Uma tremenda chuva veio da serra, forte demais para que se pudesse pensar no meio dela, deixando-nos sem nada a dizer. Em pé na entrada coberta do deque, nós três olhávamos e escutávamos, o mundo inundado. Jessie segurava a si própria com força, uma mão em cada ombro. O ar estava tenso e carregado, e quando a chuva parou, após alguns minutos, voltamos para a sala e continuamos a falar sobre o assunto de que falávamos quando os céus se abriram.
Naqueles primeiros dias, ela para mim era a Filha. A possessividade de Elster, seu espaço confinador, tornava difícil para mim vê-la como uma pessoa diferenciada, encontrar nela algo como um ser independente. Ele queria que ela ficasse a seu lado o tempo todo. Quando fazia algum comentário dirigido a mim, sempre dava um jeito de incluí-la, atraí-la com um olhar ou gesto. Havia em seus olhos um brilho ansioso que não era nada incomum, pai olhando para filha, porém parecia ter o efeito de sufocar uma resposta, ou talvez ela não estivesse interessada em responder.
Ela era pálida e magra, vinte e tantos anos, desajeitada, com um rosto macio, não carnudo, porém arredondado e tranquilo, e parecia atenta para alguma presença interior. Seu pai dizia que ela ouvia as palavras de dentro delas. Não lhe perguntei o que ele queria dizer com isso. Seu trabalho era dizer coisas assim.
Ela usava jeans e tênis, tal como eu, e uma camisa larga, e era alguém com quem se podia conversar, o que ajudava a fazer o dia passar. Ela disse que morava com a mãe no Upper East Side, um apartamento do qual fez pouco com um dar de ombros. Trabalhava como voluntária com velhos, fazendo compras para eles, levando-os ao médico. Cada um deles tinha cerca de cinco médicos, explicou, e ela não se incomodava de ficar sentada em salas de espera, gostava de salas de espera, gostava de porteiros chamando táxis, homens de uniforme, era o único uniforme que se via num dia normal, porque os policiais em sua maioria ficavam fechados dentro dos carros.
Eu esperava que ela me perguntasse onde eu morava, como vivia, com quem, sei lá. Talvez isso a tornasse interessante, o fato de que ela não perguntava nada.
Eu disse: “Eu morava num estúdio lá no Queens. Dava pra eu pagar, depois não deu mais. Eu trabalho no meu apartamento, que é mais ou menos em Chinatown. Eu faço projetos, converso com as pessoas, bolo outros projetos. De onde vem o dinheiro? Penso em refinanciamento hipotecário. Acho que não sei direito o que isso quer dizer. Penso em fundos de renda variável, capital estrangeiro, fundos de hedge. Cada projeto vira uma obsessão, senão qual é o sentido? O meu projeto agora é este, o seu pai. Eu sei que ele é a pessoa certa e tenho a intuição de que ele também sabe. Mas não consigo arrancar uma resposta dele. Topo, não topo, talvez, nunca, fica pra próxima. Eu olho pro céu e me pergunto: que diabo estou fazendo aqui?”.
“Companhia”, ela respondeu. “Ele simplesmente odeia fisicamente a ideia de ficar sozinho.”
“Odeia ficar sozinho mas vem pra cá porque aqui não tem nada, não tem ninguém. As outras pessoas criam conflitos, diz ele.”
“Não as pessoas que ele escolhe pra ficar com ele. Uns alunos ao longo dos anos, e eu, sortuda que sou, e a minha mãe, antigamente. Ele tem dois filhos do primeiro casamento. Desastre e Ruína, é assim que os chama. Nem pense em tocar no assunto dos filhos dele.”
A maior parte do tempo falávamos sobre coisa alguma, eu e ela. Não tínhamos nada em comum, ao que parecia, mas os assuntos brotavam. Ela me contou que ficou confusa uma vez que entrou numa escada rolante que não estava funcionando. Isso aconteceu no aeroporto de San Diego, onde o pai estava esperando para pegá-la. Ela entrou numa escada rolante que estava parada e não conseguia entender, teve que subir a escada pensando em cada passo, e foi difícil, porque a toda hora ela esperava que a escada começasse a subir e por isso ela mal andava, mas parecia não ir a lugar nenhum porque os degraus não se mexiam.
