A. da Silva Mello
Apesar da questão parecer fora das minhas atribuições, dela já me tenho ocupado em outros trabalhos, tanto em relação à rede, quanto ao berço de ninar e à cadeira de balanço, sobretudo visando saber se o seu uso, sob o ponto de vista médico e da saúde da coletividade, é vantajoso ou desaconselhável. O problema é particularmente importante quanto à rede, o leito mais comum em algumas regiões do nosso país e também noutros de clima quente, vinda dos índios e de outros povos primitivos. Já havia escrito parte desse trabalho quando recebi de Luís da Câmara Cascudo, o sábio etnologista e folclorista de Natal, uma indagação sobre a rede, desejando saber se a julgava eu útil e recomendável ou, pelo contrário, prejudicial e contraindicada. Câmara Cascudo, que se ocupa no momento de uma pesquisa etnográfica sobre a rede de dormir, escrevendo-me sobre a questão, acrescenta que nada existe sobre ela, apesar de quatro séculos históricos do seu uso e dos milhares delas fabricados anualmente
“Milhões e milhões de brasileiros nasceram, viveram, amaram, morreram e foram levados para o cemitério em redes. Acusam-na de contraindicada para o repouso por ser curva e dar posição artificial ao corpo dormente, esquecidos dos sertanejos fortes que envelhecem sadios e dentro das redes. Sertanejos e caraíbas e tupis, os mais valentes indígenas do continente. E os jagunços do Conselheiro?”
Nesses termos, solicita a minha opinião de médico acerca do valor da rede para o sono, o repouso e a mecânica do corpo, desejando saber se é ou não conveniente como leito, se é recomendável ou prejudicial.
Eu próprio acredito que a rede seja, nos países de clima quente, a cama ideal para se dormir e repousar, como parece demonstrado pelas populações primitivas que a adotaram de maneira tão geral e também pelas vantagens que o seu uso pode oferecer ao homem civilizado. Não há dúvida, que a rede, quase sempre tecida de malhas largas e abertas, facilita a irradiação do calor do corpo e a sua melhor ventilação, mormente pelo fato de ficar suspensa no ar. São condições higiênicas de primeira ordem para as regiões de clima quente, favorecendo de tal maneira a tolerância pelo calor que é frequente os habituados não mais suportarem a cama comum, sobretudo durante os grandes calores do verão.
A posição curvada tomada pelo corpo na rede, que pode ser julgada anormal ou prejudicial, deve impor-se antes como ideal para o repouso, pois corresponde à do feto no útero, a qual igualmente muitos animais e mesmo o homem quase sempre tomam para dormir. Isso no caso de estar este são e livre de complexos, porque tanto os complexos quanto as doenças podem levá-lo a tomar posições anormais, mesmo extravagantes. No caso do indivíduo dormir, por exemplo, de barriga para baixo, é isso quase sempre sinal de oposição ao meio ambiente, de querer virar-lhe as costas, não raro desde os primeiros anos de vida. No consultório, costumo indagar dessa particularidade, pela qual, muitas vezes me informo sobre o caráter do paciente, em geral teimoso e obstinado, o que poderá explicar a sua atitude em relação à família, à sociedade e mesmo às prescrições médicas. Outras vezes, ele se habitua a essa posição, em virtude de determinados sofrimentos abdominais.
