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Porque é que não me disseste antes? Porque é que nunca me falaste da solidão, Angeli’? Porque é que não nos contaste acerca da frieza do barão, da rudeza da sua mão quando te atingia a face? Era por isso que te víamos tão pouco? O teu palácio transformado em prisão. Punhas-te à janela e prestavas atenção aos barulhos, às vozes que vinham lá de fora. O grito do carreteiro, o miado de um gato, a vozearia distante das crianças. Os sons chegavam abafados, como as cantigas de embalar que se cantam às crianças, permaneciam suspensos, tremulavam, e depois dissolviam-se como bolas de sabão.

De início eras feliz, Angeli’, as palavras eram um frémito, deslizavam sobre as páginas do diário impelidas por uma força imperturbável. Examinavas uma a uma as mulheres da aldeia que te causavam raiva: a comadre Nunzia, que se punha à soleira da porta com o avental cheio de favas que ia descascando; a parteira, que afugentava os ratos com a vassoura, acusando-os de roerem a colcha de lã; a Cimmiruta, que se postava no fundo da viela e surgia de repente para emitir as suas sentenças, como o diabo na litania. Tinhas-te posto à margem dessa vida, circundada pelos muros grossos da herdade branca que te protegiam do scuorno e da maledicência.

No início, era um concerto de sussurros, de beijos apaixonados, de noites de amor.

Sou a rainha desta casa, e aqui ninguém me pode fazer mal. Quem nasce bela, casada nasce, e o Giuseppe está sempre a dizer-me que eu sou a mulher mais bela de Cupertino. Olha para mim e suspira, depois acaricia-me toda e é como tocar em veludo. Sonhei tantas noites com ele e agora dorme a meu lado. O meu marido é feito de outra massa mesmo quando suspira ao sonhar. O seu rosto é gracioso, os seus olhos, grandes e doces, as suas pestanas, compridas como as de uma mulher. Sei que o meu lugar é e sempre foi aqui. Sou baronesa. Nasço agora, neste momento.

Gostavas do silêncio dos dias solitários, as horas que giravam tranquilas sobre si próprias, como num universo com um ritmo diferente.

De quando em quando surgia o nome do papá e a grafia emperrava, a tinta borrava, mas era uma fraqueza que rapidamente passava, superada por palavras de amor, sem sentido, mas dulcíssimas, palavras que apenas aguardavam ser decifradas, como «casalba», «rainha das rosas», «amorlindo». Imaginava-te curvada sobre as tuas páginas secretas, romancista corajosa a repercorrer com a pena e o tinteiro as histórias que outras mulheres tinham narrado, preenchendo assim a tua adolescência com fantasias românticas e aventuras exóticas. As tuas palavras, Angeli’, eram sonhos. Tu e a mulher do diário amavam-se como num jogo de espelhos. Tinhas criado um mundo secreto onde ninguém mais podia entrar, e se no início o barão era o cavaleiro que te tinha salvado, com o passar das páginas mudava de aspeto, como os demónios quando assumem a aparência de um gato ou de um mocho.

Pergunto-me se as pessoas podem ter dois rostos, uma feição de anjo que um demónio repentinamente transfigura. O meu marido é vítima do seu próprio demónio, colérico e sombrio. Na aldeia, diziam o mesmo do seu pai. Também diziam que a árvore não cresce longe da semente. Todos vocês o diziam. A vida é variável, instável, incerta. O meu quarto de dormir é agora um lugar estranho. Aqui, onde passei tantas noites a velar o teu rosto, sinto agora apenas frio e arrepios de angústia que me fazem estremecer. Como me parecem distantes os meus dias felizes… Meu marido, já não me dizes que sou a mulher mais bela de Cupertino. Nem sequer quando solto o cabelo sobre as costas como tu gostas e visto o roupão de seda cor-de-rosa que tu me ofereceste. Por vezes, espero por ti à janela. Fico ali durante horas a perguntar-me qual será o teu humor quando chegares. Um brilho húmido aflora os meus olhos. Reneguei a minha casa, as minhas origens, ganhei o ódio do meu pai. E enquanto penso na minha família, na minha amada Teresa, uma dor inominável envolve-me como o abraço de uma serpente, aperta-me a garganta e faz-me sufocar.

