10
Era o dia da festa de São José. A banda de música tocava no coreto, em frente ao palanque os velhos acompanhavam o ritmo batendo com as mãos, enquanto os casais mais jovens arriscavam alguns passos de dança. As crianças eram as mais excitadas, não demonstravam quaisquer sinais de cansaço, ziguezagueando entre as pernas dos dançarinos e saltitando como grilos eufóricos. Nem uma aragem soprava, o meu vestido às flores colava-se-me à pele e entre as coxas. O vestido era parecido com o que tínhamos escolhido para a avó Assunta, o mesmo que ela tinha usado no dia da primeira comunhão de Angelina.
Eu e a mamã acompanhámo-la durante o trajeto; ela levava as mãos no regaço e, às comadres que passavam por nós e a cumprimentavam, ia acenando com a cabeça ora para um lado ora para outro, como um papagaio, e sorria. Inventava um nome para cada uma delas, confundindo-as ou evocando comadres do seu passado:
– Esta é a comadre Rosettta, que apanha do marido. Esta é a comadre Nannina, que, ao invés, durante a guerra pôs os cornos ao marido. Que estás a dizer, Anna? Aproxima-te que não te oiço. Tens de voltar para casa? Espera só mais um pouco, fica aqui ao pé de mim, que estes aqui deixam-me sempre sozinha.
Tínhamos passeado com ela pela viela até à praça, depois a mamã acompanhara-a a casa.
– Vai, Tere’ – disse-me ela –, que os jovens precisam de se divertir.
Voltei-me para trás algumas vezes para observá-las, a mamã reposicionava-lhe a cadeira para que a luz do sol continuasse a incidir sobre ela.
Decidi fazer uma paragem na Igreja de São José. Um círculo de corpos enchia o adro, e em cada um dos lados da porta duas mulheres gorduchas, vestidas de negro, vendiam velas com a imagem do santo padroeiro e livrecos sobre a vida dos santos. Deixei que a multidão me arrastasse para o interior da igreja. Uma luz intensa fendia os vitrais, inundando as naves com uma velatura azulada. Os meus olhos estavam ainda tão ofuscados pela luz do sol que à primeira vista não consegui distinguir mais do que imagens confusas e uma grande mancha de sombra. Só alguns minutos depois, após ter esfregado e voltado a esfregar os olhos com as mãos, cada coisa se recompôs: as naves, o altar, o crucifixo, as capelas e o confessionário. Então baixei o olhar, sentindo em cima de mim a opressão das bocas que respiravam ao meu redor e os corpos acalorados que difundiam os seus humores perto do meu. Apoderou-se de mim uma sensação de vertigem e fugi dali, pedindo desculpa a São José: «Por favor, San Giuse’, faz com que a minha irmã seja feliz.»
Desde modo, acelerei o passo com o propósito de alcançar a praça, cumprimentando durante o percurso Dom Beppe, que resmungava à porta algumas palavras por entre a barba que entretanto tinha deixado crescer.
– Dê os meus cumprimentos à baronesa – proferiu, engolindo apressadamente aquilo que antes estava a dizer, e os compadres à sua volta desataram a rir-se.
Sentia a respiração e os risos deles nas minhas costas. Causavam-me arrepios.
Foi enquanto a banda tocava que a vi: Angelina de braço dado com o barão, ambos belos, de uma beleza desconhecida por aqueles lados. Tinha intuído que ela estava a chegar pelos cicios passados de boca em boca atrás de mim. Tinha os olhos baços e os lábios contraídos. Deveria ter percebido, Angeli’. Deveria ter entendido. Ao invés, fui simplesmente ao seu encontro para a beijar. O seu marido dirigiu-me um sorriso de circunstância sem lhe largar a mão, que ela mantinha apoiada no braço do seu esposo. Ao início desenrolou-se uma cena muda.
«O que se passa, Angeli’? Faltam-te as palavras ao lado do teu marido?», sussurrei para mim mesma.
– Como estás? – perguntei-lhe de seguida para quebrar o silêncio.
– Bem, e tu?
Anuí, dirigindo de imediato o meu olhar para o seu vestido de seda da cor dos pêssegos maduros, para as duas florezinhas postas entre os caracóis do seu cabelo, para o lenço cinzento que usava em redor do pescoço.
– Angeli’, agora és mesmo uma diva do cinema. Aliás, elas nem sequer se assemelham a ti.