Ela não sabia dirigir porque não conseguia fazer coisas com as mãos e os pés. Um dos velhos que ela ajudava tinha acabado de morrer de não sei quê múltipla. A mãe dela falava russo ao telefone, uma tempestade de russo dia e noite. Ela gostava do inverno, o parque coberto de neve, mas não ousava se aventurar muito pelo parque, no inverno os esquilos podiam estar com hidrofobia.
Eu gostava dessas conversas, eram tranquilas, com uma profundidade insólita em cada comentário solto que ela fazia. Às vezes eu ficava olhando para ela, à espera, talvez, de um olhar em resposta, uma demonstração de incômodo. Ela tinha feições comuns, olhos castanhos, cabelo castanho que a toda hora jogava para trás das orelhas. Havia uma determinação em seu olhar, uma insipidez que parecia fruto de um esforço de vontade. Era uma escolha que ela fizera, ter essa aparência, ou pelo menos era isso que eu me dizia. Sua vida era uma outra vida, não tinha nada a ver com a minha, e me proporcionava um alívio daquela canalização constante do meu tempo ali, e também de certo modo contrabalançava o poder que o pai dela exercia sobre meu futuro imediato.
Elster saiu de pijama se arrastando do quarto para ficar conosco no deque, descalço, caneca de café na mão. Olhou para Jessie e sorriu, parecendo lembrar, em sua tonteira, que queria fazer alguma coisa. Queria sorrir.
Instalou-se numa cadeira, falando devagar, a voz fraca e chamuscada, uma noite ruim, ainda era muito cedo.
“Antes de conseguir pegar no sono, finalmente, eu estava pensando que quando era pequeno eu tentava imaginar o final do século, era uma coisa distante e maravilhosa, e eu ficava calculando quantos anos teria quando o século terminasse, anos, meses, dias, e agora, olha só, coisa incrível, estamos aqui — já avançamos seis anos no outro século e eu me dou conta de que continuo sendo o mesmo garoto magricela, a minha vida à sombra da presença dele, que evita pisar nas rachaduras na calçada, não por superstição, mas como um teste, uma disciplina, continuo fazendo isso. O que mais? Arranco a cutícula do polegar com os dentes, sempre o polegar direito, continuo a fazer isso, roendo a cutícula, é assim que eu sei quem eu sou.”
Uma vez olhei dentro do armário de remédios do banheiro dele. Não precisei abrir a porta do armário, não havia porta. Fileiras de frascos, tubos, estojos de pílulas, quase três prateleiras inteiras, e mais uns vidros, um deles sem tampa, em cima da caixa-d’água da privada, e várias bulas espalhadas num banco, desdobradas, com textos de advertência em fonte miúda, em negrito.
“Não são os meus livros, as minhas conferências, conversas, nada disso. É a porcaria da cutícula do polegar, é ali que eu sou eu, a minha vida, de lá pra cá. Eu falo dormindo, sempre falei, minha mãe me dizia antigamente e eu não preciso que ninguém me diga agora, eu sei, eu ouço, e isso é mais importante, alguém devia estudar o que as pessoas dizem quando estão dormindo e alguém já deve ter estudado, algum paralinguista, porque é mais importante do que as mil cartas que a pessoa escreve ao longo da vida, e é literatura também.”
Nem todos os remédios exigiam prescrição médica, mas a maioria sim, e todos eles eram Elster. Loções, comprimidos, cápsulas, supositórios, cremes e géis, e os frascos e tubos em que eles vinham, e os rótulos, bulas, etiquetas com o preço — tudo isso era Elster, vulnerável, e minha presença no banheiro talvez seja de algum modo moralmente degradante, mas eu não me sentia culpado, apenas determinado a conhecer aquele homem e todos os acessórios de seu ser, as substâncias que alteravam seu humor, as substâncias que criavam dependência, que ninguém vê nem tenta imaginar. Não que essas coisas fossem aspectos sérios da vida verdadeira a que ele gostava de se referir, os pensamentos perdidos, as lembranças que abarcam décadas, a cutícula do polegar. Assim mesmo, de algum modo, lá estava ele em seu armário de remédios, o homem em si, claramente assinalado em gotas, colheres de sobremesa e miligramas.
“Olhem só pra tudo isso”, disse ele, sem olhar, a paisagem e o céu, que ele havia indicado com um movimento do braço para trás.
Nós também não olhamos.
“O dia acaba virando noite, mas é uma questão de luz e escuro, não é o tempo passando, o tempo mortal, não. Não tem aquele terror habitual. Aqui é diferente, um tempo enorme, é o que eu sinto aqui, uma coisa palpável. O tempo que nos precede e nos sobrevive.”
