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Angelina insistira para que antes da festa fôssemos as duas à cabeleireira. Durante o caminho não fez qualquer menção a Giacomo e à sua proposta, mas era evidente que o sobrinho da makara interpunha-se entre mim e a minha irmã como uma cortina de «ses» e «mas» que nos remetia para um silêncio forçado. Observava as casas tortas, amontoadas umas em cima das outras, os subterrâneos através dos quais subiam cheiros pútridos, as lojas pobres com cortinas feitas de cordões entrelaçados a servirem de porta. E era como se esses pormenores me saltassem agora todos à vista pela primeira vez. À saída da aldeia, a camioneta tomava a direção da avenida que dividia em dois o campo em redor. A casa da cabeleireira estava ali situada, juntamente com poucas outras casitas que se podiam contar pelos dedos de uma mão, todas elas com a sua horta minúscula, filas de terra escura de onde as ameixeiras em flor despontavam. A cabeleireira usava o cabelo volumoso como os das bonecas e um batom de cor pálida que lhe tornava os lábios mais finos.

– Passem, passem. Podem entrar que o palerma está na praça e não aparecerá durante algum tempo – disse, referindo-se ao marido.

Na mesa encontrava-se uma revista, O Domingo da Mulher. Na capa, uma mulher fascinante agarrava pelo pescoço um homem.

Veio diretamente de Milão.

Angelina suspirou enquanto a acariciava. Não sabíamos nada acerca de Milão, mas nas nossas cabeças tudo aquilo que ia além daqueles campos vermelhos fazia-nos esquecer a lama e a ferocidade.

– Sentem-se, que vos vou arranjar o cabelo – apressou-se a dizer, contagiada pela mesma excitação que a havia tomado da primeira vez em que tínhamos vindo visitá-la.

– Começa tu, Tere’.

Convidou-me a sentar e principiou a enrolar-me as madeixas à volta de rolos de cabelo grandes.

– Vais ver que te vou tornar igual a uma estrela do cinema. Agora fecha os olhos, que vamos maquilhar este rosto de porcelana.

As cerdas finas acariciavam-me as faces e ligeiros arrepios percorriam-me as costas para cima e para baixo. A imagem de Giacomo surgiu de forma prepotente na minha mente. Estava deitado ao meu lado na cama com um ar feliz. Sem o casaco de fustão, as suas costas assemelhavam-se às rochas brancas da ribeira do Cardo. Abria várias vezes os olhos, mas quando os fechava lá estava ele, fixo. Assim, nu e branco, fazia-me medo e o meu coração acelerava enquanto os lábios se comprimiam numa expressão de espera. Sacudi a cabeça enquanto o pincel leve batia ligeiramente sobre os olhos.

– Está quieta, Tere’, que estou já quase a terminar.

Procurava afastar da minha mente aquela imagem e sem querer essa fixou-se noutros corpos, os dos salteadores, daquela vez em que tinham violado a mamã. Nessa noite fiquei convencida de que os seus corpos grandes e peludos pretendessem esquartejá-la, com lâminas que entravam entre as coxas dela para dividi-la, despedaçá-la. Somente quando se tinham ido embora percebi que estava ainda inteira, o seu peito intacto e também a sua barriga. Nenhuma ferida visível. Foi provavelmente desde então que decidi que me tornaria um corpo sem paixão e sem carne. Estéril como uma boneca. Um corpo sem sangue e sem sexo, completamente noutro lugar.

– Já acabei. Podem ver.

Angelina estava de pé atrás de mim e fixava-me pelo espelho. A minha belíssima irmã, que Giacomo queria para esposa.

– Como estás linda, Tere’, pareces uma atriz americana.

Os meus cabelos tinham ganhado volume e suavidade e emolduravam as minhas faces magras. Preparara-me para a festa com a fantasia infantil de poder mudar as coisas graças a um belo vestido plissado, a um laço frouxo que me apertava a cintura e a um par de sapatos com os tacões finos e altos, mas o verdadeiro milagre tinha sido realizado pela mulher atrás de mim com cabelo de boneca e rosto triste.

– Tu, minha cara – começou a contar –, fazes-me recordar de quando eu era nova. Antes de conhecer o meu marido, tinha um namorado, um oficial do exército.

Limpou as mãos ao vestido e abriu uma gaveta do seu louceiro. Afastou umas toalhas e tirou de dentro uma fotografia que a retratava muito nova, com uma cabeleira encaracolada que lhe caía nos lados da cara. Ao seu lado, um jovem em uniforme militar com as maçãs do rosto pronunciadas e olhos grandes.

