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O papá queria fazer de nós umas verdadeiras camponesas, por conseguinte, levantávamo-nos às três da manhã para acompanhá-lo e à mamã ao pedaço de terra que nomeara «Mezza Pete»12, indicando o facto de aquela terra vermelha ser atravessada por afloramentos calcários que despontavam aqui e ali; arrancávamos as ervas que cresciam nas bordaduras, apanhávamos as azeitonas amontoando-as no telão negro sobre o qual caíam quando estavam já maduras, limpávamos a sujidade das favas e retirávamos os pequenos bagos de uva das vinhas. Eu sabia que não era por maldade que o papá nos obrigava a trabalhar. No fundo do seu coração estava convencido de que a vida devia ter este rumo e que alterar o próprio destino era um pouco como fazer batota: ficava-se incompleto. Um burro que jamais se tornaria um cavalo, uma semente que jamais se tornaria uma árvore, um corpo sem raízes, e a raiz principal era ele, que nos havia gerado e que agora nos fechava com ímpeto no pequeno retrato que imortalizava a nossa família, obstinando-se a pendurar-nos na parede com um prego grande que riscava o reboco.

Na paz da manhã, a nostalgia de Giacomo transformava-se numa dor dulcíssima, uma dor cautelosa que saía em golfadas, como os caracóis depois da chuva. Entre as casas caiadas, ponteadas por cúpulas mouriscas, as vielas estreitas ainda sujas de mijo e de legumes podres, descobria a solidão. Pronunciava o nome e o apelido, Giacomo Pisanu, um sussurro, cinco, seis vezes, e, enquanto a voz me saía abafada, a nostalgia por tudo aquilo que nunca iria ter saía do meu corpo, como a areia quando nos imergimos na água do mar. Dissolvia-se escoando sobre aquelas lajes da calçada onde tinha dado os meus primeiros passos em criança e que agora me pareciam forasteiras.

– Vai ter com ele – disse-me uma manhã Angelina, enquanto o frio da madrugada me inturgescia os mamilos e me arrepiava a pele. – Vai, corre.

Eu assenti, improvisando uma careta indefinida, que era um pouco de embaraço, um pouco de desvanecimento e um pouco de alívio. De certa forma, sentia não dever esforçar-me mais por desempenhar um papel. O bem-estar de Angelina era-me suficiente para me restaurar a alma e a postura da outra Teresa, aquela que eu própria ainda não conhecia, a rapariga que, embora ainda frágil e inexperiente, se mostrava corajosa. Deixei-a de costas curvadas sobre a erva e enfiei-me pelos campos, percorrendo os caminhos de terra batida com o coração que batia descompassado. Foi como se o som do campo aumentasse repentinamente: solos de pardais escondidos dentro das oliveiras, rumores de lagartixas, uivos distantes de cães vadios, rajadas de vento que levantavam as folhas. Hesitei defronte do portão enferrujado da velha casa da makara antes de ir direita para a porta de entrada. Só mais quatro passos, disse para mim mesma, apenas quatro passos.

Recebeu-me o rosto da velha bruxa, que imaginava sentada sobre um cadeirão muito alto a sacudir a cabeça, porque, pobre de nós, não tínhamos ainda percebido que não controlávamos absolutamente nada, limitando-nos a dar voltas e mais voltas. Ainda que conseguíssemos repercorrer todas as encruzilhadas da nossa vida enveredando de cada vez por um caminho diferente, no final iríamos inexoravelmente dar ao mesmo ponto de partida.

Bati levemente. Ainda estava a tempo de mudar de ideias, mas Giacomo abriu de imediato.

– Olá, Tere’, sabia que virias.

As suas palavras, estranhamente serenas, causaram um silêncio instantâneo, pesado como as nuvens que carregam tempestade.

– Entra.

Limpou com um pano a mesa empoeirada e as cadeiras. No lava-loiça, três copos sujos de vinho e um prato meio cheio com restos de comida.

– Peço desculpa pela desordem, mas é raro receber visitas.

Também ele estava embaraçado e durante alguns minutos entre nós apenas houve aquele silêncio.

– Fala, Tere’, fala.

– Vi-vi-vim… – como quando era pequena, as palavras saíam-me a custo, interrompidas pela emoção e pelo medo, todas elas ordenadas na minha cabeça, perdiam-se pelo caminho.

– Sei o que tens para me dizer. Todos o sabem na aldeia.