A posição do corpo na rede é tão natural, tão fisiológica, tão favorável que às vezes se pode revelar de utilidade mesmo em determinados casos de moléstia. Julgo as suas vantagens de tal ordem que ouso levantar a hipótese de poder ser a cama desfavorável ao nosso organismo, aos seus músculos, às suas articulações, à sua mecânica, às suas funções, uma razão talvez de os processos de artrite e de reumatismo se terem tornado tão numerosos e variados. Isso tanto pela posição do corpo na cama durante a noite ser falsa, quanto pela falta de sua ventilação devida ao colchão e às cobertas. Como os povos primitivos praticamente não sofrem dessas afecções, seria trabalho de grande valor verificar quanto o homem moderno, sobretudo o habitante das zonas quentes, tem sido prejudicado por hábitos desse gênero, principalmente quando dorme ou repousa. É possível que uma investigação nesse sentido, capaz de relacionar a frequência e a gravidade daquelas afecções, de um lado com a cama e do outro com a rede, possa conduzir a resultados surpreendentes, aproximando-nos melhor das causas dessas afecções, ainda tão obscuras e enigmáticas. Mesmo que existam outros fatores etiológicos de permeio, poderá ter esse a sua razão de ser, capaz de então aparecer com evidência. Essa hipótese de trabalho impõe-se como tanto mais justificada, quanto a posição tomada por indivíduos que nunca se deitaram em rede pode ser das mais incômodas e desajeitadas. Lembro-me de Einstein quando, depois de um almoço em nossa residência no Cosme Velho, passou à varanda armado de um grande charuto e, vendo uma bela rede boliviana, aberta e convidativa, procurou nela deitar-se para uma pequena sesta. Foi impagável e ridículo ao mesmo tempo! O grande gênio, então bastante barrigudo, ficou em posição tão falsa, tão dura e desajeitada, que teve de levantar-se e voltar para a cadeira. Não conseguiu ficar deitado senão alguns momentos, achando a posição incômoda, insuportável. O seu corpo devia estar por demais habituado às condições de vida do homem civilizado, seguidas por um extraordinário número de gerações. O grande Roquette Pinto, que passou mais de uma dezena de anos atacado de artrite anquilosante, que muito o fazia sofrer, descobriu que a rede era mais cômoda e repousante que a cama, tão mais agradável e benéfica no seu caso que me prometeu escrever sobre a questão para a “Revista Brasileira de Medicina”, expondo a sua auto-observação na seção de “O Médico como Doente”. Infelizmente, outras ocupações e a sua morte prematura impediram-no de cumprir a promessa, que teria sido, sem dúvida, uma comunicação de grande importância.
Doris Odlum, no “British Medical Journal” de 18 de outubro de 1952, indagando porque deixamos de nos balançar relata que no seu tempo de criança, era difícil encontrar-se na Inglaterra uma casa que não tivesse pelo menos uma cadeira de balanço, dizendo que se tornaram agora quase objetos de museu. Na América, acrescenta, são ainda muito comuns, embora eu próprio tenha tido a impressão de que estão também desaparecendo, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Na minha excursão por aquele país, em 1952, não encontrei em nenhum dos apartamentos que habitei, em inúmeros hotéis, uma só cadeira de balanço, móvel maravilhoso, que parece estar realmente desaparecendo, apesar de tanto contribuir para o conforto de qualquer lar. A cadeira de balanço austríaca, a melhor de todas pela simplicidade e mecanismo do seu jogo, está sendo substituída, quando muito, por outras menos confortáveis, menores de tamanho, o assento e a extensão da base mais curtos, o que as tem tornado menos cômodas, por vezes quase desagradáveis. Isso eu o pude verificar, há pouco tempo, quando procurei comprar uma das antigas e encontrei somente esse tipo moderno, mais curto e acanhado.
Diversos autores referem-se ao prazer que é obtido pelo movimento rítmico de balançar, sem dúvida a razão de ser desse móvel que por toda a parte teve tanta aceitação. Também a rede tem tido difusão, havendo até uma seção especial de livros – livros para serem lidos na rede – Hammac reading, literatura fácil, agradável, boa para acalmar os nervos e passar o tempo.
Não há dúvida que descobertas e hábitos desse gênero merecem atenção, pois representam conquistas instintivas, certamente úteis ou necessárias, mas que vamos menosprezando, tanto devido às condições modernas da existência, quanto à falta de conhecimentos mais profundos da questão. É bem possível, no entanto, que amanhã, quando qualquer psicólogo anunciar ser o embalo útil e salutar, capaz de acalmar nervos e relaxar estado de tensão, que, então, seja aceito e se generalize o balanço como uma esplêndida terapêutica. Sendo assim, a cadeira de balanço voltará de novo para o lar, desta vez não como um móvel cômodo e agradável, sim como um instrumento médico para tratar de doentes.
