Nota

Valha­-me Deus! é preciso explicar tudo.

Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Em 15 de junho deste 1957 Assis Chateaubriand telegrafa propondo­-me uma pesquisa sobre “O papel da Mula na civilização brasileira”. Res­pondi que o meu arquivo era pobre e não tinha maiores possibilidades de aproximar­-me do bicho. Reforçou o oferecimento sugerindo que fosse para o Rio de Janeiro, cercar a Mula nos arquivos e bibliotecas.

Neste ponto estava eu no Recife, documentando­-me sobre o Padre Domingos Caldas Barbosa sobre quem organizava, no momento, uma antologia para a Editora Agir.

Conversando com Anteógenes Chaves, sabedor da proposta, disse que mais gostaria de enfrentar o carro de bois, rede de dormir, papel recortado para bolos, tabaco, talqualmente fizera com JANGADA. Anteó­genes ficou namorando a rede de dormir e decidiu Assis Chateaubriand a permutar a mula baixeira pela rede preguiçosa. Em julho voltei para Natal e mergulhei na rede.

Devo a Assis Chateaubriand ter escrito este ensaio e ao Anteógenes Chaves a escolha do assunto.

* * *

Certos temas dão prestígio ao pesquisador e outros exigem uma prodigiosa retórica para valorizá­-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competência severa, de idealismo prático, de atenção aos “altos problemas”. Quem se vai convencer da necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede de dormir, a rede que nunca mereceu as honras de atenção maior e é olhada de raspão pelos mestres de todas as línguas sábias?

Motivo humilde e diário, embora antigo e rico de sugestões, tem a informação dispersa, espalhada em registros breves. No Brasil há rápidos artigos emocionais, notas simples e, de busca sistemática, unicamente o do Sr. Sergio Buarque de Holanda que me permitiu transcrever.16

Identicamente na bibliografia estrangeira.

Quase todas as fontes impressas estavam longe de mim.

Três anjos da guarda apareceram, de dedicação incomparável e espí­rito de sacrifício digno do Martirológio Romano. Foram, o cônego Dr. Jorge Ó Grady de Paiva (Rio de Janeiro), realizando todas as buscas nas biblio­tecas e copiando quanto imaginei conhecer; o professor Enrique Martinez (Recife), que en­viou preciosas notas espanholas e ibero­-americanas e carta esplêndida fixando o problema da origem do vocábulo “hamaca”; e a se­nhorita Pilar Garcia de Diego (Madri), mandando uma verdadeira siste­mática de autores que registraram “hamaca”, com a técnica reveladora da herança cultural do seu eminente Pai, o Mestre Vicente Garcia de Diego.

O cônego Dr. Jorge Ó Grady de Paiva ainda andou meio Rio de Janeiro, dando caçada às pessoas que deviam responder às minhas perguntas, impertinentes como moscas. Deve haver, no Paraíso, lugar privativo para criaturas deste feitio.

Derramei cartas perguntadeiras pelo Brasil e desde México até Argen­tina. Naturalmente a percentagem útil foi suficiente para dissipar alguma ignorância mais densa em determinados setores da pesquisa.

E aos Poetas pedi versos sobre a rede de dormir. Era, indispensavelmente, a presença lírica no temário etnográfico.

Cecília Meireles estava desejosa de travar conhecimento com a rede mas nada possuía, em matéria poética, para atender­-me. Manuel Bandeira ia para Londres e rede não se balança no fog. O embaixador Gilberto Amado escreveu de Paris, lamentando não ter uma página sobre a rede. Outros não responderam, atentando para o anonimato do requerente e a humildade do assunto.

Mas a colaboração surgiu, abundante e generosa. Alceu Maynard Araujo remeteu quase tudo quanto se lê sobre São Paulo, fotos e um desenho inédito. Paulo de Carvalho Neto (Montevidéu) enviou notas sobre o Uruguai e Paraguai. Rafael Jijena Sánchez, sobre a Argentina, José Felipe Costas Arguedas, sobre Bolívia. Vicente T. Mendoza, sobre México. Teobaldo Leivas Diaz, sobre Chile e outros países. Miguel Acosta Saignes, sobre Venezuela. Guilherme Santos Neves, sobre Espírito Santo. João Dor­nas Filho, sobre Minas Gerais. Rosário Congro, sobre Mato Grosso. O almi­rante César Augusto Machado da Fonseca, documentário sobre o uso das macas na Marinha de Guerra. Jordão Emerenciano (Recife) cópias de verbetes de acesso difícil. João Batista Cascudo (Mossoró), sobre fábricas locais. Artur Ferreira da Silva, quadro estatístico das fábricas existentes em 1950. Raimundo Nonato da Silva (Natal) informações contínuas. Aderbal de França, então Inspetor Regional da Inspetoria Regional de Estatística Municipal no Rio Grande do Norte, de incomparável assistência, oficiou aos agentes no Estado e aos Inspetores Regionais, solicitando achegas. O Doutor A. da Silva Mello escreveu um magistral ensaio sobre o uso, tão combatido e tão lógico, do berço, cadeira de balanço e da velha rede de dormir. Carlos Drummond de Andrade e Herman Lima enviaram prosa e versos para a “Antologia”.

Os meus queridos Poetas remeteram os versos mais sonoros e emocionais. Olegario Mariano, Adelmar Tavares, Carlos Drummond de An­drade, Jaime de Altavila, J. Freire Ribeiro, Jayme dos G. Wanderley, clarearam a secura etnográfica com as águas vivas da inspiração, brasileira e tropical.

A pesquisa não podia ficar pobre com tanto ouro recebido.

* * *

Tal qual encontraram,

Tal qual encontrei;

Assim me contaram,

Assim vos contei...

Cidade do Natal, Dia de Todos os Santos, em 1957.

16 O artigo “Redes e Redeiras de São Paulo”, ampliado e com documentação excelente, tornou­-se capítulo do “Caminhos e Fronteiras”, Livraria José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, 1957, que tive a alegria de receber em outubro.