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– O que resta, Tere’? O que resta da nossa vida?
A mamã prende uma madeixa de cabelo atrás da orelha. Tem os braços cruzados sobre o peito e olha para fora da janela, para a velha viela da minha infância e juventude, que agora surge aos meus olhos de adulta infinitamente pequena.
– Não sei, mamã, imagino que restem as recordações. Tudo aquilo que fomos e que nos faz ainda estar vivos.
Apercebo-me de ter pronunciado o seu nome por completo, mamã, e, pela primeira vez, o pensamento de tê-la abandonado, decidindo viver a minha vida noutro lugar, faz-me chegar as lágrimas aos olhos. Agora que também sou mãe, a ideia de que a minha filha me abandone parece-me insuportável, ainda que saiba que a vida é mesmo assim. Vamos para aonde todos vão.
– Sempre foste diferente e eu não o compreendia. Pensavas com uma outra cabeça e nós éramos demasiado ignorantes para acompanhar-te.
Um retículo de rugas corre-lhe ao longo do rosto, a pele tornou-se pesada e bolsas flácidas tornam-lhe os olhos mais pequenos. Talvez que, a par da sua beleza, a sua condenação também tenha definhado. Talvez agora a mamã se sinta finalmente livre. Esfrega os olhos com a mão, depois ajusta a saia.
– Temos de lavar o teu pai, hoje o médico vem visitá-lo.
Ajudamo-lo a entrar para a banheira, por pudor cobre as partes íntimas com as mãos, mas não recusa a minha ajuda. Está magríssimo e as veias arroxeadas afloram a pele. Permanece estendido durante muito tempo com os olhos fechados.
– Posso lavar-te as costas?
Pergunto-lhe como se perguntaria a uma criança e ele assente sem abrir os olhos. Inclina-se um pouco para a frente para me permitir ensaboá-lo. Esfrego com a esponja para cima e para baixo atravessando os pequenos montes salientes de vértebras.
– Tens de contar a história da tua irmã, Tere’. Conta-la a todos, tu que tens o dom da palavra, figghia minha, é este o teu dom – repete-o como se soubesse que durante toda a minha vida o quis fazer.
Também o papá vivia atormentado pelos seus fantasmas. Sempre achei que a recordação o tivesse seguido constantemente, como um animal famélico que persegue a sua presa. O remorso morde-o. As feridas abertas sangram.
Ajudamo-lo a levantar-se e a mamã enxuga-o bem com a toalha, envolvendo com delicadeza todo o corpo e ajoelhando-se para chegar até aos tornozelos e aos pés.
– A sua pele parece papel de seda, às vezes ameaça rasgar-se.
Di-lo como se ele não estivesse presente, mas o papá fixa-me e anui. Nos seus olhos julgo distinguir o brilho de um tempo.
«Gosto muito de ti, papá», digo com o pensamento.
Nunca consegui proferir em voz alta frases destas, nunca disse ao meu pai quanto o amava, nem mesmo à minha mãe. Cresci numa época em que o amor não se expressava.
Vestimos-lhe o pijama e o papá faz sinal de querer sentar-se defronte da janela. Eu ponho-me atrás dele, enquanto a mamã me prepara uma chávena de leite.
– Quanto tempo ficas connosco, Tere’? – pergunta-me abrindo muito as palmas da mão sobre os braços da cadeira. Parece que falar lhe exige esforço e concentração.
– Não sei papá, o tempo que for necessário.
– A Giulia talvez precise de ti, sinta saudades da mãe. E o teu marido também…
– Também vocês precisam e a Giulia tem o seu pai.
Giulia. Quis que a minha filha vivesse longe dos lugares da minha infância, esperando assim protegê-la da vida que eu vivi, do negrume que manchou a inocência desses anos. Desejei construir em seu redor um pequeno universo fechado. Não conhecerá o rumor dos passos da mãe inquieta de noite, sozinha e à espera, o silêncio das ruas frias do lado de fora das janelas fechadas, os olhos malévolos, as jaculatórias sussurradas de boca em boca. A Giulia, não.
Repentinamente, o papá procura erguer o tronco para olhar melhor lá para fora.
– Lembras-te, Tere’? Recordas-te daquela manhã em que o barão esteve aqui?
Também eu fixo a rua para além das vidraças… Os assobios das crianças que correm umas atrás das outras pelas vielas repercutem-se nos meus ouvidos, um rumor de passos distantes. As vozes das comadres chegam até mim como uma cantilena petulante, um zumbido de vespas, abafando o ruído de alegria dos pequenos. Neste momento, parece-me que nunca cheguei a sair daqui. Sinto novamente à minha volta os sons familiares de então, e se fecho os olhos revejo-me jovem e frágil, com os cabelos finos da cor da uva luglienga e os olhos cristalinos, deslavados. Revejo o céu rasgado entre os telhados das casas.