Doris Odlum pergunta porque deixamos de nos balançar, a nós e a nossos filhos, quando poderia ser isso de utilidade, pois acalma e relaxa os nervos, recurso cada vez mais necessário dentro da vida moderna, caracterizada pela sua crescente agitação. Odlum mostra que o hábito de balançar o bebê está desaparecendo de uns 50 anos para cá, apesar do berço de balanço ter tido aceitação universal. E lembra o conhecido ditado inglês: a mão que balança o berço é a mesma que governa o mundo. The hand that rocks the craddle rules the world, acentuando que o movimento rítmico de embalar é tão favorável à criança, que serve para acalmá-la e fazê-la dormir. Quando lhe falta essa possibilidade, não é raro vê-la, quando deitada, fazer movimentos de embalo com o corpozinho, de um lado para o outro, como demonstra um filme da Organização Mundial de Saúde, no qual o Dr. Jenny Rudinesco, de Paris, estuda a reabilitação de crianças abandonadas e criminosas. Odlum acrescenta que seria interessante saber porque tais hábitos estão sendo abandonados, principalmente quando, sendo agradáveis à criança, não lhe podem ocasionar emoções maléficas ou desfavoráveis. É o que se pode concluir também de outras observações do passado, que mostram havermos desprezado práticas úteis e justificadas, que não podiam deixar de ter a sua razão de ser, sobretudo porque se tinham espalhado por diversas regiões do mundo, desde os tempos mais remotos. A nossa rede, uma das invenções mais felizes do homem primitivo, entra nesse conjunto, talvez servindo para nos fazer compreender melhor certas tendências naturais do nosso povo.
Em relação ao berço de balanço e ao balançar da criança, publica a doutora M. Guiton-Vergara, da Policlínica do Boulevard Ney, de Paris, na “Semaine des Hopitaux”, de 22 de outubro de 1954, num longo trabalho, de fundo mais psicanalítico, no qual estuda o efeito do balançar sobre o desenvolvimento do recém-nascido. A autora refere-se a investigações que vem fazendo sobre a questão, desde 1946, baseadas tanto em dados bibliográficos e no que pôde ela própria verificar, quando em observações de uma expedição ao alto Orinoco, no Amazonas, onde as mulheres da tribo Okomatadi têm o hábito de embalar o recém-nascido. Revendo a literatura, mostra que em séculos passados, desde o IX, foi usado o berço de balanço para acalmar e fazer dormir a criança. Depois, esse processo foi caindo em desuso, porque os pediatras passaram a considerá-lo como um mau hábito, prejudicial ou até perigoso ao recém-nascido. É isso que se pode concluir de diversas publicações hostis ao berço de balanço, que foi sendo abandonado e mesmo proibido por médicos. O próprio embalo nos braços maternos ou de outras pessoas passou a ser visto com maus olhos e até condenado por médicos. Diante disso, o berço deixou de ser de balanço, tornou-se fixo como as camas, sendo as crianças quando muito, embaladas pelas avós, sempre mais persistentes em seus hábitos. Desde 1920, diz a autora, as próprias mães, na França, não embalam a criança senão às escondidas, contra ordens expressas dos médicos, que também passaram a impor aleitamento em horas certas, fixadas pelo relógio. Pelos seus estudos ela verificou que até 1888 todos os recém-nascidos eram embalados, quer no berço, quer nos braços, em geral com cantigas para acalentar e dormir. Não foi senão mais tarde que esse hábito secular acabou por ser inteiramente abandonado, tanto na França como em outros países. Nos Estados Unidos, os berços de balanço de uso comum sofreram iguais restrições, acabando por serem suprimidos.
