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– Como está o papá?

Angelina sentou-se ao lado da avó Assunta, que a fixava e de vez em quando levantava a mão para lhe acariciar o rosto e os cabelos. Não chegava, porém, a tocar-lhe, limitando-se a desenhar os seus contornos, como um pintor no ato de tirar as medidas para a sua obra.

– Está bem – disse a mamã, escondendo que estivesse naquele grau de mutismo que nos torna indiferentes a tudo, uma forma de ausentar-se sem ter de atravessar nenhuma porta. – E tu como estás? – perguntou-lhe como resposta.

Angelina sorriu com os olhos lacrimejantes. Desconhecia que a nossa mãe saía todas as tardes percorrendo o caminho que a levava à herdade branca sem nunca chegar até ao portão, sem nunca usar o batente em forma de sereia, contemplando apenas à distância as paredes que continham o corpo de sua filha, esperando vê-la surgir por detrás de uma árvore, ou de divisar o seu perfil através da transparência de um cortinado. Quando regressava a casa, o seu pé batia com força no tear e a dor deslizava para este, deixando no rosto marcas da sua passagem.

A mim, pelo contrário, acontecia-me com frequência sonhar, e nestes sonhos havia uma jovem mulher que era ela, mas ao mesmo tempo não era, uma mulher de cabelos louros e sedosos que pareciam os meus e com o rosto de Angelina. Ouvia-se um riso que se iniciava em surdina como uma queda de neve que é primeiro ligeira e que depois se torna um grande nevão, um riso de mulheres que repentinamente se silenciava. Fazia igualmente vento. Um vento mistral frio e cortante que fustigava as árvores. Vozes de homens e de mulheres que se atropelavam, abafadas por uma melodia, uma música que eu e Angelina ouvíramos uma vez no cinema, doce e lancinante. Surgia e desaparecia, até tudo se transformar em escuridão, uma escuridão de cores e de sons, e nesse instante eu acordava. Gritava o nome da minha irmã, mas ela não estava ali. Procurava-a com os olhos, antes de retomar contacto com a realidade e me recordar da sua perda.

– Angeli’, minha filha, tenho de te mostrar uma coisa antes de te ires embora.

Vi a mamã desaparecer para o espaço apertado do quarto de dormir da avó Assunta, um quarto sempre na penumbra, que em pequena me aterrorizava por causa dos quadros com imagens lúgubres de santos pendurados nas paredes com cordéis. Telas grandes e escuras, para dentro das quais me sentia engolida. Vimo-la reaparecer com o vestido branco de noiva pendurado numa cruzeta: uma nuvem de espuma que nas suas mãos parecia ainda maior.

– Este é lu vestitu que usei quando casei com o teu pai.

Antes que Angelina tocasse nele, a Ti Nenenna, Lollina e até mesmo a avó Assunta passaram-no de mão em mão, apreciando o tecido e acariciando as rendas. A Lollina vieram-lhe as lágrimas aos olhos.

– Anna – comentou a avó com expressão pateta –, não me disseste que ias casar.

Vi no rosto de Angelina a mesma expressão estupefacta e feliz com que ficava em criança perante uma boa surpresa.

– Que fazes, mamã, eu não mereço usar o teu vestido. Olha como é belo, Tere’, mas eu não o mereço, pois não?

A mamã alisava e tornava a alisar a bainha, que tinha escurecido. No plissado existiam auréolas cinzentas que procurava limpar com a saliva.

– A minha filha vai casar-se e eu sempre disse que o meu vestido ia para a primeira das minhas filhas que se casasse.

