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Revendemos os vestidos que havíamos confecionado para o casamento de Lollina a Pinuccio, u merciale, e a minha irmã continuou a costurar o seu vestido cor de ameixa. No dia em que o terminou a primavera ia já adiantada.

– Temos de o mostrar à cabeleireira. Uma promessa é para se cumprir.

Via-a a admirar-se no espelho de vidro fumado do quarto de dormir. Observar-se primeiro do seu lado esquerdo e depois do direito, envolta no tafetá farfalhante que a fazia assemelhar-se a uma diva do grande ecrã. Nos últimos tempos, à paixão que nutria pelo cinema adicionara a leitura de romances cor-de-rosa que pedia emprestados à costureira com a promessa de os restituir passados dois dias. Via-a arregalar os olhos diante de histórias de amores eternos e quase sempre impossíveis, vividos por raparigas comparadas a lírios, rosas e todos os outros elementos maravilhosos da criação. Porventura esperava que, mais dia menos dia, lhe caísse do céu um desses jovens saídos das páginas dos seus livros, capaz de a fazer viver as mesmas emoções intensas. Era por isso que desdenhava todos os campónios da aldeia, jovens de carne e osso como Giacomo, que não se assemelhavam minimamente aos sedutores heróis das suas histórias. Era como se a minha irmã tivesse fabricado para si própria uma alma falsa que vivia noutro lugar, não vendo a realidade que nos circundava. Percorria a pés ligeiros as vielas da aldeia com o seu único par de sapatos de salto alto. Caminhava devagar sobre a rampa em espiral que passava por cima dos lugares estreitos e escuros do centro, passava rente aos barriletes de vinho em frente das tabernas torcendo o nariz, passava por baixo dos cestos expostos nos balcões. Não respondia a nenhum piropo ordinário que os homens parados nos cruzamentos lhe dirigiam, ao invés sorria e abanava a cabeça, ou quando muito levantava os olhos para o céu e bufava, praguejando baixinho «pelintras que não têm onde cair mortos». Então deixava sair um suspiro lançado para o alto, para além das fachadas das casas, dos balcões bojudos cheios de vasos de manjericão e manjerona, direcionado ao ponto exato do céu onde haveria de descer o seu amado. Era deste modo que eu via a minha irmã, como uma sombra graciosa com uma grande luz em torno.

Saímos de casa de manhã cedo, ela com o seu vestido de tafetá e eu com um avental florido que tinha confecionado com as minhas próprias mãos, mas nada que se comparasse ao vestido de Angelina. Tínhamos estado somente uma única vez em casa da cabeleireira e com a nossa avó Assunta, que após essa ocasião se tinha recusado a voltar a visitar uma mulher que considerava a personificação do demónio, com os seus caracóis densos e a maquilhagem exagerada. A estrada conduzia a um mato rasteiro de eufórbias que o calor tinha transformado em caniços vítreos. Para lá daquela estrada pedregosa estendia-se uma herdade minúscula com uma ou outra oliveira raquítica. Era ali que morava a cabeleireira, e aquela pequena parcela de terra pertencia ao marido. Angelina tinha dificuldade em caminhar sobre o empedrado com os sapatos de salto alto, que a obrigavam a parar várias vezes ao longo do caminho. Avançava com ar sério, sem pronunciar uma única palavra. À direita da porta de entrada dominava um grande crucifixo de madeira, ao lado deste, uma pia de água benta já rachada em vários pontos. Espreitámos pela janela, uma vez que da casa não provinha nenhum barulho. Vimos velhos cântaros e paus de vassoura. Aquela casa escalavrada e em ruínas fez-me lembrar a casa da makara. Encontrámos a figura da cabeleireira sentada diante de um espelho no ato de compor os seus caracóis. Batemos devagar. Sentia-me intimidada por aquela mulher. Era a sua liberdade que me assustava.

– Ah, as belas raparigas do mercado – enunciou sorrindo, depois deixou-nos entrar, mostrando-nos com gestos amplos tudo o que havia no interior da sua casa. O contador, as cadeiras empalhadas, as fotografias dos parentes mortos, um vaso com flores. – Não se preocupem, o meu marido saiu. Não regressa antes do almoço. Acomodem-se. Sentem-se aqui.

Indicou-nos as cadeiras em redor da mesa da cozinha e põs-se a abrir e fechar o contador para preparar o café.

