Caro A.,
sopro esta vela não porque é meu aniversário. A dor da morte de um pai é maior que a felicidade do próprio nascimento, foi o que sempre ouvi de minha mãe, e se ainda hoje mantenho o hábito de acender uma vela pra ele no dia em que nasci, hábito que, é bom que se diga, sempre foi contra minha vontade, eu o faço unicamente porque minha mãe insiste, a despeito de tudo o que já ouviu de mim na vida, em viver como se nada depois daquele dia, nada depois daquele interminável dia tivesse força suficiente pra fazê-la sepultar a morte do marido.
Hoje faz vinte e oito anos que meu pai está morto. Nunca o perdoei por ter morrido no dia do meu aniversário de onze anos. Temo que nunca vou perdoar minha mãe por ela não ter permitido que eu e meu irmão exumássemos nosso luto, que nunca deixássemos o tempo transformar nosso pai em lembrança – às vezes feliz, às vezes vaga, às vezes doída, mas lembrança, meramente lembrança, sem a necessidade de interromper o circuito, feito aquelas lampadinhas de Natal em que uma queimada compromete todo o resto. (Acabei de lembrar de um sonho antigo: eu, minha mãe e meu irmão, os três resignadamente agarrados num galho, mergulhados na areia movediça até o umbigo. Você vê que não há muito a ser interpretado aí.)
Reflito sobre tudo isso em frente a esta vela cuja chama embaralha as sombras deste quarto de hotel (precisei acendê-la porque, como ontem e anteontem, faltou luz de novo por aqui). E acho curioso que venha justamente do meu irmão o movimento que, ao que parece, começa a nos içar do pântano existencial em que – eu ia dizer em que nossa mãe nos meteu, mas talvez seja uma conclusão injusta da minha parte já que meu irmão e eu sempre aceitamos o jogo, mais honesto talvez dizer – do pântano existencial no qual estivemos enfiados nos últimos vinte e oito anos, e me desculpe se insisto na efeméride.
Devo confessar que não tinha entendido muito bem o impulso que me fez pegar papel e caneta e começar à luz de uma triste vela esta forma anacrônica de correspondência. A falta de energia e a bateria do laptop descarregada, você me diria. Mas não. O que me levou a escrever esta carta, percebo agora, foi uma urgência em tentar dar alguma ordem a essas sombras no fundo da minha caverna. (Falar, escrever é roteirizar o próprio drama, é libertar a vida do que a aprisiona. Por isso o cinema é a mais volátil das artes.)
Por onde começar?
(Pausa pra mijada. Vou precisar levar a vela.) (Voltei.)
Vou tentar seguir a ordem dos fatos desde nosso último encontro, lá em casa. Quatro dias depois da nossa última conversa, há exatos sete meses, minha mãe me ligou pra avisar que meu irmão tinha fugido novamente da clínica. (Eis aqui, adianto, o motivo pelo qual não retornei seus e-mails, mensagens, telefonemas, recados via S.). Meu irmão fugir, até aí não havia novidade. A diferença naquele telefonema da minha mãe, aquilo que me fez desmarcar imediatamente os compromissos da semana e pegar a estrada no mesmo dia pra **, era que dessa vez havia uma entonação, uma profundeza como havia muito eu não percebia na voz da minha mãe, ela que passou a vida inteira (pelo menos a minha vida inteira) tentando manter na superfície a personagem que criou pra si.
Segundo o relato do diretor da clínica, meu irmão conseguiu fugir depois de amarrar na cama a enfermeira do turno da madrugada. A moça foi encontrada pela manhã, amordaçada, inteiramente nua sob os lençóis – detalhe mais chocante pra minha mãe do que o fato de ela estar amarrada e amordaçada. Mais tarde eu saberia que meu irmão e essa enfermeira chamada Cecília mantinham um affair dentro da clínica fazia já algum tempo.
Foi a voz de minha mãe ao telefone que me acendeu uma luzinha amarela, eu estava tranquilo em relação ao sumiço do meu irmão. Nessa como em todas as outras fugas, bastava, acreditei, ficar de prontidão pra hora em que ele, geralmente três ou quatro dias depois, aparecesse na fila do cinema como um espectador qualquer, só que bêbado e sujo, ou então que alguém nos ligasse dizendo que o tinha visto dormindo na rua ou quebrando algum boteco da cidade.