Guiton-Vergara, baseada em observações que colheu nos Estados Unidos de 1943 a 1946, refere que a criança de cor branca nunca é aí tomada nos braços nem embalada. Depois de cortado o cordão umbilical, o que é feito imediatamente, sem esperar que cessem as pulsações, é a criança separada da mãe e colocada no berçário, onde fica aos cuidados de enfermeiras sempre muito competentes, mas
“cujas reações afetivas para com o recém-nascido parecem reduzidas ao mínimo. Para cada mamada, a criança é levada ao seio materno segundo um horário fixo, voltando logo para o berçário. A troca de fralda é feita igualmente segundo o relógio, deixando-se a criança chorar à vontade”.
A autora diz que todas essas crianças a chorarem e gritarem constituem um espetáculo patético, acrescentando que, depois de mãe e filho permanecerem na maternidade durante um número de dias prefixado, voltam para casa. Aí, prossegue-se com um método idêntico, que é o de a criança ficar no seu carrinho, quer dentro de casa, quer no fundo do jardim. Dessa maneira, os contatos são reduzidos ao mínimo, a mãe quase não se ocupa da criança, parecendo que, quanto menos o faz, tanto melhor.
O Doutor Holt, no seu livro publicado em 1902, diz textualmente: “O balanço da criança, assim como qualquer prática da mesma espécie, não tem utilidade alguma e pode ser perigoso”. Essa mesma afirmativa é repetida na décima primeira edição do seu livro aparecido em 1940. Lereboullet e Dayras, num pequeno guia para jovens mães, de 1952, recomendam: “É preciso deixar a criança chorar e gritar, a menos que esteja doente, não se devendo embalá-la para fazer dormir”. Nas publicações oficiais do “Children’s Bureau” dos Estados Unidos, é recomendado não usar o braço de balanço nem embalar a criança, deixando-a chorar e gritar, porque, do contrário, se transformará num tirano, capaz de revolucionar os hábitos da casa. Além disso, acrescenta que isso pode prejudicar o seu sistema nervoso, tornando-a cada vez mais exigente quanto aos carinhos que procura receber. Tais conselhos repetem-se sistematicamente até a edição de 1921. Em 1942, porém, o texto já se modifica:
“Uma criança sã que, em lugar de dormir, continua a chorar, contenta-se às vezes com pequenas carícias. Tiremo-la da cama, tomemo-la nos braços por alguns minutos e conseguiremos acalmá-la embalando-a um pouco ou cantando uma ou duas canções antes de deitá-la de novo.”
Desde então, naquele país, alguns pediatras expressam idêntica opinião.
Nos últimos tempos, tem havido uma reação no contrário sentido, de o recém-nascido dever ser tratado como um ser humano. Mas, tal ponto de vista está longe de haver modificado os hábitos impostos pelos pediatras do começo do século. Aliás, tanto os hábitos da população, quanto as publicações médicas da Europa, sobretudo da França, e as dos Estados Unidos seguiram rumos diferentes, quase opostos, relativamente aos recém-nascidos. Enquanto na França se continuava a embalar e balançar a criança contra os conselhos médicos, então contra tal prática, procedeu-se diferentemente nos Estados Unidos, onde a população deixou de balançar a criança justamente para obedecer à recomendação dos seus médicos. Foram estes que, mais tarde, como vimos, voltaram atrás, tornando-se tolerantes e fazendo eles próprios propaganda em favor do balanço, que passou a ser julgado útil à criança.
Na Inglaterra, o berçar do recém-nascido foi abandonado desde 1900, enquanto na França tal não aconteceu senão de 1920 para 1930. O carrinho de criança, que apareceu por volta de 1880, não teve maior aceitação senão a partir de 1895, quando passou a ser fabricado em série.
“Até aí, as mães saíam com o bebê no braço esquerdo para ficar o direito livre para carregar embrulhos. Até 1920, recomendava-se não colocar a criança no carrinho, devendo ser carregada nos braços até os cinco meses de idade.”
A diferença entre franceses e ingleses era ainda maior no que se referia ao banho do recém-nascido, que as inglesas davam todos os dias, enquanto que as bretãs tinham medo de ser ele prejudicial, de poder mesmo matar a criança!