Chegou o papá com os outros compadres do sindicato. Tinham estado a beber e, provavelmente, o papá mais do que todos os outros. Aproximou-se com o cabelo empomadado, penteado para trás. Começava a ficar ralo sobre as têmporas, evidenciando uma grande testa. O fato estava todo amarrotado e as pernas magras bailavam dentro das calças.
– Boa tarde, senhor barão – cumprimentou com um riso escarninho, depois virou-se para os compadres para que estes se juntassem a ele.
– Papá, estiveste a beber – disse Angelina, abarcando com os olhos toda a praça, esperando manter à distância os olhares curiosos dos outros só com o pensamento.
– Inclino-me perante o novo barão Personè, que estudou no Norte e é proprietário de todas as terras de Cupertino, e da baronesa Personè, que um tempo tinha o apelido Sozzu, mas que agora já ninguém conhece.
Segurava um copo na mão, cheio até metade com vinho, e fez o gesto de erguê-lo enquanto dobrava o joelho.
– Senhor Sozzu, isto é uma festa, e estais a expor-vos ao ridículo.
Permaneceram todos calados durante alguns momentos, depois o papá desviou o olhar para Angelina. O sorriso da bebedeira desapareceu por um instante e os olhos tornaram-se brilhantes.
– Angeli’… – começou a dizer. Depois uma criança, um dos pequenos que se divertiam a ziguezaguear entre as pernas dos presentes, inadvertidamente deu-lhe um encontrão. O vinho entornou-se no fato do barão, que largou a mão de Angelina e abriu os braços.
Os capangas, empoleirados como corvos na periferia da praça, chegaram num instante. O papá ficou com o copo vazio na mão a olhar para o líquido avermelhado que sujara o fato de cor clara do barão.
– Senhor barão – exclamaram os seus capangas.
Ele abriu novamente os braços.
– Não é nada, podem ir, foi um acidente.
Angelina agarrou na minha mão e, aproveitando a distração do seu marido e do nosso pai, levou-me embora dos risos, das jaculatórias sussurradas por detrás de mãos postas sobre a boca, da banda que não cessara de tocar.
Descalçou os sapatos de salto alto e as duas corremos pelas vielas esvaziadas de mulheres e homens, povoadas apenas por velhos que, de longe, sentados à soleira, esperavam que alguém passasse para lhes trazer notícias sobre a festa. «E como é a banda? E como é a estátua do santo? E a praça engalanada?»
Agora, voltavam-se todos para observar as irmãs Sozzu que corriam de mão dada. Angelina soltou o cabelo, que lhe chegava até às nádegas.
– Para onde vamos, Angeli’?
Perguntei-lhe sem querer sabê-lo de verdade, e entretanto fixava-a, os olhos, os cabelos, a curva do queixo, a figura esbelta, delineada pela seda que lhe roçava na pele.
Deixámos para trás as casas e as vielas, correndo, até que em nosso redor apenas existia o tranquilo cricri dos grilos. Levou-me até à Torre del Cardo. Chegámos exaustas e ofegantes, deitámo-nos no chão a olhar para o céu tingido pelas pinceladas cor de laranja e rosa do crepúsculo.
– Tenho saudades tuas, Angeli’.
– E eu tuas.
– Como é a vida de baronesa? Nunca me contas nada. Porque é que nunca contas?
Ela esperou alguns segundos antes de me responder e depois disse-me:
– Não é aquilo que eu imaginava ser.
– Porquê, Angeli’, não estás contente?
Procurou a minha mão, ali sobre a erva húmida, e apertou-ma com força.
– Tere’, recordas-te da boneca de trapos? Como é que ela se chamava?
– Ninetta – respondi, depois olhei para ela e tive a sensação de que o seu rosto tinha começado a liquefazer-se como uma aguarela demasiado diluída.
– Alguma vez te sentiste igual à Ninetta? Como uma boneca de trapos?
– Sim, Angeli’.
– Ninetta – sussurrou antes. – Recordo-me que certas vezes a apertava com tanta força que julgava que ela se esfarrapasse nas minhas mãos. Sacudia-a de um lado para o outro, até quase decepar-lhe a cabeça.
– E tu, Angeli’, também te sentes como a Ninetta?
Fixou-me durante alguns segundos.