No instante em que pus o pé em casa, no entanto, minha mãe, que estava sentada na mesa da cozinha, nem esperou que eu colocasse a mochila no chão pra dizer: “Ele não volta”. E depois deixou claro a missão que me aguardava pela frente: “Agora quem precisa de ajuda sou eu”.
“Ele não volta.” “Agora quem precisa de ajuda sou eu.” Essas foram as duas últimas frases pronunciadas por ela antes de mergulhar novamente no buraco negro que eu nem lembrava que conhecia tão bem. A diferença, dessa vez, era que não haveria dona Nair pra me socorrer com suas cebolas fritas. Nem meu irmão. (“Deus nunca dá a cruz se a gente não puder carregar”, me disse uma vez Fátima, enquanto tirava a roupa do varal. Lembrei disso agora. O cérebro é um órgão engraçado.)
Uma coisa que os anos me deram, além de fobias, foi um coração racional (envelhecer pode ser a cura, sempre gostei de acreditar nisso). Pela primeira vez na vida minha mãe tinha verbalizado um pedido de ajuda, e era essa a única corda na qual eu devia me agarrar. Na prática, isso quis dizer: pedir uma licença da redação, me mudar provisoriamente pra **, contratar alguém pra cozinhar / lavar / passar de modo que eu ficasse livre pra cuidar exclusivamente dela e da parte do cinema que cabia a ela. Não tão exclusivamente assim porque na paralela eu também tinha a missão de encontrar meu irmão – único antídoto que poderia quebrar o feitiço que mais uma vez se abatia sobre minha velha blancanieves.
Só isso já seria muito. Mas me mudar, provisoriamente que fosse, pra ** também significou enfrentar uma ideia que durante anos tentei manter longe dos meus pensamentos: assumir que, pelo menos por um tempo, eu voltaria a morar na casa da minha infância. E por que tentei manter essa ideia longe dos meus pensamentos? Depois de tudo o que passou acho que já consigo esboçar uma ideia.
A impressão que tenho é que a vida vai se tornando naturalmente trágica por uma questão de acúmulo, de sedimentação. O tempo inevitavelmente nos soterra. É uma lei da física, não tem como fugir. Por outro lado, acredito que um espírito, nosso verdadeiro estado de espírito, aquele que faz você dizer “Este, sim, sou eu”, se constitui sob esses escombros. Voltar pra casa onde nascemos, crescemos e engendramos uma identidade é um pouco como virar arqueólogo, ou geólogo, ou espeleólogo, da própria história. É se reapropriar de tudo o que você perdeu – e a partir daí descobrir o que restou naquele estranho no qual nos transformamos. Voltar pra casa é recomeçar de onde tudo foi interrompido. Talvez eu já soubesse disso – e fosse esse justamente o meu temor.
Mas, afinal, onde tudo foi interrompido? Foi uma pergunta que me fiz de diversos modos nos primeiros dias, enquanto passeava pela casa em silêncio, na minha pose clássica de museu, à espera de algum telefonema que anunciasse o paradeiro do meu irmão. Algo curioso que percebi nesses meus passeios. A posição dos móveis, dos objetos, a ordem dos discos, está tudo lá, do jeito que sempre esteve, como já lhe contei. Mas me dei conta de que não existe pela casa um único retrato da família à vista. Teria sempre sido assim? Pequenas percepções como essa mais o fato de dormir e acordar novamente no meu quarto, na minha velha cama, me fizeram ter muitos sonhos à noite. Sei que é um saco ficar lendo ou ouvindo sonho dos outros, mas peço licença pro registro.