Guiton-Vergara menciona diversos povos primitivos que balançam a criança, às vezes num berço ao lado, outras suspenso por cordas, o que permite sempre um contato mais direto entre mãe e filho, ainda mais íntimo quando, nos primeiros tempos de vida, aquela transporta no dorso, sempre mantido junto do seu corpo. Essa autora estuda a questão sob o ponto de vista psicológico e conclui que, no primeiro ano da existência, deve ser o lactente embalado nos braços maternos e no berço de balanço, com cantigas de ninar
“por ser isso necessário ao seu desenvolvimento afetivo, ao seu equilíbrio físico e psicológico, prática também de valor para a própria mãe”.
Mostra que o balançar cria contatos e é sempre benéfico, podendo corrigir perturbações mórbidas e mesmo curar doenças do recém-nascido, principalmente distúrbios nervosos, como a insônia, a irritabilidade e outras reações de desajustamento. Cita igualmente autores que admitem que a falta de berçamento pode ter consequências desastrosas, mesmo irreparáveis para a criança, mencionando casos de graves perturbações psicossomáticas, tratadas e curadas pelo balanço, cuja virtude maior é de acalmar a tensão nervosa e criar uma agradável sensação de euforia. O principal, porém, deve ser a aproximação que se opera entre a mãe e a criança no ato de a ter e de a embalar nos braços, de lhe dar o seio, de a balançar no berço. É a voz, a cantiga, o olhar, o contato das mãos, a sensibilidade do tato, tudo sempre cheio de amor e de doçura, que muito devem contribuir para aproximar os dois seres, abrindo à pequenina criatura um mundo mais cheio de felicidade, de alegria, de confiança. É o contrário do que acontece com a criança abandonada no berço, quase isolada do mundo, privada do melhor que a vida talvez lhe possa oferecer. A autora procura interpretar o mecanismo da ação do berçamento pela doutrina freudiana, mas chama igualmente atenção para o fato de o berçamento poder representar papel de importância no equilíbrio físico e psicológico da criança, que deverá reverter em benefício do adulto. Mostra que o desenvolvimento do aparelho vestibular é particularmente precoce, pois no feto de um mês os três canais semicirculares já se encontram muito desenvolvido. Ao lado disso, é a mielinização do nervo vestibular nos nervos cranianos a primeira que se opera, iniciando-se a do acústico no decurso do sexto mês e a do ótico antes do nascimento.
De qualquer maneira, o que é fácil de observar é o prazer que fornece o embalo, provavelmente lembrando as sensações intrauterinas, dos tempos em que movimentos maternos, sobretudo a marcha e o transporte, repercutiam sobre o feto. A autora, e nesse particular parece-me deveriam as mulheres dar imenso valor à sua afirmativa, diz que o balanço do recém-nascido deve ter influência sobre a vida sexual do adulto, como procura mostrar analisando diferenças do contato sexual entre franceses e norte-americanos. Estes são muito dados a tais relações em automóveis, vestidos, pouco se preocupando com o prazer da companheira. Esta última condição é, no entanto, essencial para o francês e o latino, como é conhecido e posso afirmar pelo conhecimento que tenho desses povos. Nestas condições, há troca de prazeres, necessidade de aproximação, talvez aquela mesma que houve entre mãe e filho ou entre mãe e filha nos primeiros tempos de vida.
“Poder-se-ia pensar que, quanto menos a mulher é embalada como lactente, tanto mais se torna depois reivindicadora por falta de amor; e que, tanto menos embala o filhinho, tanto mais se torna dominadora no papel de mãe e amante.”
Por isso, prevê futuro sombrio para a mulher francesa de 1935 para cá, que não foi embalada e terá por marido ou amante um homem que também não o foi. Acrescenta que é por compensação que se tornam mulheres dominadoras, tipo career-women, que não se entregam e procuram o seu próprio prazer, alcançado mais por contatos sociais e profissionais.