Fechei o diário com a mão a tremer. Não conseguia ler mais. Sentia um peso sobre o peito, como uma camisa demasiado apertada que dificulta a respiração. Uma aragem salobra, de cheiro acre, provocou-me náuseas.

Angeli’, vejo-te na tua casa. Enquanto leio, apercebo-me de toda a solidão. A tua casa grande e bela que, repentinamente, se tornou hostil, e tu, a um canto, na penumbra, enquanto uma sombra cresce e te sufoca. E agora também vejo o barão…

Entrou em casa, percebeste-o pelo rumor de passos dos mocassins de pele de cabrito. Uma sequência precisa e cadenciada, como uma cena de teatro. O barão serve-se de uísque da garrafa que deixa sempre pousada na mesinha de mogno da entrada. Tira os botões de punho de ouro. Consegues ouvir o tinido das pequenas joias sobre a madeira envernizada. A seguir arregaça as mangas da camisa e dirige-se para a grande escadaria. Ouves o som delicado das solas nos degraus, a pele fina dos mocassins a deslizar no mármore.

Sabes que estás prestes a vê-lo e a cheirar novamente aquela fragrância floral, a perfume barato, de prostituta. O sangue ferve-te de tal modo nas veias que te tolda a vista, enfraquece as tuas pernas, contrai cada músculo do teu corpo e reduz-te o coração a um punho cerrado dentro do peito.

Ouve-lo a avançar pelo corredor, imediatamente antes de entrar no quarto. Permaneces imóvel, diante do espelho. Com as lágrimas que humedecem os teus belos olhos maquilhados.

– Estás ainda acordada? – pergunta arrastando a voz. Com tom decidido, pacato, que não deixa transparecer nenhuma culpa.

Tu balanceias a cabeça, de costas voltadas. Não ousas olhá-lo. Não ainda.

– Onde estiveste? – E a voz treme, tal como o resto do corpo.

Uma pausa ligeira. Somente suspiros por alguns instantes.

– Por aí – limita-se a responder, seguro de si mesmo, de ser o patrão, sem nenhum peso na consciência.

Sabes agora que as mulheres da aldeia tiveram sempre razão. Agora sabe-lo. És a puta do barão. Entretanto, ele prossegue, descalça os sapatos, primeiro o pé esquerdo, depois o direito, e depõe-los diante da porta do quarto. Senta-se sobre a colcha de flores e desabotoa a camisa. Sente-la a roçar sobre a sua pele enquanto a despe lentamente, antes de revelar o peito nu. Tentas levantar-te, mas ele detém-te.

Sentes crescer dentro um ódio estranho, um ódio que te confunde, porque em parte há ainda amor, caso contrário não terias soltado o cabelo, não terias vestido o roupão de seda cor-de-rosa. Ambos, ódio e amor, têm as suas mil e uma razões para existir. Quando ele te agarra e te despe estás já sem defesas, não podes senão juntares-te ao seu corpo nu e respirar o perfume de uma outra.

*

Depois, Angeli’, uma noite decidiste agir: vestiste-te à pressa com a primeira roupa que te apareceu em mãos ao abrir o roupeiro. Um casaco cinzento-claro e uns sapatos de salto alto. Prendeste o cabelo ainda molhado. Não tiveste tempo para secá-lo. Tinhas de sair rapidamente, antes que alguma coisa te fizesse mudar de ideias. A seguir a te teres vestido, deixaste as gavetas da cómoda abertas. Também as portas do roupeiro ficaram escancaradas. O roupão pelo chão, juntamente com a toalha na qual enrolaste o cabelo. Lá fora faz frio, e embora sejas forte e sã, aquele maldito vento poderia causar-te um problema sério com a cabeça assim molhada.

«Fui sempre eu aquela mais forte», disseste a ti mesma. «Teresa, a mais fraca.»

Percorres o empedrado. O cabelo encharcado e o rosto sem maquilhagem. Pareces uma menina.