Num deles, eu chegava de carro a um castelo. Lá, um grupo de teatro encenava frases ditas por pessoas da plateia. A frase que coube a mim dizer foi: “Um homem à beira de um precipício” (não lembro se precipício ou se abismo). A encenação da minha frase aconteceu no alto da torre. No fim da encenação, um ator se jogava de verdade pela janela. A plateia não sabia, mas do lado de fora havia uma equipe técnica pronta pra aparar a queda. Ele mesmo estava preso a cordas, agora visíveis. Ator e equipe voltam pros aplausos. Todos parecem comovidos com a cena que acabam de fazer. Eu os abraçava e dizia: “Vocês são artistas de verdade, vocês são artistas de verdade!”.
Em outro sonho, minha casa – a de minha mãe, não a de São Paulo – estava revirada, e eu não fazia ideia de quem havia feito isso, nem por quê. Na sequência, eu caminhava por um túnel cheio de infiltrações. Acordei nesse dia com dois pensamentos, devidamente anotados: 1) “A realidade só emerge no final da última ilusão” e 2) “Todo homem é um continente em perpétuo estado de guerra”. Numa das minhas últimas noites na casa da minha mãe antes de vir pra Santarém (já explico!), sonhei que estava indo feliz pra guilhotina, pensando que afinal iria dormir decentemente. Quando acordei, a moral da história era: “Viver é a pior forma de suicídio que existe”.
Eram sonhos tão significativos pra mim que às vezes eu despertava acreditando ter inaugurado algum tipo novo de sentimento. Outras vezes, era como se tivesse desvendado a solução de todo o mistério. “É isso!”, gritava lá do fundo, antes de abrir os olhos. Mas então eu me levantava da cama, caminhava até o banheiro, trancava a porta, tirava a camisa, tirava o short, ligava o chuveiro, esperava a água esquentar, pegava escova, pasta, entrava no banho, escovava os dentes, ensaboava o corpo, saía do banho, enxugava o corpo, abria a porta, ia até o armário, pegava cueca na gaveta de cima, vestia a calça, escolhia a camisa na gaveta de baixo, vestia a camisa, penteava o cabelo e seguia pra fazer o mesmo ritual com minha mãe antes de me sentar pra tomar café. Quando me dava conta, o mistério já estava devidamente renovado.
Sobre minha mãe, não vou me deter aqui nos detalhes, até porque cuidar de uma mãe depressiva não é algo que se possa dizer complicado. No caso da minha, pelo menos, é comida e banho, basicamente. O resto é sono. A comida coube – com muita competência, fica aqui o registro – a Damiana, indicação de uma amiga da minha mãe (um dia pedi que Damiana preparasse pra mim um sanduíche de cebola frita em homenagem a dona Nair, pra você ver que até as tragédias têm seu quê nostálgico). O banho coube a mim – e quanto a isso a única coisa que posso dizer é que espero ainda pelo dia em que enxergarei alguma beleza num corpo velho.
Assim se passou a primeira semana lá em casa. Assim se passou a segunda. E a terceira. E nada do meu irmão dar sinal de vida. Ainda na primeira semana eu tinha pedido ao diretor da clínica que acionasse outras instituições localizadas num raio de quinhentos quilômetros pra que avisassem caso aparece um paciente com as características do meu irmão. Mas o diretor me pareceu mais interessado na conta que devíamos do que no paradeiro do paciente. Até aí, nada errado. Tampouco pra mim a ausência de meu irmão era o cerne do problema. Na verdade, a ausência dele significou exatamente o contrário. Enquanto ele esteve sumido, posso dizer que experimentei uma trégua secreta, como nunca dantes. A questão era: se a presença do meu irmão representava minha doença, ela representava também a semente de saúde que minha mãe precisava pra sair da sua condição enferma – o que, em última instância, me libertaria pra retomar minha vida. Resumindo, meu querido irmão havia conseguido um feito que poucos até hoje conseguiram: ser o problema e ao mesmo tempo a solução. Ruína e salvação.
A falta que faz o amor de um pai. A falta que faz o amor de um pai. Ommm. Em algum momento da minha vida eu transformei essa ideia num mantra pra impedir que o ódio que alimento por meu irmão transbordasse em atitudes, digamos, prejudiciais com pessoas que de fato importam pra mim. Mas ódio vaza, não tem o que fazer. E aqui, com um pouco menos da metade da vela ainda pra queimar, chego a uma parte crucial do meu relato. Adianto que não é intenção minha fazer um mea culpa fora de hora: não é da minha índole procurar justificativas pras merdas que faço, mas entender o que de ruim e de bom se produziu durante minha quarentena em **.