É provável que a autora tenha razão em sua interpretação e que, no predomínio da mulher nos Estados Unidos, possa tal fato representar papel de grande importância. Acredito que isso acontece não só com o embalo, mas também com a amamentação ao seio e diversas outras particularidades hoje tão modificadas pelos modernos processos de criação da criança.
Guiton-Vergara refere que, nos Estados Unidos, quando a distribuição de comida a porquinhos é acompanhada de discos, que reproduzem o grunhido materno, são obtidos maior desenvolvimento e mais rápido aumento de peso do que, comparativamente, nos animais nutridos sem essa deliciosa melodia materna.
Qual o ponto de partida do movimento hostil ao berçamento e ao balanço da criança? É o que pergunta e ao que responde a própria autora, dizendo ser difícil decidir, mas que foi em J. J. Rousseau, no seu “Emílio”, escrito em 1762, que encontrou a primeira opinião contrária à prática do balanço. No primeiro capítulo desse livro, o autor afirma “estar persuadido de nunca ser preciso berçar crianças e que esse uso muitas vezes lhes é pernicioso”.15 G.-Vergara chama a atenção para essa frase e para o que Rousseau escreveu posteriormente, em 1775, referindo-se a seus passeios solitários, onde relata haver encontrado inspiração e voluptuoso devaneio no movimento uniforme das águas de um lago. Rousseau descreve a cena desse movimento contínuo, regular, que o embalava, pondo-o em delicioso estado de volúpia. A autora acrescenta, com toda a razão, que não é somente o homem adulto que pode sentir tais sensações, cuja existência deve provir desde os primeiros anos de vida. Não é por outro motivo, poderia ter ela ajuntado, que sensações desse gênero são tão agradáveis, podem tanto nos embevecer, sendo procuradas em muitas situações da vida, como bem mostram o berço, a rede, a cadeira e outros dispositivos que nos permitem balançar. Em alguns casos, mesmo as viagens podem ter efeito agradável e sedativo sobre o sistema nervoso, no sentido da trepidação ou do sacolejar do veículo fazer o indivíduo dormir, se é que não o tornam mais contente e eufórico. Devem entrar aí em jogo reminiscências de tempos passados, talvez mesmo mais da espécie do que do indivíduo, reminiscências ancestrais, criadas e mantidas através das gerações, no decorrer dos milênios. São sensações arquivadas desde a vida intrauterina, que prosseguiram pelos primeiros tempos da vida, quando a mãe guardava contato íntimo com o filhinho, tendo-o junto do seu corpo, dando-lhe o alimento produzido pelo seu seio, defendendo-o dos perigos que o podiam alcançar, transportando-o colado ao dorso ou no ventre, como fazem alguns animais.
É um passado ancestral de enorme extensão, mas que deixou engramas no mais profundo da nossa sensibilidade animal. São eles que perduram ainda na vida do ser humano em formação e operam nos primeiros tempos da sua existência. Será de admirar que mais tarde, procurem a criança já crescida e o adulto reviver essas sensações, que tiveram sobre o seu organismo tão profundas e agradáveis repercussões? É preciso mais alguma coisa para explicar a descoberta da rede, do berço e da cadeira de balanço? Não é essa também uma prova de que só nos podem ser eles agradáveis e de utilidade?
Na evolução histórica da humanidade, é evidente que o hábito de balançar o recém-nascido e os processos para o adulto também poder fazê-lo devem datar de época muito tardia, quando o homem já havia atingido uma fase de progresso técnico bastante adiantada. Antes disso, devia viver em cavernas, mais preocupado com a alimentação e a sua defesa, dormindo no chão ou sobre peles, despojos das suas caçadas ou de animais encontrados mortos por acaso. Só muito mais tarde é que conseguiu descobrir os seus instrumentos mais primitivos e os primeiros utensílios de cozinha. A rede é de um período mais avançado, pois exige técnica de fabricação muito mais adiantada, uma autêntica conquista da civilização. Isso quer dizer que os nossos antepassados mais remotos e, antes deles, toda a série animal de que procedemos dormiram e descansaram deitados no chão. Se o fazemos ainda hoje dessa mesma maneira, deve estar isso de acordo com esse passado, tanto ontogenético, quanto filogenético. O nosso organismo deve estar adaptado a tais hábitos, embora hoje prejudicados pelas novas condições da existência, principalmente a vida dentro dos espaços fechados e apertados, em geral ainda sobrecarregada por excessos de cobertura e vestimenta. Isso nos tem afastado cada vez mais dos nossos hábitos primitivos da existência, nos quais a rede veio mais tarde talvez como um processo de compensação, de melhor adaptação às exigências do ambiente.
