12

Certa manhã ouvimos um assobio vindo da ruela, longo e profundo como o grito de uma ave noturna. Era um dia de outubro de 1945. Angelina brincava com a boneca de trapos debaixo da mesa, eu e a mamã cosíamos ao lado da janela da cozinha. A mamã pousou o retalho no colo e ficou à espera de ouvi-lo novamente. Durante alguns minutos houve silêncio, uma interrupção momentânea do tempo. Tinha sido uma coisa da nossa cabeça, pensei, uma fantasia. Mas depois voltou a alcançar-nos.

– Também ouviram, meninas?

Tive um sobressalto porque aquele chamamento – um prolongado som gutural – tinha-me também a mim parecido familiar. A mamã fixou-nos novamente. Queria mesmo que aquela fosse a voz do seu esposo.

Quantas vezes a tinha imaginado? Tinha continuado a sair regularmente para ir procurar comida, para visitar o avô Armando no cemitério, para cuidar das galinhas e dos coelhos, mas durante todos as vezes tinha sempre sido alguém que não ele.

Sem nos dizer mais nada correu até à entrada de casa. Eu e Angelina seguimo-la, e foi então que o vi: emagrecido, franzino, só pele e osso. Era ele, o meu pai, embora mais parecesse outro homem. Não tive coragem para correr a abraçá-lo. Estava sujo, cheirava mal, a sua roupa estava imunda. A sua pele escura à luz da lareira mais parecia couro.

A mamã agarrou-lhe a cara com as duas mãos, mas não disse nada, todas as suas palavras tinham ficado enroladas em qualquer lado. Beijou-o na testa, nas faces, nas pálpebras, mas não nos lábios. Naquele momento, ele era filho e ela mãe, de seguida apressou-se a fazê-lo entrar em casa segurando-o, porque tinha medo que pudesse cair.

– Quanta estrada percorreste para regressar a casa? Rezámos tanto, eu e as meninas. Para que tu voltasses, Nardi’, para que a guerra acabasse.

– Muita, Cateri’, muita.

Sentou-se na mesa da cozinha e tocou nos joelhos e na barriga das pernas.

– Venho da Alemanha, Cateri’. Nem eu sei quantos quilómetros são daqui.

– Não os contaste, papá? – perguntei um pouco amedrontada.

Não conhecia já nada daquele homem. Dele recordava o seu bigode cuidado, os cabelos empomadados e penteados para trás deixando a descoberto uma testa alta. As calças que abanavam à volta das meias porque ficavam demasiado largas nos calcanhares. Os olhos brilhantes. Não sabia quem era a pessoa que agora via diante de mim. Gostaria de lhe dizer que tinha contado até ao dia oitocentos e sessenta e sete, mas depois tinha ficado por ali porque a conta tinha ficado demasiado difícil, embora entretanto me tivesse tornado cada vez melhor em matemática; enquanto Angelina era boa com as palavras.

A mamã agarrou-nos a cabeça e abraçou-nos com força. Tinha-me tornado tão alta quanto ela, e à minha irmã faltavam-lhe apenas alguns centímetros para nos alcançar. Chorámos em conjunto. As três mulheres, naquele instante achando-nos infinitamente pequenas diante do milagre de ele surgido à porta, pálido e quase morto, mas ali ao nosso lado. O seu regresso significava que tudo, tudo podia recomeçar.

O papá pôs-se a contar a sua vida nos últimos anos, mas fê-lo usando a gíria que lhe era mais familiar, detendo-se nos episódios de fome e privações, sobre quão amargo era comer as cascas de batata e livrar-se dos piolhos catando-os com a ponta dos dedos. A mamã ouvia-o e ria, ainda que aquela história tivesse muito pouco para rir. Consegui ver-lhe de novo o brilho nos seus olhos. Tinha renascido, voltara a ser ela mesma.

– Conta, Nardi’, conta – incentivava-o. Porque quanto mais ele falava, mais a sua voz se tornava reconhecível.

Preparou-lhe um banho quente na selha da roupa: magro como estava, agachando-se, conseguiria entrar nela com o corpo todo. Recordava-me dele grande e forte, agora era um monte de ossos sem nervo. A mãe fechou a cortina de cânhamo enquanto ele se despia.

Ele continuava a falar, a descrever os companheiros que deixara para trás e os outros que tinham regressado a casa. Não haviam bombas, nem armas nas suas histórias. Este homem só, fugido de um lugar devastado, recordava à mamã a promessa feita tantos anos antes, do seu amor que devia recomeçar no ponto exato onde tinha ficado.

– Cateri’, eu nunca cheguei a partir, fiquei sempre aqui junto de ti.

Ela, por seu turno, prometia-lhe que agora que ele tinha regressado nunca mais sofreria frio ou fome. E nesse momento vi no seu corpo os troncos nodosos das oliveiras, aquela madeira dura que afunda as raízes na terra pedregosa. Vi-o assim também. Ao meu pai. Era parecida com ele. Os nossos olhos eram parecidos, a nossa pele era parecida. As mãos grandes e os pés magros. Idealizava-o enquanto a mamã lhe lavava com amor as costas, acariciava as suas feridas, lavava-lhe o sangue e a sujidade. Quem és tu, e quem sou eu. És o meu pai, sou a tua filha. É um milagre que tenhas voltado. Conta-me a tua história, quero ouvir-te. Sei que em pequeno gostavas das estrelas. Conheci-te.

Se me concentrava na sua voz, do outro lado do tempo, o ritmo do meu coração diminuía, e cada coisa parecia voltar ao seu lugar. O sangue recomeçou a correr dentro das minhas veias.

Ele estava vivo. Também eu estava viva.