– Era de Santa Cesarea. Uma vez levou-me a ver a vila em estilo mourisco dos seus pais.

Exalou um longo suspiro antes de nos contar acerca dos jardins de pinheiros mansos que desciam até ao mar, dos renques de alcachofras e de amoreiras, cujos frutos comia às mancheias. Enquanto falava, as faces tingiam-se-lhe de um vermelho-vivo, mas os olhos, ao invés, cobriram-se de um velo de choro.

– Depois veio a Grande Guerra, minhas caras. Felizmente, vocês não passaram por ela. Foram mais os que lá ficaram do que aqueles que regressaram.

Percebia-se, porém, mais do que do jovem oficial, do que realmente sentia saudades era da sua juventude. Também eu conhecia bem aquela sensação, ainda que, no meu caso, se tratasse de uma nostalgia do futuro. Os dois termos podiam ser contrastantes, mas eu compreendia bem do que se tratava. O tempo estava recolhido numa bolha que girava e voltava sempre ao mesmo ponto.

A cabeleireira tinha acabado de dar os últimos retoques aos cabelos de Angelina quando o marido aleijado regressou. Aparentava uma idade indefinida, como a de quem tivesse ficado em certo estádio da sua evolução e conservasse uma forma incompleta, ainda inacabada. Os seus cabelos, de um louro-arruivado eram ainda os de um rapaz, mas tudo o resto parecia murcho e decadente. De estatura alta, foi sentar-se encolhido numa cadeira num dos cantos da cozinha, entregue a mover a boca num ruminar lento e rítmico.

– É melhor irem agora embora, meninas – disse de imediato a cabeleireira. – Não quero dinheiro. Hoje ofereço eu, e divirtam-se.

Deixámo-la à entrada de casa, com a nostalgia da juventude que, de repente, lhe carregara as feições e apagara o sorriso. Eu e Angelina saímos a correr, amedrontadas pela visão do aleijado. Detive-me a observá-la, em como a vida lhe coloria a pele, lhe fazia brilhar os olhos e lhe conferia aquele modo de andar orgulhoso. De tempos a tempos, ela também se detinha. Bastava um pormenor, o som de um qualquer animal proveniente do bosque, a carroça de um camponês, para lhe interromper a caminhada. Cada paragem era uma ocasião para me observar, convencida de que eu não sentisse os seus olhos fixados em mim, que me atrasavam o andar e me constrangiam a avançar com pequenos passos mecânicos.

– Tere’, porque é que não falas comigo? – questionou-me repentinamente.

Não podia sequer partilhar com ela o que sentia, uma espécie de intuição. O invólucro vazio de uma sensação? Como se poderia definir? Não tinha nada que ver com Giacomo, com o facto de a ter escolhido a ela e não a mim. No passado, acometeram-me silêncios diferentes deste e eu aceitara-os de lábios apertados. Naquela tarde, porém, não sucedeu a mesma coisa. Habitualmente, eram os outros que sabiam mais sobre mim do que eu mesma, a própria Angelina, aquelas que nunca estavam caladas, que davam sempre o primeiro passo, que conheciam o significado de tudo. Contudo, dessa vez era eu quem sabia tudo, que me revelava a mim mesma no meu mais profundo ser. Olhei para Angelina com uma nova consciência. Recordo-me do céu que recortava a sua figura e das árvores dobradas sobre a escarpa. Não se tratava de Giacomo, era-me agora claro. Tratava-se de mim.

Angelina agarrou-me nas mãos. Olhos nos olhos como em pequenas defronte da Torre del Cardo.

– Eu não vou casar com ele, Tere’, nunca me casarei com ele. Não deves ficar preocupada, compreendes?

Eu compreendi-a, e também compreendi que me acariciava com a voz, com os olhos cheios de lágrimas, olhando-me fixamente para me ler por dentro e tocar-me no coração.

– Não quero esta vida para mim, Tere’, pois mete-me nojo.

Aquela sua última afirmação fez-me medo, mas também então não lhe disse nada. Entrelacei com mais força os meus dedos nos seus. Era o sinal de uma cumplicidade que substituía as palavras.

Angelina, a minha lindíssima irmã. O tisne dos olhos começou a escorrer-lhe pelas faces. Limpei as suas lágrimas com os dedos. Éramos duas divas do cinema descarriladas. Porquê tanta beleza no corpo de duas bonecas desfeitas?