Essa parte do meu relato poderia ter como subtítulo Ulisses, um nome que me acompanha a vida inteira e por quem posso dizer que alimento um amor fraterno que jamais me ocorreria ter por meu irmão, por exemplo, só pra ficar na comparação mais próxima. Na realidade, o subtítulo mais adequado seria: Ulisses e Renata. Não sei se contei pra você em alguma das nossas sessões lá em casa (e a omissão, se houve, pensando agora, é um sintoma a ser considerado), mas quando tinha dezessete anos Renata engravidou de Ulisses. Pois é. A mocinha presente na primeira vez em que Ulisses e eu vimos o mar. A pequena litorânea de batom vermelho que me despertou uma paixão que eu chamaria de pueril não tivesse ela produzido em mim um desejo perpétuo pelo sexo feminino. A garota que era a cara da Malu Mader e com quem – agora nada mais me impede de dizer – cheguei a ter um namorico na juventude, nas vezes em que ela ia com os pais visitar a família de Ulisses em **.
Escrevo namorico e é bom que eu me corrija. Dito assim, pareço subestimar o que Renata e eu tivemos. Embora tivesse um namorado oficial em Santos, em algum momento chegou a haver juras e planos e promessas tanto da minha parte como da parte dela. “Você vai ser pra sempre meu vaga-lume na noite…” é uma frase que me vem agora, dita por ela num dia de despedida, deitados na grama, de mãozinhas dadas, fofinhos, olhando as últimas estrelas da temporada (nessa época, eu ainda não sabia que o desejo exige a renúncia às estrelas). Inocências próprias da juventude, mas não por isso insinceras. Eu já lhe disse, sou um romântico incurável.
Algo importante a ser dito a meu favor – falei que não iria me justificar e aqui vou eu – é que Renata e eu nunca trepamos. Houve algumas explorações e tentativas, claro, mas sempre pairou sobre nós um bloqueio mútuo, que explicaríamos mais tarde como o resultado infeliz de uma admiração excessiva. Eu a chamava de “minha deusa” e ela me chamava de “meu Deus” quando estávamos entre amigos, não nos doía expor a devoção que tínhamos um pelo outro.
Mas então veio mais uma vez o furacão Ulisses e fez aquilo que meus pudores não me haviam deixado nem ensaiar fazer: engravidar Renata. É claro que, no choque da notícia, chegou a bater uma frustração, e um consequente ciúme, por não ter sido eu – melhor seria dizer: por não ter conseguido ser eu – o inconsequente da história. Mas logo entendi a pequena tragédia familiar que estava prestes a acontecer tão logo a notícia se tornasse pública, e até ajudei os dois no discurso pra anunciar o caso à família. Hoje, à luz de todos os acontecimentos, antigos e recentes, digo sem medo que o amor deve ser um sentimento que se soma, humildemente, sem pretensão de substituir. Passadas as naturais comoções de ambos os lados da família (choros, desesperos, ameaças, a boa e velha hipocrisia da humanidade), Ulisses e Renata se viram forçados a casar pra poder assumir a criança – Luiza, uma mocinha linda, herdeira dos melhores traços da mãe, hoje com vinte anos e vivendo perigosamente na Austrália, raptada por um tatuador.
Foi assim que Renata se mudou de vez pra ** e, não sem algum desespero da minha parte, passou a fazer parte da única turma de amigos que consegui manter com alguma regularidade na vida. Durante muitos anos, eu me fiz uma única pergunta: como é que se abafa um amor inconcluso? E ainda pergunto: como se abafa? Não se abafa.
