradas. Se a nossa casa tivesse todas aquelas janelas, mantê-las-ia escancaradas, teria inundado a sala de luz.
Subitamente, vimos o barão descer pela escadaria com passo seguro. Observando-o com atenção, notei que devia ser mais velho do que o meu pai, embora não deixasse de ser um homem muito belo, com os membros longos e os músculos bem desenhados por baixo da roupa. Angelina tinha razão. O barão Personè era mesmo belo.
A mamã levantou-se de rompante e clareou a voz. Conhecia-a como uma mulher forte, mas naquele momento imaginei-a igual à Ninetta, a minha boneca de trapos. Ter-se-ia deixado amarrotar, retorcer, ter-se-ia deixado dobrar e revolver para a esquerda e para a direita.
À época não podia ainda imaginar que ele, a sua casa de algodão-doce, a sua progenitura infecta, mudar-nos-iam toda a existência. Naquele dia ensolarado de julho apenas sabia que a minha mãe, pela primeira vez, enrubesceu quando o viu. Contudo, estava já habituada aos seus olhares lascivos, às reverências pomposas e ostensivas. Estava habituada a ler nos seus olhos a avidez, o desejo, a força; mas ali, no interior da sua fortaleza, ela era totalmente vulnerável.
Observei com admiração as suas mãos lisas e sem marcas de trabalho. Mãos de senhor. Nunca mais as esqueceria.
Quando já estava próximo, o barão fez uma vénia. A mamã enrubesceu novamente e esboçou um trejeito de agrado que, porém, parecia falso.
– A que devo a honra? – perguntou ele, como se receber uma camponesa em casa fosse motivo de orgulho.
– Barão, preciso de vos falar – e desviou o olhar na nossa direção.
– Cesira! – chamou ele, estalando os dedos. A criada com o olho estrábico precipitou-se. – Leva as meninas a ir ver o jardim.
A mamã olhou para mim. Tinha os olhos da vergonha e os lábios belos, carnudos, dispostos numa prega de resignação, num sorriso forçado.
– Não fiques envergonhada, Tere’. Vês como a tua irmã já está a ir toda contente ver o jardim.
Porque deveria ser sempre eu a sentir vergonha? Parecia que esse sentimento cabia-me exclusivamente a mim. Deste modo, seguimos aquela mulher odiosa por entre os ramos das árvores de um jardim luxuriante. Angelina saltitava contente de um lado para o outro.
– Tere’, anda ver como é lindo. Parece a casa de uma princesa. Quando for grande também quero ter uma casa assim.
A criada carrancuda fixou-a e esboçou um sorriso sardónico e lento. Ao olhar para ela senti um frémito percorrer-me as costas. Fez-me arrepiar e ficar com pele de galinha.
«É quando a morte passa perto de ti», costumava dizer a avó Assunta quando isso me acontecia.
Voltei-me para a direita e para a esquerda, e a seguir olhei para trás de mim.