Eu estava começando a me acostumar àquilo, à escala de seus discursos, muitas décadas pensando e falando sobre questões transcendentes. Naquele momento ele estava falando com Jessie, ele estava falando com ela o tempo todo, sentado na cadeira, inclinado para a frente.
Ela disse: “O terror habitual. Qual é o terror habitual?”.
“Aqui não acontece, aquela contagem de minutos, a coisa que eu sinto nas cidades.”
Está tudo impregnado, as horas e minutos, palavras e números por toda parte, disse ele, estações ferroviárias, trajetórias de ônibus, taxímetros, câmaras de segurança. Tudo tem a ver com o tempo, tempo idiota, tempo inferior, gente consultando relógios e outros instrumentos, outros lembretes. É o tempo das nossas vidas escorrendo ralo abaixo. As cidades foram construídas para medir o tempo, para retirar o tempo da natureza. Tem uma contagem regressiva infinita, disse ele. Quando você retira todas as superfícies, quando você olha dentro da coisa, o que resta é o terror. Foi para curar essa coisa que inventaram a literatura. A epopeia, a história contada na hora de dormir.
“O filme”, eu disse.
Ele olhou para mim.
“O homem e a parede.”
“Isso”, concordei.
“O homem no paredão.”
“Não, não como um inimigo, mas uma espécie de visão, um fantasma dos conselhos de guerra, alguém que tem a liberdade de dizer o que quiser, coisas não ditas, coisas confidenciais, avaliar, condenar, divagar. O que o senhor disser, isso é o filme, o senhor é o filme, o senhor fala e eu filmo. Não tem gráfico, mapa, informação contextualizadora. Rosto e olhos, preto e branco, o filme é isso.”
Disse ele: “Paredão pros filhos da puta”, e me dirigiu um olhar duro. “Só que os anos 60 já acabaram há muito tempo e não tem mais barricadas.”
“O filme é a barricada”, disse eu. “A barricada que nós vamos construir, eu e o senhor. A barricada onde um homem diz a verdade.”
“Eu nunca sei o que dizer quando ele fala desse jeito.”
“Ele passou a vida inteira falando com alunos”, eu disse. “Ele não espera que a gente diga nada.”
“A cada segundo ele dá o último suspiro.”
“Passa o dia pensando, ele está aqui é pra isso mesmo.”
“E esse filme que você quer fazer.”
“Não posso fazer sozinho.”
“Mas não tem um filme de verdade que você esteja mais a fim de fazer? Porque quantas pessoas vão querer ficar esse tempo todo vendo um negócio tão zumbi?”
“Isso mesmo.”
“Mesmo se ele acabar dizendo coisas interessantes, é o tipo de coisa que as pessoas podem ler numa revista.”
“Isso mesmo”, eu disse.
“Não que eu vá muito ao cinema. Eu gosto de ver filme antigo, na televisão, esses que têm um homem acendendo um cigarro pra mulher. É o que eles fazem sempre nesses filmes antigos, os homens e as mulheres. Eu normalmente sou meio que totalmente desligadaça. Mas toda vez que vejo um filme antigo na televisão fico atenta pra ver se tem um homem acendendo um cigarro pra uma mulher.”
Eu disse: “O som dos passos nos filmes”.
“O som dos passos.”
“O som dos passos nos filmes nunca parece real.”
“São passos nos filmes.”
“Você está dizendo que não é pra parecer real.”
“São passos nos filmes”, ela disse.
“Eu levei seu pai para ver um filme uma vez. Chamado Psicose 24 horas. Não é um filme, é uma obra de arte conceitual. O velho filme de Hitchcock projetado tão devagar que a projeção inteira leva vinte e quatro horas.”
“Ele me contou.”
“Que foi que ele te disse?”
“Ele disse que era como ver o universo morrendo num período de mais ou menos sete bilhões de anos.”
“A gente ficou lá uns dez minutos.”
“Ele disse que era que nem a contração do universo.”
“Ele pensa numa escala cósmica. Isso a gente sabe.”
“A morte térmica do universo”, ela disse.
“Eu achei que ele ia se interessar. A gente entrou, dez minutos e ele fugiu, e eu fui atrás. Descemos seis andares sem ele me dizer uma palavra. Ele estava com a bengala. Uma descida lenta, escadas rolantes, multidões, corredores, por fim uma escada. Nem uma palavra.”
