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Era já noite escura quando a mamã acordou o papá.
– Levanta-te, Nardi’, que a Angelina ainda não voltou.
Ele abriu os olhos e fez a expressão de um homem que estava noutro lugar. Olhou em redor com olhos esgazeados e esfregou-os demoradamente para limpar as remelas que lhe ofuscavam a vista.
– Que quer dizer, ainda não chegou?
– Quer dizer precisamente isso, Nardi’, que a nossa figghia fugiu e ainda não voltou. É já noite, Nardi’, eu e a Teresa procurámo-la por todo o bairro e nada. Ela aqui não está, Nardi’.
Havíamos procurado pelas vielas, afastando cardos e tamargueiras que cresciam junto das casas, saltando sobre pedaços de muros e de telhas partidas acumulados ao longo das ruas. A noite estava fresca e o vento perfumado do Arneo infiltrava-se pelos pátios, cobrindo o cheiro a bafio que emergia das caves. Em outras circunstâncias, seria uma noite maravilhosa, mas sem Angelina eu sentia o ar a faltar-me, antecipando já o vazio que ela deixaria atrás de si.
– Vamos ter com o Giacomo, ele ajudar-nos-á a procurá-la e talvez lhe devolva a razão. Addù servenu li fatti nu bastanu le parole.15 Depressa!
Coitado do papá, ainda acreditava que o sobrinho da makara, como a sua tia bruxa, conseguisse ler os pensamentos das pessoas e alterar o seu destino.
Encaminhámo-nos os três pelo trilho do bosque, cada um segurando uma vela na mão. Não sentia medo, os ruídos dos animais não me amedrontavam, nem o barulho dos pássaros entre os ramos das árvores nem o som estridente da coruja. O que realmente me assustava era o que viria depois, como tudo seria diferente.
Não sei que horas eram quando chegámos a casa de Giacomo. Uma lua redonda brilhava num céu sem estrelas. Ao longo da parede da casa da makara as ferramentas de trabalho estavam todas ordenadas e penduradas em ganchos, a horta verdejava de alfaces e as janelas estavam todas escancaradas. O papá bateu suavemente à porta para não assustar Giacomo.
– Tens de vir connosco, a Angelina desapareceu.
Repetiu aquela frase de modo grave mas sem gritar, até que se ouviram os passos de Giacomo.
– Que queres dizer com desapareceu? – perguntou-lhe de modo lúgubre e comovido, ajeitando o cabelo diversas vezes.
– Isso mesmo, Giacomo, fugiu e ainda não regressou.
Giacomo retirou uma camisa do cabide e vestiu-a à pressa.
– Procuraram-na pelo bosque?
O papá fez sinal que não.
– Só consigo imaginar um único sítio aonde possa ter ido – acrescentou, ajustando mais ou menos a camisa dentro das calças. Virou-se e fixou-me e nesse olhar de compreensão muda reconheci o peso da minha promessa.
– Nardi’, vamos ver à Torre del Cardo. Não terão sido os fantasmas dos salteadores que apanharam a minha filha e a levaram?
– Que está a dizer, senhora Caterina? Fantasmas? Salteadores? Devemos temer os vivos e não os mortos.
Toda a sua natureza moderna veio ao de cima, o ódio pelas superstições e os rumores. Tinha o mesmo sangue de uma bruxa, mas detestava as mezinhas, as maledicências, as histórias sobre seres improváveis que habitavam o espaço existente entre os vivos e os mortos.
– A minha tia lia as borras do café, eu, pelo contrário, acredito que somos nós que escolhemos o nosso próprio destino.
Refleti sobre os inúmeros estratagemas da cultura popular para intervir no destino: não passar debaixo de escadas, porque dá azar; comer o coração da andorinha para atrair a sorte; não deixar cair sal sobre a mesa, pois podem acontecer coisas más. As palavras, os medos, as fobias perpetuavam-se de boca em boca e cada um de nós, de modo inconsciente, preparava com as suas próprias mãos a armadilha que o haveria de aprisionar na transição para a idade adulta.
– Se a Angelina fugiu é porque foi ter com ele – insistiu Giacomo.
– Não pode ser, a minha filha sozinha em casa do barão?