Mesmo já vivendo em São Paulo, sempre que ia a ** e me encontrava com o pessoal, Renata representava pra mim o inalcançável. E ela sempre soube disso. Toda vez que Renata pisava num ambiente em que eu me encontrasse, era como se uma corrente de ar diferente penetrasse no lugar. Ela nunca foi pra mim apenas uma presença. Renata sempre foi um par de lábios vermelhos (o batom de sempre), um par de coxas finas e rijas, uma risada firme, poderosa o bastante pra me deixar melancólico pelo resto da noite. Se eu me encontrava apenas com Ulisses, nossas conversas passeavam por assuntos que inevitavelmente nos levavam ao riso e à reflexão. Parecia uma amizade que nunca perderia o viço. Sempre me senti mais inteligente ao lado de Ulisses, as ideias iam em frente, fluíam livres. Mas quando Renata estava presente, não. Na presença de Renata, eu travava. E me angustiava ver como meu corpo se encolhia. Ulisses percebia tudo isso, mas nunca dizia nada. As relações são o que são – são o que cada um escolhemos construir.
Até aí tudo sob controle: eu em São Paulo, eles em **, encontros esporádicos e quase sempre oficiais, em companhia de outras pessoas. Mas então meu irmão desaparece, minha mãe pede ajuda e eu me vejo forçado a desfrutar de um delicioso período sabático em **. Foi quando fiquei sabendo por Ulisses que Renata passava por uma crise profissional relativamente séria que, somada com a distância da filha, com a morte do pai no ano anterior etc., começava a vazar pra relação do casal. Agora o turning point. Há cerca de um mês, Ulisses precisou viajar pra participar de um congresso médico (não vou dizer a especialidade) fora do Brasil. Na véspera do embarque, ele me contou que havia tido uma discussão pesada com Renata e pediu que eu ficasse por perto, caso ela precisasse de algum tipo de ajuda. Com meu irmão ainda sumido e minha mãe estabilizada em casa, achei que ficar de olho em Renata podia ser um refresco pras minhas retinas fatigadas. Ainda mais com aval do marido – e não qualquer marido.
Pra minha surpresa, talvez na esteira de uma libertação completa e profunda que o desaparecimento de meu irmão havia promovido em mim, em nenhum momento me senti tolhido pela presença de Renata nos dias em que Ulisses esteve fora. Todo fim de tarde eu passava na casa deles a pé e a carregava pra tomar um café ou um chope na praça ou simplesmente caminhar pela cidade. Depois de anos bloqueada, nossa conversa voltava a fluir. Éramos dois amigos que se reencontram depois de quinze anos, como quem acorda de um longo coma. Relembramos histórias, revelamos segredos, repartimos tragédias, rimos delas, sobretudo. Renata e eu trocamos tanta inocência que, infelizmente, em pouco tempo passou a representar pra mim uma frustração a ser eliminada.
Tenho consciência de que carrego ao mesmo tempo um quê de neurótico e de perverso. São duas forças que sempre travaram batalhas constantes dentro de mim. Penso no meu lado neurótico como aquele que tem medo de realizar e, por não realizar certas coisas, somatiza. Meu lado perverso, não. Meu lado perverso, bem ou mal, realiza. Ao contrário do meu eu neurótico, meu eu perverso não descansa enquanto não encontra um objeto que instigue sua fome. O que tranquiliza meu lado perverso é saber que o desejo nunca se completa. O desejo é minha pedra de Sísifo. Toda penitência pra mim, no fundo, tem sua dose de prazer.
Por tudo isso, não sinto culpa pelo que fiz. Sinceramente, não acho que deva sentir culpa por ter convidado Renata pra ver um filme lá no cinema numa noite em que excedemos nossa dose diária de chope (o dia estava particularmente quente). Tampouco sinto culpa por tê-la convidado pra uma sessão extra de whisky and joint na sala de projeção, depois da última sessão. A essa altura do jogo, não existem mais inocências, certo? Renata e eu nos merecíamos fazia tempo. E foi delicadamente lindo. Foi lindo porque enterramos aquele endeusamento e nos tornamos deliciosamente humanos.