– Sim, Tere’, eu sou como ela. Ninetta, Ninetta – começou a dizer em voz baixa, depois cada vez mais alto, a única voz humana naquele silêncio. Quatro, cinco, seis vezes e, enquanto o repetia, a tristeza vertia-se pelo seu corpo abaixo e derramava-se na terra del Cardo, no meio dos fantasmas dos salteadores, que velavam sobre nós do alto da torre.
– Angeli’ – murmurei –, Angeli’.
Depois começou a chover.
– Agora tenho de ir. Tenho de voltar para o meu marido. Ele fica zangado quando vou passear sozinha.
Observava-a e vinha-me à memória a irmã da avó Assunta, que eu nunca chegara a conhecer. Imaginava-a tal e qual como ela, os seus olhos com o fundo negro das coisas inanimadas que espelhavam uma ausência, a boca que introduzia discursos que nunca chegavam ao âmago da questão, as alusões a coisas iníquas, secretas, que só ela conhecia e que depois desapareciam no silêncio.
Deixei-te ir embora, Angeli’. Fiquei em pé, imóvel, enquanto as gotas de água me escorriam para dentro do vestido, ao longo do pescoço, por entre os seios e chegavam até ao meu umbigo.
*
Uma noite, a avó Assunta começou a agitar-se como uma alma penada pela casa, reunindo os objetos mais valiosos que havia acumulado ao longo da sua vida. Um pisa-papéis de prata, prenda de casamento de uma prima; um broche de madrepérola que pertencera à sua mãe; um pequeno relógio de pulso todo em ouro; velhas fotos amarelecidas; serviços de café; uma chaleira e as suas colheres de prata. De seguida, arrastou os pés até ao banco em frente da cama, onde arrumava cobertores e lençóis, afastou o pano de linho que os cobria e retirou do seu interior um vestido preto pontilhado com minúsculas florezinhas brancas. «Tenho-o aqui guardado há tantos anos», sussurrou, e vestiu-o, anunciando que o seu Armando tinha vindo chamá-la e que devia juntar-se a ele no cemitério.
– A campa é pobrezinha – balbuciava –, mas a laje branca é polida e em redor há um pequeno canteiro com flores.
Levantou a mão como se estivesse a tocar no mármore sepulcral e também na cara do avô, que lhe sorria. «Vem, Assunti’, que já passou muito tempo e me sinto sozinho.»
A mamã teve medo que os mortos pudessem realmente falar e que a avó Assunta tivesse pressentido que a sua hora tinha chegado, deste modo, pediu-me que fosse sozinha para os campos, para Mezza Pete, enquanto ela e o papá permaneceriam ali a tentar sossegá-la e fazer com que adormecesse.
– Se acontecer alguma coisa com a avó, mando chamar-te – rematou, despedindo-se de mim.
Ao invés, quem apareceu foi Angelina. Apresentou-se de madrugada, vestindo um camisolão duas vezes acima do seu tamanho, sem maquilhagem e com o cabelo colado à cara. Fazia frio.
– Onde está a mamã? – perguntou-me com uma ansiedade que a fazia tremer.
– Está com o papá em casa da avó Assunta. Esta noite estava a disparatar e não quiseram deixá-la com a Ti Nenenna e a Lollina. Que se passa contigo, Angeli’, estás bem?
– Sim, Tere’, estou ótima.
A sua cara fez-me medo: pálida, porém lívida, desperta, mas ausente; parecia um daqueles fantasmas que de tempos a tempos saíam das rachas da parede e conversavam com a avó Assunta.
Examinei o interior dos seus olhos, vazios e frios com os das bonecas, esforçando-me por deslindar a verdade nos cantos, afastando a poeira que os encobria.
– Tere’, tenho de dar-te uma coisa – extraiu de baixo do camisolão um diário.
– Tere’, promete-me que o lês, que o lerás todo.
– Lerei, sim, mas porquê? O que significa?
– Depois digo-te, mas agora tenho mesmo de ir, não tenho mais tempo, Tere’, tenho mesmo de me ir embora.
Fiquei a olhar perplexa para ela, enquanto me voltava as costas e se ia embora. Ainda tentei pronunciar o seu nome para detê-la, mas deixei-a escapar. Os seus passos ecoavam no empedrado por cima das folhas e das bolotas caídas. Senti um vazio em redor e dentro de mim, o palpitar das árvores e das pedras. Observei-a imóvel, enquanto corria em direção à estrada com o cabelo que lhe ondulava sobre as ancas.
Voltou-se uma única vez:
– Tere’, gosto muito, mesmo muito de ti.