Angelina abraçou-a e chorou tanto e com tanta emoção que todas nós acabámos por imitá-la. Chorava inclusivamente a avó Assunta, que não guardava memória dos Personè e da sua estirpe. Pus-me a pensar que a minha irmã escolhera o seu caminho e que agora talvez tivesse chegado a minha vez de o fazer. Disse para mim mesma: «Tenho de estar contente, a Angelina é feliz, e eu também o devo ser. Amanhã, um dia de sol, o vento fresco nos cabelos, o campo luxurioso e a aldeia calma e acolhedora. Tenho de ser feliz.» Repeti-o a mim mesma uma e outra vez, e quanto mais o repetia, mais as imagens se amontoavam na minha mente. A cozinha enegrecida, o chão de pedra descorado, os excrementos de galinha que sujavam o pátio, os meus vestidos desbotados e os sapatos com a sola descolada. Um conjunto de imagens que me agrediam. O batimento do meu coração acelerava e as pernas tremiam-me. A névoa de um beco sem saída toldava-me a vista.

O papá chegou naquele preciso momento, silenciado perante o cenário de todas aquelas mulheres a chorar. Comecei a tremer enquanto distinguia em seu redor o halo da solidão que envolvia toda a sua figura e lhe endurecia o rosto.

– O que é que se passa aqui?

– Papá, vim ver a avó. Soube que não estava bem, que falava à toa.

Ele fitou-a com os olhos cinzentos apagados.

– Não se sabe o efeito que pode causar a dor em determinadas pessoas. A ideia de uma neta que se casa com o filho de um cão pode levar à loucura.

– Que estás a dizer, Nardi’? – perguntou a mamã franzindo a testa.

– Aquilo que ouviste. Angeli’, alguma vez perguntaste à avó como morreu o seu pai?

Angelina deu um estalo com a língua no palato e olhou para a avó, a qual, porém, estava concentrada a observar as suas próprias mãos. Levantava-as no ar e inspecionava-as, como se aqueles dedos e o corpo inteiro não lhe pertencessem, tendo portanto necessidade de os estudar com atenção e familiarizar-se com eles.

– Tu sabes, mamã?

A mamã baixou o olhar, fixando um ponto qualquer do chão.

– Saiam – ordenou o papá à Ti Nenenna e a Lollina.

As duas, que já se tinham habituado a esta nova faceta do meu pai – repentina e sem consideração por ninguém –, apressaram-se a sair.

– Mataram-no como a um cão, Angeli’, com dezassete facadas. Era o feitor do velho barão, o avô do teu amado Giuseppe. – Cuspiu para o chão, enquanto pronunciava o seu nome. – O barão acusou-o de lhe ter roubado dinheiro, mas o verdadeiro motivo foi não suportar que os jornaleiros lhe obedecessem mais do que a si. Foi sempre um homem ávido e de carácter terrível. O teu bisavô regressava dos campos e os capangas do barão intercetaram-no e cravaram-lhe com a faca na carne dezassete vezes.

A avó Assunta observava a rua através das vidraças e sussurrava o nome Anna, ao de leve, como uma oração.

– É deste monstro que o teu futuro marido descende, nunca mais te esqueças, Angeli’, e recorda-te também sempre que a árvore não cresce longe da semente.

O vestido caiu das mãos da mamã. Eis o que era o mal. Anna era o bom, o barão, o mau. Na mente da avó Assunta, que agora raciocinava com a inocência da infância, existiam os bons e os maus, o branco e o preto. A sua mente apagara os infinitos matizes que existem pelo meio, libertando-se deles como nos libertamos de trastes inúteis.

– E agora vai-te embora – intimou-a o papá. – Uma filha que se une àquele canalha já não é minha filha.

Sem qualquer razão, enquanto via Angelina sair porta fora lavada em lágrimas, tive de repente uma recordação, uma imagem de mim e de Angelina meninas, quando ela despertava de um mau sonho e eu não lhe bastava para consolá-la. Saíamos então as duas da cama e, de mãos dadas, afastávamos a cortina grossa de cânhamo e detínhamo-nos defronte da mamã e do papá. Na minha recordação, estávamos apenas vestidas com umas cuecas brancas largas nas virilhas. «Que aconteceu?», perguntava o papá. «A Angelina teve um sonho mau.» «Não é nada», dizia ele, «nos sonhos as coisas más não acontecem de verdade. Fechem os olhos e pensem em coisas boas que tudo passa.»