– Recordo-me, papá, passou tanto tempo, mas é como se tivesse sido ontem…
Foi no verão de 1953. Eu, a Angelina e a mamã acabávamos de regressar do cinema onde tínhamos ido ver Pane, amore e fantasia13. Dessa vez até mesmo a avó Assunta nos acompanhara, curiosa por ver a Lollobrigida no papel de mulher enérgica e decidida.
– Sempre quero ver estas misses que mais parecem fadas – dissera ela.
Durante boa parte da tarde não tinha feito outra coisa senão persignar-se e recitar orações em voz baixa por causa do escândalo que era aquelas mulheres belas e suaves à mercê de homens fascinantes e românticos.
– O vosso pai em jovem também era assim belo – comentou a mamã.
– É verdade – acrescentou a avó. – Beddrho, beddrhissimo.
Durante os últimos meses, o papá recuperara a disposição de antigamente. Juntara-se às ligas vermelhas e tornara-se sindicalista comunista como u magghiatu. A ideia fazia arrepiar a mamã porque na aldeia continuavam a considerar que os comunistas eram gente estranha, uma raça extraterrestre e perigosa, ainda que as suas reuniões tivessem como objetivo fundar cooperativas para salvaguardar as condições de trabalho dos camponeses. Reuniam-se por turno em casa de cada um, e algumas vezes durante meses os encontros realizaram-se também em nossa casa. Nessas ocasiões, a nossa cozinha transformava-se um covil de fumo, de terra e de humores corpóreos. Giacomo participava igualmente nas reuniões, embora não se tivesse ainda completamente resignado ao desinteresse de Angelina.
– Deixa estar, Giacomino – tinha-lhe dito uma vez o papá –, que as mulheres sugam-te a alma.
Pela minha parte, eu habituara-me àquela condição manca, de ser um dos lados do estranho triângulo de vértices quebrados que nós três desenhávamos.
Na noite anterior ao encontro com o barão, o papá levou-me a mim e a Angelina até à Torre del Cardo. Recordo-me ainda do vento perfumado que provinha da terra e de o papá o inalar levantando o queixo por alguns segundos. Percebia-se que lhe dava prazer e paz, saía da pele e do ventre do Arneo, picava-lhe as narinas como o aroma do pão recentemente desenfornado.
– Já alguma vez vos contei sobre a primeira vez que o vosso avô me trouxe até aqui?
Fixei-o sem responder. Tinha os olhos entorpecidos por um coágulo de nostalgia e inquietação. Endurecera como uma das suas oliveiras seculares, a barba crescida e hirsuta. Assemelhava-se a um dos salteadores daquele lugar.
– Eu era criança e o avô contou-me a história da baronesa e do camponês que procurou desafiar a maldição.
Angelina não lhe dirigia o olhar. Observei nela o mesmo perfil tempestuoso do nosso pai, a mesma suscetibilidade austera que ergue muros de silêncio com as pessoas que amamos.
– O vosso avô explicou-me que os fantasmas perseguem-nos sempre e que cada um de nós tem os seus próprios. Algumas vezes têm inclusivamente um nome e um apelido, outras vezes, e esses são os fantasmas mais terríveis, trazem o nosso próprio nome.
*
– Vai depressa ter com o papá, Tere’, que ele está a chamar.
A mamã segura na mão a foto que os retrata aos dois no dia do seu casamento. Retirou-a do secretè e, enquanto a guarda novamente, limpa-a com a camisola de lã.
– Vai que ele está a chamar – insiste, e vou ter com ele muito devagar, pressentindo que não nos sobra muito tempo.
Deixo a mamã sozinha na cozinha. Sei que está a ver diante dela os seus mortos enquanto beija uma a uma as fotos que retira do secretè, provavelmente entregue às saudades, vertendo lágrimas atrasadas, subtis e miudinhas, porque é deste modo que os velhos choram. Choram dois choros, um sonoro e outro inconsciente.
Sento-me ao lado do meu pai que está estendido sobre a cama e ele agarra-me a mão.
– Vai buscar o meu fato bom – diz, arquejando muito.
É a terceira vez que nos pede para o vestirmos com o seu melhor fato. Quer estar pronto.
– Mã, o fato.
Ela observa-nos com um olhar circular e perdido, parece não se aperceber do que esteve a sussurrar às fotos, nem onde se encontra, de quem somos nós.
– Tenho de lhe contar tudo, Tere’. Desde o princípio, ou morro maldita.
Sei que está a falar dela e do barão, mas finjo não perceber. Então, retoma lentamente, sem chorar, a sua confissão aos mortos e aos vivos, a todas as gerações da nossa família.
É o papá quem a interrompe, levantando a custo a mão e fazendo-lhe um sinal para aguardar.
– Primeiro o fato, Tere’, e depois a história da Angelina. A morte pode esperar.
13 «Pão, amor e fantasia», comédia italiana realizada por Luigi Comencini, estreada em 1953 (em Portugal estrearia no ano seguinte), com Gina Lollobrigida e Vittorio De Sica nos papéis de protagonistas. (N. do T.)