Sabia de Angelina ou sabia também de mim?

O meu coração batia com força, sentia-o debaixo da camisa como um pardal assustado. Comecei a fazer a única coisa que resultava em criança: contar. Uma operação simples que me ajudava a acalmar a respiração, subtrair e somar números para não perder o contacto com a realidade.

Um, dois, três… uma respiração.

Quatro, cinco, seis… fala, Teresa.

Sete, oito, nove… qual é o teu dom, Tere’?

O avô Armando tinha o dom de contar histórias. O meu pai, o do silêncio. A avó Assunta, o da sabedoria camponesa. A minha mãe e a minha irmã, o da beleza. Eu? Tudo aquilo que vocês não disseram, vou dizê-lo eu.

Os meus pensamentos animavam-se com a vida da viela, seguiam os sussurros, contraíam-se e expandiam-se procurando elevar-se até a uma órbita mais alta para não sofrerem com o peso do corpo.

– A Angelina está apaixonada pelo filho do barão, diz que não quer fazer esta vida, que lhe causa asco. Todas as manhãs acorda aqui, mas está com a cabeça noutro sítio. Não sabe onde, mas não é neste mundo. Neste mundo não se consegue nada se não for arrancado a ferros. E ela está cansada de o ter de fazer. Não quer mais ter esta vida, Giacomo.

Ele permaneceu calado, esfregou o rosto, passando a mão dos olhos para a boca e novamente para os olhos, vermelhos de choro e encovados por olheiras profundas e arroxeadas. Eu estava à frente dele, imóvel, quase sem respirar. Desviei o olhar para reiniciar a contar, mas os números transformaram-se num elenco de móveis e de utensílios domésticos que enchiam a divisão e sobre os quais dirigia o olhar para não ver a sua dor. Três pavios sobre o louceiro, um odre, vasos de barro cozido na cozinha, um quadro de São Miguel esmagando o demónio. Do teto pendia uma corrente com uma lucerna, na parede um leque de sombras e uma luz cinzenta que lhe iluminava os olhos. Os seus eram claros, com pestanas muito grandes e arqueadas.

– Avisaram-me as pessoas da aldeia, Tere’, mas não quis acreditar. – Fez uma pausa longa, antes de iniciar uma procissão à volta da mesa. – Aquele ali é um canalha, Tere’ – retomou sem nunca parar de dar voltas. – Um canalha igual ao pai dele. Não és capaz de compreender, Tere’, não viste o que fizeram os capangas do barão nos campos, quando assassinaram u magghiatu. Vocês não podem compreender.

Deteve-se perto do quadro de São Miguel e fixou-o. Tinha os punhos cerrados, as maçãs do rosto pareciam despegadas da cara.

«Eu amo-te, Giacomo, não sei o que é o amor, mas sei que te amo.» Foi um cicio, uma confissão só para mim.

– Eu amo-a, Tere’, amei-a desde o primeiro instante que a vi. Diz-lhe. Diz-lhe tu isso. Em ti acreditará, és a irmã. Aqueles como o barão usam-nos e depois atiram-nos para o caixote do lixo.

Aproximou-se de mim e agarrou-me pelos ombros. Fui obrigada a olhá-lo nos olhos, ainda que me provocasse dor. Não era culpa dele e nem sequer culpa da minha irmã. Aquela ficção, aquele sentimento inocente que a distância entre nós protegia do contacto físico e dos perigos da minha confusão e da minha gaguez, era melhor do que a minha vida real e valia a pena preservá-lo. A minha mente fazia a conta a um conjunto de certezas simples: que ele existia, embora o seu coração pertencesse a outra; que me estava agradecido; que provavelmente se apercebia pela primeira vez da minha existência.

Desviei por alguns instantes os olhos na direção da janela, para além dos vidros embaciados, onde uma primavera precoce trazia os primeiros rebentos, e senti-me também eu assim, o fruto prematuro de uma estação enganosa, sem substância e sem sabor.

– Dir-lho-ei, Giacomo, prometo.

Abraçou-me e senti as pernas a cederem.

– Obrigado, Tere’, não sabes quão agradecido te estou.

Eis tudo o que me bastava. A sua gratidão e o amor da minha irmã. Uma ilusão quente e insensata, como em certos sonhos, nos quais revemos os mortos e, ao despertar, por momentos julgamos que ainda se encontram entre nós.


12 Mezza Pete: «no meio das pedras», em dialeto salentino. (N. do T.)