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Nos meses que se seguiram, Angelina murchou lentamente. O papá impediu-a de sair e os únicos momentos de distração que tinha era quando íamos encher os cântaros de água à fonte ou quando íamos fazer compras à loja de Dom Beppe, onde a sua filha coscuvilheira e raquítica não perdia a ocasião para lembrar a todos quão insensata tinha sido a minha irmã ao apaixonar-se pelo filho do barão. Mencionava-o, porém, com alusões vagas: «Quem brinca com o fogo queima-se», «Quem muito espera, desespera». A minha irmã aceitava com mutismo qualquer provocação, mergulhada num ponto cardeal inexistente, num estrato de alcatrão onde qualquer solicitação externa reverberava e não deixava nenhuma marca.

Mais de uma vez, o barão filho foi visto a rondar as vielas montado no seu cavalo de raça, mas não trocava nenhuma palavra com ninguém. Era belo, com uma altivez a nós desconhecida, forasteira até mesmo ao seu próprio sangue. Entre nós e ele erguia-se um muro intransponível.

Embora o papá a impedisse de sair, o coração dela continuava a palpitar pelo barão, aliás, aquele amor impossível alimentava agora todo o seu pensamento, cada gesto diário, e até mesmo as noites, que preenchia com suspiros.

– Queres um ovo fresco, Angeli’?

– Mais tarde.

– Tens de comer, Angeli’. Preparo-te então uma omeleta – insistia a mamã, mas Angelina sacudia a cabeça e fixava a ponta dos seus sapatos.

As conversas reduziram-se ao essencial e cada um de nós estava atento a não iniciar discursos insidiosos, sobretudo acerca do barão filho.

À noite, ao jantar, a mamã servia porções abundantes sob o olhar vigilante do papá, que se iludia que um estômago cheio aplacaria outros apetites. Cada ato era realizado como um rito mudo e solitário, cada um de nós mantinha a cabeça inclinada sobre o prato. O de Angelina, porém, permanecia sempre cheio. Os únicos momentos em que a via contente era quando o papá nos autorizava a acompanhar a mamã e a avó ao cinema. Admirava então as misses com ar contemplativo, concentrando-se sobre pormenores do seu rosto, da roupa e dos penteados perfeitos que a faziam desviar o olhar. Nesses momentos, chorava. Tenho a certeza que maldizia o seu nome e a sua estirpe. Eu estendia-lhe a mão e sentia nos seus dedos o frio de uma neve invisível. Aquelas divas tão distantes também despertavam algo no coração da nossa mãe, a qual, depois do cinema, em casa, afogava os suspiros trabalhando no tear. Inclinava a cabeça sobre a manta que estava a tecer e escondia os olhos verde-acinzentados que as contrariedades haviam amortecido. Batia com o pente sem levantar os olhos, um bum bum rítmico que preenchia o silêncio.

Nesses meses também o papá se apagou, ainda que o seu mutismo ostentasse mais os cambiantes da raiva. Atravessava as divisões fumosas e cinzentas da casa ajeitando de modo convulso as madeixas do cabelo. Percebia-se que se revoltava por dentro ao ver o reboco das paredes descascado, o verdete nas torneiras, o chão de mosaico com desenhos florais lascado. Imóvel diante da janela exalava profundamente como se lhe faltasse o ar. Não parecia já o pai que eu recordava, aquele que tornara da guerra usado e ultrajado – tão magro que as orelhas pareciam deslocadas no seu crânio rapado –, porém, feliz. A vida tinha-o mudado, transformando-o igualmente no ser incompleto que enchera de fístulas cada um dos membros da nossa família. Um homem constantemente parado no limiar de qualquer coisa. Eu olhava para ele, amava-o e ao mesmo tempo odiava-o, como se ele fosse o culpado de tudo.

Foi «a idade do dissabor». É deste modo que ainda hoje chamo àqueles anos da minha vida. A casa estava fria e vazia, ainda que sempre cheia de gente. A avó Assunta chegava de repente, entrava cozinha adentro sem fazer ruído.

– Pobre rapariga, percebe-se que está desorientada – comentava com os braços cruzados.

A seguir a ela chegavam a Ti Nenenna e Lollina, depois as comadres Nunzia e a parteira, cada uma delas com um qualquer trabalho para acabar ou os habituais grãos secos para mastigar. A Ti Nenenna e a filha eram cada vez mais distintas, a primeira com a barriga grande e um seio pendente que se apoiava generosamente sobre essa, e Lollina seca como um pedaço de pão velho. Mãe e filha entoavam continuamente orações em glória dos santos ou dos defuntos para que ajudassem Angelina a encontrar o caminho certo. De tempos a tempos, interrompiam as rezas para voltar de súbito aos acontecimentos terrenos, comentando com frases aparentemente indolentes algumas notícias que se tinham espalhado pelas vielas. A maior parte das vezes, quando era chamada a responder, Angelina anuía com ar aborrecido e ausente. De resto, já estávamos habituados às comadres que estacionavam dentro da nossa casa cada vez que havia um problema. Sentavam-se em círculo comentando as mesmas histórias, cada uma delas acrescentando variações a seu bel-prazer com o objetivo de tornar o relato mais interessante.

Somente uma vez a minha irmã interveio de modo seco:

– Sei bem o que dizem na aldeia sobre mim – proferiu da cadeira na qual se sentava desde que estava fechada dentro de casa, por trás das vidraças da janela –, que a Angelina Sozzu é a puta do barão, e também sei que vós estais sempre aqui a fingir que me quereis bem, mas no fundo pensais o mesmo. A ’ste cose nci àggiu fattu lu callu, já estou vacinada contra estas coisas.

A partir daquele dia, e durante bastantes semanas, veio apenas a avó Assunta, para sossego do papá que, perante aquelas ausências, se limitou a comentar o seguinte:

– Pelo menos livrámo-nos de algumas.

O scuorno voltou a encher as divisões da casa, a passar de boca em boca, difundindo-se rapidamente pelas praças e voando sobre as lajes das ruas. Tornou-se quase uma substância sólida, uma espécie de massa pesada capaz de se mover dentro das paredes e de fazer cócegas na pele como um espírito maléfico, que vagueava pela casa enquanto estávamos acordados e dormia ao nosso lado durante a noite.

– Sinto-o, mamã – dizia Angelina –, a respirar perto de mim com o seu hálito fedorento.

– O que é que sentes?

– O scuorno, mamã. Está dentro de casa, faz deslocar o ar e caminha ao nosso lado. Também o sentes, Tere’? – inquiria-me, esbugalhando os seus belos olhos, talvez com medo de só ela o pressentir.

– É vermelho como brasas e tem cornos – disse-lhe uma vez. – Se me olho ao espelho não me vejo a mim, mas o demónio vermelho que vive agora dentro desta cozinha.

Posicionou-se direita diante do espelho e observou-se, primeiro de um lado, depois do outro.

– Estou a vê-lo, Tere’, também o vejo.