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Na casa dos meus pais, a porta de entrada e os batentes tornaram-se cinzentos e, em alguns pontos, estão comidos pelo caruncho. O secretè ainda existe, mas os seus pequenos pés de madeira torneados parecem bambolear como bailarinas sobre andas. No pátio, uma fina poeira amarelada, húmida e peganhenta cobre o chão de tijoleira.

– O tempo voou – diz-me a mamã, apoiando-se ao meu braço.

Veio pôr-se ao meu lado e juntas contemplamos o medronheiro, que apesar de raquítico e torto ainda vive no nosso jardim.

Nestes últimos dias calcorreámos todas as vielas da aldeia. Fiquei com a impressão de que tudo tinha encolhido, até mesmo a torre sineira, que em criança me parecia altíssima.

Ontem foi a procissão de São José. O papá insistiu em ir vê-la:

– Esta é a última vez. Não a quero perder – disse, levantando o busto que agora, desde há quase dois meses, abriga a sua sombra encolhida e magra.

A mãe insistiu em dizer-lhe que não devia ir. O calor, a multidão, a fadiga, mas ele não prestou atenção, foi sempre um teimoso, desde jovem.

– Qual é a tua opinião, Tere’? – perguntou-me.

Nos seus olhos, agora muito pequeninos, uma substância densa e aquosa.

– Acho que é possível, papá, se é isso que desejas.

Ele anuiu baixinho e de seguida virou a cabeça para o outro lado, como se lhe fosse difícil suster o olhar da filha.

Percorreu devagar a rua de sua casa, de braço dado comigo e com a mamã. No céu esvoaçavam muitas andorinhas e o meu pai levantava o queixo para admirá-las. De vez em quando sorria, como se as andorinhas tivessem alguma verdade para lhe revelar.

– Quero ouvir novamente o som do clarinete – comentou. O clarinete fora sempre o seu instrumento preferido da banda de música. – Quero rever as casas, a igreja, a praça. Tudo.

Compreendi que queria repercorrer tudo para se conceder um último adeus, mas ajudá-lo nesse seu propósito foi ao mesmo tempo lancinante e terno. Esforçava-me por reter as lágrimas e mostrar-me forte; de tempos a tempos, enquanto passeávamos, virava a cabeça para o lado da rua e abandonava-me a uma lágrima, somente uma. O papá sorria grato às pessoas que o cumprimentavam, depois voltava a admirar as andorinhas:

– Bem-vindas novamente – sussurrou, seguindo com os olhos o seu voo.

Vê-lo assim, no final do seu próprio percurso, reduzido a um esforço enorme só para dar alguns passinhos curtos, respirando a custo, o rosto desamparado, provocou-me uma dor indescritível. Durante toda a vida procurei sempre dar um sentido a algo que não era certo que o tivesse.

Há três fotos apoiadas sobre o secretè; a primeira retrata a mamã e o papá no dia do seu casamento; a segunda é a foto de Angelina noiva defronte da Igreja de Santa Maria Annunziata; na terceira, sou eu e o meu marido no dia do nosso casamento. Eu com uma coroa de margaridas no cabelo e o meu marido com um casaco de fato cruzado e uma camisa branca sem gravata. Ele sorri para a objetiva e eu tenho os olhos virados para ele. Entre todas as belas emoções daquele dia, recordo sobretudo uma: até então sentira-me uma figura sem interesse, para sempre presa ao papel de figurante, e nessa ocasião senti-me única. Revejo estas velhas fotografias. Os destinos entrecruzados das nossas vidas, de toda a minha família, estão condensados nestas três imagens.

Enquanto as observo, a mamã acerca-se de mim.

– O teu pai está a morrer, Tere’.

Pega na foto que os retrata juntos, no dia mais feliz da sua vida, e suspira.

– Acreditas quando te digo que o tempo voou? Um piscar de olhos e puf! Transformas-te novamente em cinza.

Fala baixinho para evitar que o papá a oiça. Foi estender-se sobre a cama feita. Quis que eu e a mamã o vestíssemos a rigor, os botões do casaco brilhantes, os sapatos engraxados. Pediu-nos para que lhe levássemos o espelho, porque queria ver-se mas não conseguia fazê-lo de pé.

– Deixem-me sozinho – disse. – É só por um instante. – Um tom infinitamente doce.

Fomos as duas para a cozinha e a mamã preparou o café. Ouvi o papá sussurrar devagarinho o seu próprio nome. Nardo Sozzu. Sozzu Nardo. Sussurrava-o enquanto se olhava ao espelho todo vestido e embonecado, como se admirasse um outro eu arranjado, já falecido e pronto para ser chorado.

Eu e a mamã sentamo-nos e sorvemos o café. As lágrimas escorrem-lhe devagar pelas faces. As rugas ao redor dos olhos realçam-se. Fixo-a calada. Os fios prateados entre os cabelos pintados com o champô do supermercado, os lábios que se tornaram finos e da cor das ameixas ainda não amadurecidas.

– Tenho de lhe dizer, Tere’. Tenho de lhe contar tudo. Prometi à tua avó, recordas-te? Não é justo que parta sem ficar a saber aquilo que eu fiz.

Respondo-lhe baixando os olhos. Já não sei se a verdade é sempre o mais justo.

Levanto-me para espreitar o meu pai através da cortina. Deitou-se novamente e adormeceu. Na cama de casal grande, Nardo Sozzu parece minúsculo, a carcaça de uma criança. O corpo ossudo nada dentro do fato bom, que reserva para os domingos e para as festividades importantes.

– Bons sonhos, papá. Gosto muito de ti.