A mamã persignou-se, porque aquela possibilidade representava um perigo ainda maior do que os fantasmas dos salteadores. Bastou um instante para a minha mente me pregar a partida de me fazer recuar ao preciso ponto onde aquela história tinha iniciado. A mamã não se apercebeu de que, à luz fraca da vela, eu lhe espiava o corpo, o cinzento e o azul dos olhos, as torrentes rugosas em redor deles, e procurava recordar-me dela, da sua figura no dia em que se foi oferecer ao barão. O seu vestido de cor clara justo no peito, o fio de azeite com o qual molhou os lábios, os cabelos cuidadosamente penteados. O laço branco no cabelo de Angelina. O tempo estava reunido dentro de uma bolha, ela estivera aqui e estivera lá, estivera em baixo e estivera em cima, tinha dado voltas para regressar ao mesmo pecado. Toquei com as mãos nas fontes que me doíam. A minha mãe era como a Angelina, a Angelina era como a minha mãe, eram duas faces do mesmo encantamento cruel.
Até mesmo a herdade dos Personè era igual ao que eu recordava dela: a grande casa de açúcar que em criança me parecia um palácio de reis e rainhas. O papá fez soar ruidosamente o pesado batente em forma de sereia, a seguir Giacomo fez o mesmo, e, por último, a mamã. Era um mundo silencioso de janelas fechadas e luzes apagadas. Vista assim, deste lado do sólido portão embutido, mais parecia uma casa abandonada.
– Angeli’, Angeli’ – começou a gritar o papá. – Deixa sair a minha filha, canalha, ou eu mato-te com as minhas próprias mãos.
Começou a bater com ainda mais força, enquanto Giacomo recolheu do chão algumas pedras e as atirou contra as paredes e as janelas da casa.
– Minha filha, não nos faças isto!
A mamã agarrou os cabelos com as mãos e começou a puxá-los desesperadamente, como se pretendesse arrancá-los:
– Morro maldita – gritou.
– Angeli’, não nos faças isto – sussurrei.
Giacomo ouviu a minha prece e, desencorajado, deixou as pedras que segurava caírem no chão. Parecia inacreditável, mas o seu sonho tornara-se o meu. Para mim, Angelina pertencia a uma dimensão ainda maior, a um lugar indefinido da alma no qual estava bem radicada a certeza de que a minha salvação estivesse subordinada à sua. Estava dividida entre o meu corpo que queria fugir e a minha cabeça que queria ficar.
Alguns instantes depois chegaram os capangas do barão com a espingarda de dois canos a tiracolo.
– O barão manda dizer que ou vos ides embora ou vos manda prender.
O papá aproximou-se dos preciosos embutidos de ferro forjado e agarrou-se a eles, tentando arrancá-los.
– Digam ao barão que ou me devolve a minha filha ou mato-o.
Um dos capangas esboçou um sorriso zombador revelando uma fila de dentes partidos. Juntou-se-lhes um terceiro que trazia pela trela dois cães a rosnar.
– E não tenteis saltar o portão ou os cães despedaçam-vos.
Não acrescentaram mais nada, olharam para cada um de nós, libertaram os cães e foram-se embora. O papá e Giacomo ainda procuraram abrir o portão, mas os cães atiraram-se contra eles salivando.
– Não há nada a fazer, a Angelina está perdida. – A mamã pronunciou estas palavras e ficou prostrada como um trouxa de roupa. – Tere’, pelo menos vem tu aqui para perto da tua mamã.
Sentei-me junto dela, abraçando-a.
– A culpa é toda minha – prosseguiu. – Fui eu a causa de ela ser assim, passei-lhe a minha raiva por esta vida.
– Mamã, a Angelina é aquilo que é, não és culpada de nada.
– Uma mãe tem sempre culpa, minha filha, não te esqueças disso. Sempre.
Pareceu-me mais pequena debaixo do fardo dos remorsos, arrastada para a cave onde o tempo passa lento e venenoso, sempre igual, também ela aprisionada nessa mesma caixa estreita que me continha a mim e Angelina.
Esperámos pelo amanhecer deitados sobre o empedrado, exaustos e silenciosos. Adormeci durante alguns instantes e sonhei comigo e com Angelina no mar. Um reflexo de luz fazia cintilar os seus olhos. No meu sonho, a minha irmã sorria e eu também me sentia feliz. O mar estava calmo, só de quando em quando ofegava, como alguém que se vira e revira na cama.
Quando reabri os olhos tive a sensação de que a imagem que via avançar na minha direção saía diretamente do sonho. Era Angelina vestida com uma camisa de noite rendada muito branca, com um corte a direito que lhe caía abaixo dos joelhos. O branco contrastava e tornava ainda mais nítido o fato preto do barão filho que caminhava ao seu lado. Atrás dela, no céu da manhã recortavam-se algumas nuvens e em redor ouvia-se unicamente a algazarra dos pardais que se atropelavam nas árvores. Interrogava-me se existiriam nuvens ou mesmo pássaros nos sonhos.