Vejo o barão e a sua prostituta preferida nas alcovas de cima. Quartos pequenos e mal iluminados, um excesso de cor por todo o lado. Cortinados pesados de veludo. Uma cor diferente em cada quarto. Ali dentro, onde o teu marido se encontra, domina o azul: nas cortinas, nos naperões bordados sobre os quais assentam os candeeiros das mesinhas de cabeceira, na toalha, na mesa minúscula junto à parede da direita do lado oposto à cama. Até mesmo a colcha é azul, cuidadosamente dobrada, como só uma boa dona de casa saberia fazer. O barão escolhe sempre este quarto, quando está livre, por causa da sua paixão pela cor azul. Ela espera-o deitada na cama. É jovem. Chama-se Maria e é a segunda noite que recebe clientes no bordel da Ghita.

O barão ultimou o seu ritual, botões de punho, sapatos, casaco e camisa. Observa a mulher deitada de lado. A rotundidade perfeita do ventre e das nádegas, a pele branca como o leite. Agarra-a pelos cabelos e ela arqueia as costas, os caracóis pretos tocam ao de leve os lençóis. Depois, um impulso repentino, Maria está agora voltada de costas, o barão afasta as suas cuecas e penetra-a com força.

Quando chegas ao bordel, Ghita, uma matronaça desenxabida com a cara picada de bexigas, corre a chamá-lo. Ele tem o tom ofegante e não sabe o que te dizer para mandar-te de volta para casa. Pobre menina. A mulher traída que vai buscar o marido. O barão fita-te e tem dificuldade em reconhecer-te, franzina dentro desse casaco que parece dois números acima do teu. Os caracóis apanhados, ainda molhados. O rosto sem maquilhagem. Que ideia foi a dele de casar contigo? A filha de um camponês será sempre uma campónia. Nas costas do teu marido surge Maria, de uma beleza exuberante, lânguida e mourisca. Quase te reconheceste nela. Alta e bela. Uma esplêndida cabeleira negra e uma pele da cor do leite. Dois olhos cinzentos, penetrantes e famélicos, que te fizeram recordar os da mamã.

– Vai para casa, Angeli’, que depois falamos. Vai, não me faças fazer uma figura de merda – ordenou-te com o rosto contraído. A sua voz não tinha nenhuma flexão, somente um tom cinzento, seco e monocórdico.

E então reviste tudo. As recordações são feitas de um material facilmente deteriorável, e tu, com o passar do tempo, manchaste-as de fantasias. Porém, agora, é tudo mais nítido, como se tivesses retirado um velo que te obstruía a visão. Recordaste-te das palavras proferidas pela avó Assunta e pelo papá: «assassino», «bastardo», «carne podre». E, enquanto cada coisa finalmente assomava límpida aos teus pensamentos, vieste ter comigo e entregaste a tua vida nas minhas mãos. A roupa colada à pele, os cabelos húmidos. Parecias uma menina, com o rosto pálido e cansado. Não soube observar-te, Angeli’, não soube salvar-te.

Vejo-te a sair de Mezza Pete. Chegas a um pomar e deitas-te aos pés de uma grande macieira despida. O teu único desejo é de te ocultares debaixo dessa macieira reineta e apreciar a carícia do amanhecer no rosto.

O sossego absoluto no luto dulcíssimo da terra, somente quebrado pelo chilreio ínfimo de um ou outro pássaro, quase a pedir desculpa pelo facto de a vida existir em algum lugar. Quase uma reza sussurrada, um convite, um completório acanhado. De seguida, encaminhas-te com passo decidido rumo à grande herdade branca, transpões os portões: brônzeos e ornamentados, com bocas de dragão que vigiam do alto e anjos alados que se erguem nas extremidades, simbolizando talvez o triunfo do bem sobre o mal.

Não consegues chorar. Não. Nada de lágrimas. O cabelo está já seco e novamente solto sobre as costas. O que estás a fazer, Angeli’? Ah, sim… estás a rezar. Uma daquelas rezas que nos ensinaram em criança, que recitávamos ao regressarmos da missa. Contudo, a tua reza é muda, não prevê o uso da voz. Dos lados da alameda erguem-se belíssimas fileiras de buxo elegantemente alinhadas, e mais além aloendros despidos e árvores de fruto. O caminho chega depois a uma bifurcação e curva para a direita, penetrando numa zona de vegetação mais cerrada. Rododendros e cameleiras; e um pouco mais além situa-se o charco.