Diante das explanações apresentadas, é lógico concluir-se que tanto a rede quanto o berço e a cadeira de balanço devem ser de utilidade à saúde física e psíquica do ser humano, nas diferentes fases da vida. Devo chamar a atenção para o fato de ter sido aí que os nossos antepassados encontraram uma fonte de prazer e devaneio, como foi fácil observar no procedimento de nossos pais e avós, que passavam horas e horas no doce embalo da rede, quando não da simples cadeira de balanço. Era no tempo em que não existiam ainda o cinema, o rádio e a televisão, não sobrando senão esse “divertimento” doméstico, que devia ter as suas virtudes, tanto como compensação ou desafogo à labuta da casa, quanto das obrigações executadas fora dela.
Se o recém-nascido tem sido embalado através de gerações, desde milênios, sendo fácil verificar quanto é isso de utilidade para acalentá-lo e fazê-lo dormir, torna-se absurdo vir agora a ciência, à última hora, condenar hábitos tão espontâneos que datam dos tempos mais primitivos, tão bem integrados na nossa natureza que não nos podem ser prejudiciais. O que precisamos sempre fazer é observar melhor a natureza, não procurando submetê-la a regras e preceitos técnicos ditados pela nossa razão, cujos prejuízos podem não ser reconhecidos, caso não o sejam senão tardiamente. O passado é ainda a nossa grande escola, cujos ensinamentos devemos aproveitar com humildade e sabedoria.
Aliás, o que é fácil verificar é que a vida do homem, sobretudo dentro do mundo moderno, tem sofrido transformações extraordinárias, cada vez mais acentuadas e também cada vez mais em desacordo com as suas tendências instintivas. Em vez da satisfação que deve fornecer o trabalho executado, encontra nele antes revolta e descontentamento; nos alimentos, em vez de sabor e prazer, procura vitaminas e calorias; do amor fez uma fonte de lutas e decepções, vivendo como um pobre escravo, mesmo quando se acredita livre e feliz. Em outras publicações temos mostrado que a industrialização crescente da vida, com o artificialismo que dela decorre, deve ser uma das causas fundamentais dessa inquietude que avassala o mundo e tem tornado o homem mais perdido e infeliz, vítima de numerosos distúrbios físicos e psíquicos. Ele quer vencer agora pela razão e a inteligência, quando foram no passado o seu instinto e a sua adaptação biológica que garantiram a sua existência através dos milênios. Acredito que tudo que nos afasta das condições primitivas da vida reverta em nosso prejuízo, desde que não respeitemos a nossa ancestralidade humana e animal. O pior, porém, foi o fato dos desvios da rota primitiva se terem ido acumulando, engrenando-se uns nos outros, até tornarem a nossa vida extremamente diferente, quase em desacordo com o seu passado de milhares de anos.
Rio de Janeiro, setembro de 1957.
15 Nota de Luís da Câmara Cascudo: “Je dis un berceau, pour employer un mot usité faute d’autre, car d’ailleurs, já suis persuadé qu’il n’est jamais nécessaire de bercer les enfants, et que cet usage leur est souvent pernicieux”, J. J. Rousseau, (Émile ou de l’Éducation”, Ier. cap. Rousseau, defensor entusiasta do aleitamento infantil pelas mães, é também o primeiro ditador para a metodomania alimentar, sono e alimentos em horas certas, determinadoras do hábito regulador inflexível. Está também no 1º capítulo do “Émile”.