– Angeli’, Angeli’ – gritava a mamã.
À época, os seus gritos causavam-me ternura, mas só agora que também eu sou mãe posso compreender como se sentia ela verdadeiramente, com aquele portão embutido, os cães raivosos e as espingardas dos capangas a separá-la da sua filha. Agora compreendo que não era somente dor, mas lâminas que lhe esquartejavam as vísceras. Angelina era real, assim como o barão ao seu lado.
– Canalha, devolve-me a minha filha – continuou.
O sol da manhã desenhava-lhe um halo de fogo nas costas. Também ela era um pequeno ponto de luz. Angelina avançava na nossa direção, tinha os olhos em lágrimas e os lábios tremiam-lhe.
– Lamento – disse –, mas não me restava outra solução.
Estávamos todos os quatro em fila, de pé atrás do precioso portão da vila do patrão, e ela do outro lado. Contudo, havia muito mais a separar-nos. Nas costas da minha irmã nuvens ligeiras passavam incertas perseguindo o voo dos pardais e das pegas, indicando espaços desconhecidos, mais vastos, etéreos. Talvez Angelina corresse ao nosso encontro, divisava-a agora nítida, corpórea, iluminada pela sua candura, diáfana, ligeira como aquelas nuvens, feita da mesma essência do sonho. Tinha-a perdido, e a consistência dessa consideração era como um murro com força que me contorcia o estômago.
Olhou-me com olhos compadecidos, como se me estivesse a dizer: «Consegui, Tere’, agora é a tua vez.»
– Devolve-me a minha filha.
Desta vez foi o papá a dizê-lo, com uma voz entrecortada, com o mesmo tremor de quando devia colocar a sua assinatura num documento. Uma escrita insegura que resvalava sobre a folha, salpicando-se e liquefazendo-se.
«Não te preocupes, papá, estás a ir bem», murmurava sempre quando o via mover de forma insegura a pena. Grande e forte, não era nada diante de uma folha impressa. O barão filho provocava nele o mesmo efeito de uma folha escrita, porque trazia desenhada na testa a pior fórmula possível, a sentença inequívoca: «Tu és um campónio e eu um barão.»
– Lamento, senhor Sozzu, a vossa filha passou a noite aqui e agora pertence-me. Sabeis bem o que todos diriam se lha restituísse. Seria a sua vergonha.
O scuorno.
Giacomo começou a dar pontapés às pedras e agarrou-se com violência aos embutidos do portão.
– A nós não nos interessa para nada a vergonha. Devolvei-a ao seu pai e à sua mãe.
O scuorno estava em todo o lado. Vergonha e maledicência. Maledicência e vergonha.
Lembrava-me bem quando a avó Assunta me contava a mim e a Angelina como, durante os anos da guerra, a malalegna perseguia a nossa mãe. Imaginava-a então, não como algo inanimado, mas como um corpo, um corpo capaz de alterar o seu estado, de passar debaixo das portas, esconder-se detrás de odres e tinas, libertar-se dos subterrâneos mais profundos.
A mamã agarrou-se ao braço do papá. Estava exausta.
– Nardi’, já não há nada que possamos fazer, a coisa está decidida.
Em seguida, olhou para Angelina, escrutinou o seu rosto. Fi-lo igualmente, procurando no rosto da minha irmã as pegadas que o destino havia já traçado nela.
– Lamento, mamã, perdoa-me. Quanno lu diaulu te ’ncarizza, l’anima ne ole.16 Perdoa-me tu também, Tere’.
Foi o último olhar de piedade que a mamã lançou à sua filha. Os lábios estavam retraídos, colados às gengivas e abrindo uma leve fresta que se assemelhava à última inspiração dos moribundos. Um murmúrio dulcíssimo, como uma prece muda.
– Perdoa-me, mamã.
Foi tudo aquilo que Angelina conseguiu acrescentar. Pouco depois tornar-se-ia a baronesa Personè. Eu sabia apenas que a tinha perdido. Naquele preciso instante, naquele jardim que parecia ameno em termos de cores e de sons, abria-se uma ferida profunda na minha barriga. Sentia em cima a tristeza da carne e na cabeça ressoava-me a habitual cruel lengalenga: «Conheço-te, tu não me és nada.»
15 Provérbio da região do Salento, sem correspondente em português, cuja tradução literal é: «Quando é preciso agir, as palavras não chegam.» (N. do T.)
16 Provérbio regional, sem correspondente direto em português, e cuja tradução literal é: «Quando o Diabo te acaricia é porque deseja a tua alma.» (N. do T.)