Eu só não esperava de verdade que ela contasse tudo a Ulisses. Não falo do detalhe da calcinha de Renata que vesti e na qual, pra certo espanto dela, esparramei todo o meu ser, mas dos filmes pornôs em super 8 que projetei no seu corpo, no chão da sala de projeção. Tenho certeza de que foram os filmes, e não precisamente Renata, o motivo que levou o punho cerrado de Ulisses a arrebentar dois dentes meus, no saguão do cinema, na hora mais lotada. A única coisa que me admira nisso tudo é a capacidade que as pessoas têm de exigir dos outros o que elas próprias não conseguem cumprir. Ulisses nunca se furtou a me contar as trapaças conjugais que manteve ao longo de todos esses anos com outros homens, e Renata sempre soube disso. Por isso, me surpreendi com a reação de Ulisses. Mas não guardo rancor. Tampouco me arrependo de alguma coisa. Concordo com Chateaubriand, o Assis: ser prudente é, antes de tudo, ser medíocre.
Mas então vem uma dessas benesses que a vida de vez em quando nos concede, como uma trégua pro seu jogo sujo. Dias depois do escândalo que terminaria mobilizando a turma toda, me jogando num gelo ártico coletivo (as aldeias e seus falsos moralismos), estou eu tranquilamente em casa limpando a bunda da minha mãe quando toca a campainha. Abro a porta e dou de cara com uma moça, branquinha, baixinha, lábios pequenos e pálidos, maçãs do rosto proeminentes, olhinhos quirguizes, delicadamente repuxados, seios que num rápido relance calculei do tamanho da minha mão. Fico olhando pra ela e ela não me diz nada, nem quem é, nem por que está ali. Só me entrega uma carta.
A carta era do meu irmão – essa cuja cópia mando anexada pra você conhecer um pouco da natureza do indivíduo. A letra no envelope não era dele, mas a da carta, sim. Trazia carimbo de Santarém e estava endereçada a Cecília, a enfermeira com quem ele tinha um caso – a moça que agora estava ali na minha frente com seu vestido campestre azul florido, mochila nas costas e sandalinhas de couro. Ela estava pronta pra resgatar meu irmão e queria que eu fosse com ela.
E agora aqui estou eu em Santarém escrevendo esta carta pra você enquanto Cecília dorme ao meu lado. Ainda não entendi muito bem o que ela quer de mim. Muito menos sei dizer se é dó ou amor o que sinto por ela. Sempre tive a sensação de que precisava de uma mocinha mais nova que eu, que fosse bonitinha, tranquila, dona de uma inteligência natural e com noção de primeiros socorros. Cecília é tudo isso e um pouco mais: é enfermeira de formação. Ela nunca me pede nada, nunca faz perguntas e ainda tira minha pressão. E seu passatempo predileto é fazer origamis.
É o que ela mais tem feito desde que chegamos a Santarém, há quase uma semana. Amanhã, finalmente é dia de visita no hospício em que meu irmão se encontra. Cecília trouxe uma câmera, como meu irmão pediu, pro caso de todas aquelas denúncias que ele faz serem verdade. Eu também trouxe minha mãe comigo. Enquanto escrevo esta carta, ela e Cecília dormem. Ainda não tivemos muita chance de passear pela cidade, mas já notei que os ares daqui são bons. A temperatura nessa época do ano é amena o suficiente pra manter o saco pendurado (confesso meio fora de hora que não existe sensação mais chata pra mim do que saco enrugado).
Vamos ver no que dá a visita de amanhã. Se as coisas não estão muito boas aí embaixo (minha chefe agora ameaça me demitir caso eu não volte pra redação ainda este mês), quem sabe não ficamos um pouco mais por aqui. Ontem, de brincadeira, até andamos vendo casa pra alugar nos classificados. Mas não é brincando que se fala sério? A venda do cinema daria uma boa grana. Quem sabe nem precise me desfazer do cinema, mas arrendar. Enfim, questões pra mais adiante. A vela já vai acabar e ainda quero aproveitar as últimas horas do meu aniversário pra ler um pouco antes de dormir. Aliás, no impulso dos preparativos joguei na minha mochila A montanha mágica, e acabo de lembrar que nunca li pra você a frase que usaria como epígrafe ou epitáfio, o que vier primeiro.
Pois aqui vai como uma fraterna despedida e também como uma forma de agradecer toda a sua paciência:
Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?