– Não tenho biscoitos para oferecer, peço-vos desculpa, mas não estou habituada a receber visitas.

Eu e Angelina olhávamos em redor. Acho que ambas procurávamos vestígios dos inúmeros pecados que lhe eram atribuídos.

– Fizeste mesmo um belo vestido – disse à minha irmã, voltando-se para ela. – Não podia ter gastado melhor o meu dinheiro.

– Foi muito gentil da vossa parte comprar-me o tecido, então vim mostrar como tinha ficado.

A cabeleireira cheirava a pó de talco. Associava esse odor à minha avó Assunta, que se polvilhava com pó de talco dos ombros aos pés. Talvez por essa razão associei o seu perfume a algo desbotado, a velhice, a pele enrugada, a algo que se procura conservar.

Sentou-se ao nosso lado e bebemos o café. As três em silêncio. De tempos a tempos, a cabeleireira olhava para o jardim através da janela. Surpreendi-me a mim mesma a fixar-lhe mais do que uma vez o peito que já deixara de ser liso, depois, mais abaixo, a perscrutar os pés magríssimos, o dedo grande exageradamente mais comprido, e todos eles tortos. Pareceu-me estar a violar algo de íntimo e dirigi igualmente o olhar para a janela. No céu havia nuvens baixas. Eram as mesmas do dia anterior, mas, não sei por que razão, já não me pareciam tão especiais. Um pardal sobre o estendal virava a sua pequena cabeça de um lado para o outro.

– Venham comigo, vamos fazer uma coisa – exclamou a determinado momento pousando a chávena sobre a mesa.

Convidou-nos a levantarmo-nos e conduziu-nos até a uma pequena porta pintada de branco do outro lado da casa. A maçaneta estava enferrujada pela metade e uma parte da tinta na ombreira estava descascada, deixando à vista uma madeira enegrecida e podre. A cabeleireira abriu-a com força, forçando as dobradiças já cansadas de se moverem. Entrámos numa casa de banho minúscula e em ruínas, com um lavatório de cor esverdeada, uma retrete e uma banheira que já havia conhecido melhores dias. Abriu as portas de um pequeno armário de parede e tirou de dentro uma caixa que continha maquilhagem, uma escova e alguns ganchos para o cabelo.

– Venham, vamos para o meu quarto.

Seguimo-la e eu aproveitei para dirigir novamente um olhar demorado sobre a sua figura, sobre as pernas afuseladas, a cabeleira preta que ondulava sobre as ancas agradáveis, delicadas.

– Sentem-se aqui, minhas queridas – pediu-nos com calma, fazendo-nos acomodar sobre uma velha cadeira empalhada, posicionada defronte de um toucador de cor verde. Parecia ser o único móvel de toda a casa que não estivesse prestes a desfazer-se devido ao caruncho. – Pertencia à minha mãe – disse, e mostrou-nos um travessão para o cabelo em prata.

– É lindíssimo – exclamou Angelina, segurando nas mãos aquela joia, acariciando o embutido e virando-a de todos os lados várias vezes.

– Tinha a tua idade, dezassete anos, quando a minha mãe mo ofereceu por ocasião do meu aniversário. Queria que eu o usasse no dia do meu casamento. Sabia que estava muito doente e que já não me conseguiria ver de vestido branco e véu, mas era com esses que o travessão deveria combinar.

Não havia amargura nos seus olhos, apenas uma doce nostalgia.

– Chega de recordações tristes – sibilou logo depois, abanando as mãos como no ato de afastar um inseto incómodo. – Pensemos agora no vosso rosto, meninas.

Deixámo-la fazer o que queria. Concentrei-me na tentativa de compreender a exata sequência de emoções que a visão do meu próprio rosto no espelho provocava em mim. Não era obviamente a primeira vez que o via. Enfrentava todos os dias a imagem refletida da minha boca grande, das maçãs do rosto salientes, da testa alta e das sobrancelhas grossas que emolduravam dois olhos profundos e claros. Contudo, nunca tinha considerado que pudesse existir beleza naquele quadro.

– Em primeiro lugar, vamos pensar neste rosto oliváceo – prosseguiu dirigindo-se a Angelina.

A voz da cabeleireira, doce e aveludada, era como um tapete de seda sobre cacos de garrafa. Não conseguia encobrir os meus pensamentos, afastá-los para algum lugar onde a sua perigosidade pudesse neutralizar-se. Assim, as suas palavras atenuavam-se umas nas outras e tornava-se para mim impossível distingui-las com nitidez, percebê-las verdadeiramente.