Descalçaste os sapatos para sentires sob os pés a erva molhada pelo orvalho e a suavidade aveludada das manchas de musgo que crescem aqui e ali no meio da vegetação. Afundaste os calcanhares no terreno, experimentando a estranha sensação de te sentires inundada de calor em vez de frio. Agora, na tua mente tola e ofuscada, enquanto corres à toa pelo jardim de camélias, dançam as imagens de toda a tua jovem vida. Dos sonhos infantis e das ânsias de amor. Dançam os rostos das pessoas que amas, e danças tu também, enquanto respiras o vento que penetra entre os cabelos e alargas os braços para sentires o corpo mais leve, de queixo levantado, a cheirar o ar picante da manhã, seguindo com o olhar o adejo de asas de algum passarinho que pousa sobre os ramos meio despidos, meio em flor. E enquanto rodopias como uma criança, despes o casaco, depois a saia, deixando, por último, somente o camisolão dois números acima do teu. Acabas a dançar nua, Angeli’, debaixo de um céu que se tornou plúmbeo e ameaça chuva. Sentes-te tonta porque rodopias demasiado depressa, então cais para debaixo de uma velha figueira. Agachas-te ao abrigo da sua casca dura, como se essa grande velha te pudesse aquecer. Começas a queixar-te com uma voz flébil, uma espécie de cantiga de embalar, enquanto te abraças e balanceias como uma criança.

«Canuscu na carusa tunna e beddrha vicinu casa mia staie tè casa.»17

Parece-te ouvir essa canção, tão nitidamente que todo o bosque está impregnado dela, como aquelas melodias de órgão cujo reverbero se ergue até ao céu. A cantiga de embalar agora vem dos ramos, das folhas verdes, das cameleiras floridas, da água pútrida do charco que fede a algas podres e madeira.

Foi então que fizeste aquilo, Angeli’?

«Sim, Tere’, foi nesse momento», parece-me ouvir a tua voz dizer enquanto me conta a tua morte.

*

Arturo, o caseiro, encontrou-te de manhã. Os teus cabelos ondulavam à superfície da água e pareciam muitos nenúfares dançantes. Quando tocou em ti, a tua pele parecia prestes a explodir, branca, de um branco apenas comparável aos mantos de neve que muito raramente cobrem os campos de Cupertino.

Vi-te, pousei o meu olhar sobre o teu corpo sem vida, na alvura dos braços, na pele que parecia inchada e flácida. Procurei à superfície da carne marcas de todas as ações que nunca mais realizarias, os arranhões nos tornozelos, as unhas bem cuidadas, os dedos dos pés compridos e ossudos. Sempre achei os teus pés feios: demasiado magros, sem harmonia, o dedo grande achatado e grosso e os restantes afunilados. Mas talvez procurasse apenas apontar defeitos bastante evidentes para anular aquela tua aparência de perfeição. Contei os segundos que transcorri a fixar os teus pés sem vida. Vinte e dois. Tantos quantos os anos que viveste.

O sol acordou-me, feixes de luz que atravessam as vidraças e me aquecem o rosto. Viro-me de repente à procura do corpo pequeno da mamã ao lado do meu, mas não está. Vejo-a junto do fogão, a preparar o café; depois volto-me para controlar o papá. A pequena montanha da colcha quase não se distingue, diviso a sua cabeça careca, tão magra que conseguiria agarrá-la com uma só mão. Debruço-me à janela para abarcar o bairro inteiro: um punhado de casas iluminadas pelo sol e lajes de pedra branca ao longo da viela.

– Hoje, se conseguirmos, pomo-lo lá fora sentado, deste modo apanha um pouco de sol.

Anuo, depois aproximo-me da cama do papá para observá-lo de perto. Parece-me rejuvenescido, a sua pele está mais macia, como se se tivesse embelezado antes de partir de viagem.

– Passou uma vida, Tere’, mas eu recordo-me de tudo como se fosse ontem. Quando é que o tempo começou a girar tão rapidamente?

O tempo… Quantas vezes adiei ou deixei de dizer coisas importantes, convencida de que o tempo me haveria de dar outras ocasiões para voltar atrás, para remediar. Dividi-o, alonguei-o, quase para provar a mim mesma que esse obedecia às nossas ordens, que não avança numa única direção, que pelo contrário pode andar às voltas ou ir sempre em frente, dependendo da nossa vontade. Que rumor faz à sua passagem? Antes de se tornar já futuro, antes de desabrochar como uma planta?

