3

Não tinha ainda sequer articulado qualquer resposta àquela declaração quando o papá entrou em casa. Aproximou-se da mesa com passo furioso, o rosto que lhe tremia como uma montanha em vias de desabar. Apercebi-me do seu hálito a vinho de taberna e observei as suas mãos com os dedos consumidos, ásperos como papel de lixa, e as unhas amarelecidas da cor das velas queimadas. As mãos do barão Personè eram alvas e suaves. O branco e o negro.

– Que significa isto, Cateri’? – Os seus olhos desviaram-se da mamã ao barão pai, e logo a seguir a sua voz fez-se novamente ouvir, desta vez com o fogo da raiva. – Que raio fazeis aqui?

O barão pai dirigiu-lhe um sorriso fingido.

– Não vos enerveis, senhor Sozzu. Estamos aqui para tratar de coisas belas, por causa do meu filho, Giuseppe Personè, herdeiro do barão Personè, que quer casar com vossa filha, Angelina Sozzu.

Que elo possível poderia existir entre o nome Sozzu e o dos Personè? O branco e o negro mesclar-se-iam num híbrido apagado, triste como as nuvens que carregam tempestade.

O papá contraiu o maxilar e os punhos e pôs-se a percorrer o espaço estreito da cozinha ao quarto de dormir, depois novamente até à cozinha. Era um espírito que vagueava sem rumo com uma pena por expiar. Angelina apertava os lábios para não desatar a chorar. Revi-a nua por entre as ondas de espuma do mar de San Giovanni. Sabia que faria o que quer que fosse para se sentir livre e não se tornar como a nossa mãe. Observei ambos, pai e mãe, e vi-os envelhecidos. Entre mim e eles senti uma distância abissal.

– Pegue nas suas coisas – explodiu o papá colocando-se diante do barão –, e saia imediatamente desta casa. Vá para o raio que o parta e nunca mais apareça nesta casa. Allu squagghiare te la neve, parenu li strunzi.14

– Nardi’, acalma-te, não é caso para falares assim.

– Em minha casa falo como quero e nem sequer a minha mulher me pode impedir de dizer aquilo que quero dizer.

– Talvez, senhor Sozzu, haveis esquecido que vos dirigis ao barão Personè em pessoa, e também estejais esquecido de quem é a terra sobre a qual todos os dias curvais as costas.

Os Personè e os Sozzu eram como a borra no vinho novo, e juntando-se gerariam apenas árvores estéreis e secas.

– Já vos disse para sairdes de minha casa – gritou, com as veias que se dilatavam como foles no pescoço.

Os perdigotos saltavam para a cara do barão, que extraiu um lenço branco do bolso do casaco e limpou-se com cuidado. Quando se levantou reparei que ultrapassava em estatura vários centímetros o papá, mas provavelmente também porque o meu pai começara já a ficar corcovado e a afoiteza da juventude tinha sido precocemente substituída pelas brumas da velhice.

– E pensais ser um bom pai e um bom marido? Olhai! Olhai para as vossas mulheres, três flores que haveis cortado antes do tempo.

Escrutinou-nos uma a uma e no seu rosto era evidente, como se um feixe de luz tivesse descido do céu para o iluminar, que lhe causávamos dó.

– Saí de minha casa! – Desta vez o papá soletrou cada palavra, para que cada uma delas fosse inequívoca.

– Senhor Sozzu, não podeis impedir a vossa filha de se casar com quem quiser.

Foi o jovem Personè quem o disse. Era a primeira vez que ouvia a sua voz e agradou-me imediatamente, porque tinha notas quentes e doces.

– E quem o diz? Vós?

O jovem barão era mais pequeno do que o papá, possuía ainda as costas magras de um rapazinho e um rosto demasiado jovem para incutir medo.

– A minha filha jamais casará convosco.

– Isso é o que vamos ver – replicou o barão pai.

Angelina era a punição do meu pai, pelas suas ideias socialistas, pelas revoltas, pelo ódio destilado nos anos das revoltas.

Diante daquela afronta ficámos todos em silêncio, aguardando que os Personè saíssem de nossa casa, com um sorriso nos lábios, e fixámos, mudos, o pavimento lascado. Nos nossos olhos havia um esvaecimento que ia além da estupefação, era uma racha recém-aberta, uma fenda que ameaçava dividir em dois o nosso mundo.

*

Foi Angelina a romper o silêncio:

– Papá, eu amo-o, e quero casar-me com ele.

Tive a sensação de que apelava a toda a sua força para bloquear as outras palavras que fremiam por sair do fundo da garganta.

O papá levantou a mão para lhe bater. Aqueles meses haviam instigado nele uma ira sempre pronta, bastando-lhe um pequeno estímulo para irromper em ataques violentos. Daquela vez, porém, recolheu a mão, vencido por um cansaço repentino.

– Estou exausto, vou deitar-me.

– Nardi’, temos de falar.

A mamã retirou o lenço da cabeça e lançou-o para cima da mesa, enquanto Angelina chorava e abanava a cabeça. Os pensamentos iam numa direção e as lágrimas noutra, não conseguia reuni-los num único ponto ou pará-los. Chorava apenas, e os motivos para fazê-lo eram muitos, mas partiam todos de um mesmo lugar: a nossa estirpe.

Um Personè e um Sozzu não podem estar juntos.

O papá limitou-se a pronunciar aquele axioma irrefutável, depois desapareceu por detrás da cortina que separava o quarto de dormir da cozinha.

Uma vez mais ficámos nós três sozinhas, a mãe e as filhas. Teria sido mais simples se eu e Angelina tivéssemos ficado paradas na infância, sem pertencer àquele mundo de mulheres com o caminho já traçado, bonecas de corda em fila ao longo de um percurso que não pertencia a coisa nenhuma ou a ninguém.

– Angelina, minha filha, já sabes como é o teu pai, zanga-se mas depois passa-lhe.

– Não lhe passará, mamã, tu sabes bem que não. Ele odeia os Personè, mas o Giuseppe nada tem a ver com eles, ele não é como o seu pai, ele trata-me como uma senhora.

– A árvore não cresce longe da semente, Angeli’. – Fui eu quem o disse, pensando nas palavras de Giacomo. – É o que a avó Assunta também diz – concluí.

– Tere’, como é possível dizeres isso? Nem sequer tu me percebes? Porque é que finges ser tão bem-comportada quando se trata de mim se não és sequer capaz de ser sincera quando se fala sobre ti? Já disseste à mãe sobre o Giacomo? Sabias que a tua filha está apaixonada pelo sobrinho da makara? Sabias, mãe? Fiz-te um favor ao não querer casar com ele e é assim que me agradeces? A verdade é que estou sozinha, completamente sozinha.

Pegou no vestido e saiu a correr sem acrescentar mais nada. Tive apenas tempo para distinguir que as lágrimas se transformavam em soluços e tive a certeza de ter sido cruel com ela.


14 Em dialeto salentino no original. Provérbio cuja tradução literal é: «A neve ao derreter põe a merda a descoberto», e cujo equivalente em português é: «A verdade vem sempre ao de cima.» (N. do T.)