Quando foi a minha vez, deixei-me tocar por um pincel com cerdas suavíssimas que me acariciava a pele tingindo-a de uma intensa cor de âmbar, e no meio brilhavam bocadinhos dourados que exaltavam as faces magras. Fiquei surpreendida pelo efeito que aquele pó produzia no meu rosto, cobrindo sem ofuscar a beleza hipnótica de um pequeno sinal que despontava da maça do rosto do lado direito. Aquele herdara-o do meu pai. Uma pequena imperfeição da pele que nunca considerara poder ser uma marca de beleza.

– E agora, os olhos – exclamou, ostentando a excitação de uma menina à visão de um brinquedo. – Verde. O verde é perfeito para a tua pele clara.

Tremiam-me os lábios. Baixei a cabeça para engolir a saliva, de seguida deixei que a cabeleireira me segurasse novamente pelo queixo. O seu rosto estava tão perto que conseguia cheirar o aroma adocicado do pó de arroz. Não era um cheiro nada agradável, porque escondia um ressaibo que me fez recordar vagamente os perfumes fortes do quarto onde estava o corpo morto do avô. Foi suficiente essa recordação para me fazer olhar novamente em meu redor, aturdida por aquilo que estava a acontecer. Pousei mais uma vez os olhos na cabeleireira e vi-a concentrada na obra que estava agora a ultimar sobre o rosto da minha irmã. O lábio inferior mordia no superior e as pestanas, postiças e enormes, tremiam por causa da concentração. Vê-la assim, pertíssimo dela, causou-me uma estranha impressão. Estavam uma defronte da outra. Pareceram-me ambas duas bonecas partidas, e aquela última palavra quase me saiu da boca, como se proviesse de um ponto indefinido do quarto e não de uma voz interior. Senti-me triste sem um verdadeiro motivo e pensei na minha mãe. Perguntei-me a mim mesma se seria mais feliz do que a cabeleireira. Perscrutei um pedaço de cada vez a figura delgada e harmoniosa de Angelina, os cabelos ondulados, a saia em forma de sino e o corpete justo da cor das ameixas maduras. Sorria enquanto a cabeleireira lhe pintava os lábios de vermelho.

– Este é o toque final – sussurrou.

Pensei que era lindíssima. Aquele mundo não lhe fizera ainda mal.

A cabeleireira a seguir aproximou-se com o batom do meu rosto, o hálito cheirava a rebuçado de morango e o seu peito robusto ofegava. Fixámo-nos por uns segundos, cada uma a indagar o rosto da outra, olhei de novo para a minha irmã e lembrei-me de quando nascera. «Fizeste uma boneca, Cateri’», diziam as comadres ao olhar para ela. «Não te envergonhes, Tere’», diziam-me a mim, convidando-me a contemplá-la. Era um dia radioso de sol. No próprio dia do seu nascimento; porém, o sol desta história, ainda carregada de esperança, havia já traçado todos os momentos sombrios da vida.

Observei igualmente o meu rosto ao espelho. A pele tinha-se colorido de tonalidades quentes e vivas. Os olhos ressaltavam como uma poça de lama iluminada pela claridade da lua e brilhavam como se refletissem uma luz interior, quente e dourada. Eram tão grandes e belos. Duvidei que fossem verdadeiramente os meus. Queria fugir daquela visão. Aquela cara não me pertencia.

– Eu e a Angelina temos mesmo de ir andando – surpreendi-me a declarar com uma urgência de deixar aquela casa.

– Mas voltem, que fico aqui à vossa espera. – Na sua voz havia o tom de uma prece.

Angelina anuiu. Parecia igualmente estranha. Talvez a sua alma falsa tivesse saído do seu corpo e se tivesse reconhecido naquela imagem refletida.

– Até à próxima – exclamou a minha irmã. – Até à próxima.

Refizemos em passo apressado a estrada de regresso, detendo-nos na fonte, onde limpámos com força a maquilhagem da cara. Angelina olhava-me com a vertigem das fêmeas sonhadoras, depois começou a murmurar:

– Já não quero mais ter esta vida, já não quero mais usar estes sapatos, somente o vestido, esse sim, fica-me bem.

– Eu sei, Angelina, eu sei – e abraçámo-nos com o rosto molhado e fuligem a escorrer-nos dos olhos.