– O tempo chegou ao fim.

Foi o papá quem o disse. Acordou repentinamente e escancarou os olhos. Levanta com dificuldade ambas as mãos, faz sinal a mim e à mamã de nos querer abraçar às duas.

– Tere’, corre, corre.

Está assustada. Eu também. O papá é o único que demonstra estar calmo.

– A Angelina está à minha espera, está há demasiado tempo sozinha.

A mamã vira-se para mim e chora. Sei o que está a pensar e anuo, enquanto choro também, embora ambas tentemos controlar as lágrimas, porque a última imagem que queremos deixar ao papá é de felicidade. Chegou finalmente o momento que a minha mãe esperou a vida inteira.

– Nardi’, tenho de te confessar uma coisa, mas primeiro tens de me perdoar.

Ele toca a custo com a mão no rosto da mamã para acariciá-la. A luz clareia todo o ambiente e cai sobre as paredes como um leque de sombras. O papá olha em redor, como se aquela luz fosse um convite dirigido a ele.

– Cateri’, eu já sei tudo.

Ela aperta a sua mão e limpa as lágrimas.

– Nardi’…

– Mas continuei sempre a amar-te. A guerra obriga-nos a fazer coisas más, Cateri’, e eu decidi esquecê-la.

Depois, enumera as coisas más que o fizeram odiá-la: as bombas, as espingardas, as epidemias, as pessoas espoliadas, as injustiças, o barão, os salteadores, as infâmias, o lixo.

– A guerra é um nojo, Cateri’, descobri-o há muitos anos.

Depois procura também a minha face e aperta-a. Há muito que esperava por ela, papá, pela tua carícia rugosa, pela tua mão anelada com a dupla aliança das bodas de ouro. Acaricias-nos levemente às duas, e vejo tornares-te muito pequeno sob os cobertores.

– Podes ir, papá – sussurro-lhe com a voz embargada da emoção –, que a Angelina está à tua espera.

Ele sorri, enquanto uma lágrima suspensa hesita dentro dos olhos húmidos. Depois, é como um sopro, um redemoinho que começa ao longe, semelhante ao som da cupa cupa, e que ribomba comprimido dentro de uma caixa estreita.

– Nardi’ – grita a mãe, mas eu aperto-lhe a mão e sussurro que o papá partiu para a sua viagem.

E então vejo-as defronte dos meus olhos…

Duas meninas apertam nas mãos uma boneca de trapos enquanto correm ao encontro do seu papá que regressa dos campos. Ele é alto e forte, tem uma testa alta e a pele do rosto lisa. Uma das meninas tem o cabelo encaracolado e escuro, a outra tem-no ralo e claro como a uva luglienga. O papa pega ao colo na mais pequena, cheira os seus belos caracóis, depois abre a porta e percorre a viela iluminada pelo sol. Uma mulher debruça-se à janela para sacudir os lençóis que retirou da cama. Olha lá para baixo, para a viela iluminada e as fezes de cão em frente à porta. Resmunga algo e depois entoa o refrão de uma canção: «Hai vistu mai la rosa quandu è ’pperta? Cusì è la facce de quiddha creatura. È bella e bbè ’ngraziata e crisce onesta Ddiu cu li manda na bbona furtuna.»18

Assomo à janela e vejo o pai e a menina quase no cimo da viela. Ele vira-se e acena com a mão, enquanto a menina aperta nas suas a boneca de trapos. Boa viagem, papá, quando vires a Angelina dá-lhe um abraço forte.

E se for verdade que as almas dos mortos conseguem voar, de vez em quando, quando sentirem vontade, voem para dentro de minha casa e contem-me uma história.


17 Estrofe de uma cantiga popular da região da Apúlia: «Conheço uma rapariga redonda e bela, a sua casa é perto da minha.» (N. do T.)

18 Canção popular em dialeto salentino: «Alguma vez viste uma rosa aberta? Assim é o rosto desta criatura. É bela, graciosa e cresce de forma honesta. Que Deus lhe mande boa fortuna.» (N. do T.)