“Eu estive com ele naquela noite e ele me contou. Eu pensei que de repente eu ia gostar de ver. A ideia de que não acontece nada”, disse ela. “Ficar esperando só por esperar. No dia seguinte eu fui.”
“Você ficou um bom tempo?”
“Fiquei um bom tempo. Porque, mesmo quando uma coisa acontece, você está esperando a coisa acontecer.”
“Quanto tempo você ficou?”
“Não sei. Meia hora.”
“Bom. Meia hora é bom.”
“Bom, mau, tanto faz”, ela disse.
Elster disse: “Quando ela era pequena, ficava mexendo os lábios de leve, repetindo por dentro o que eu estava dizendo ou o que a mãe dela estava dizendo. Ela ficava olhando com muita atenção. Eu falava, ela olhava, tentando adivinhar meus comentários palavra por palavra, quase sílaba por sílaba. Os lábios dela se mexiam quase em sincronia com os meus”.
Jessie estava à mesa, sentada em frente a ele, enquanto ele falava. Estávamos comendo fritadas, comíamos fritadas quase todas as noites agora. Ele se orgulhava das fritadas que fazia e tentava convencer a filha a ficar observando-o quebrar os ovos, bater com um garfo, e por aí afora, falando o tempo todo enquanto punha o tempero e o azeite e os legumes, pronunciando a palavra frittata, mas ela não se interessava.
“Era como se ela fosse uma estrangeira aprendendo inglês”, disse ele. “Ficava grudada na minha cara, tentando definir as palavras que eu estava dizendo, absorver e processar as palavras. Ela olhava, pensava, repetia, interpretava. Olhava para a minha boca, examinava meus lábios, mexia os lábios dela. Tenho que confessar que fiquei decepcionado quando ela parou de fazer isso. Uma pessoa que sabe escutar de verdade.”
Estava olhando para ela, sorrindo.
“Nessa época ela falava com as pessoas, com desconhecidos. Ainda faz isso às vezes. Você ainda faz isso às vezes”, ele disse. “Com quem você fala?”
Jessie dando de ombros.
“Gente na fila do correio”, disse ele. “Babás com crianças.”
Ela mastigava a comida, de cabeça baixa, usando o garfo para revirar a fritada no prato antes de cortá-la.
Nós dividíamos um banheiro, eu e ela, mas ela quase nunca estava lá. Um pequeno kit de banheiro de avião, o único sinal de sua presença, ficava num canto da janela. O sabonete e as toalhas ela guardava no quarto.
Ela era como uma sílfide, seu elemento era o ar. Dava a impressão de que nada naquele lugar era diferente de qualquer outro, ali no sul e no oeste, naquela latitude e longitude. Ela atravessava os lugares deslizando de leve, sentindo as mesmas coisas em toda parte, era isso o que havia, o espaço interior.
A cama dela nunca era feita. Abri a porta do quarto e olhei lá dentro várias vezes mas não entrei.
Ficamos no deque até tarde, nós dois tomando uísque, a garrafa no deque e as estrelas em aglomerados. Elster olhava para o céu, tudo que vinha antes, dizia ele, ali para ser visto e mapeado e pensado.
Perguntei-lhe se ele tinha ido ao Iraque. Ele precisou pensar na pergunta. Eu não queria que ele achasse que eu sabia a resposta e estava perguntando para questionar a extensão de sua experiência. Eu não sabia a resposta.
Ele disse: “Detesto violência. Tenho medo da ideia de violência, não vejo filmes violentos, viro o rosto quando o noticiário da tevê mostra gente morta ou ferida. Eu me meti numa briga, eu era menino, tive espasmos”, disse ele. “A violência faz meu sangue congelar.”
Ele me disse que tinha autorização completa, acesso a todas as informações militares, mesmo as mais secretas. Eu sabia que isso não era verdade. Isso estava na voz e no rosto dele, um anseio amargo, e compreendi, é claro, que ele estava me dizendo coisas, verdadeiras ou não, só porque eu estava ali, nós dois estávamos ali, isolados, bebendo. Eu era seu confidente por exclusão, o rapaz a quem ele confiava os detalhes de sua realidade improvisada.
“Uma vez falei com eles sobre a guerra. O Iraque é um cochicho, eu disse a eles. Esses flertes nucleares que a gente tem com este ou aquele governo. Cochichos”, disse ele. “Eu estou lhe dizendo, isso vai mudar. Alguma coisa vai acontecer. Mas não é isso que a gente quer? Não é esse o fardo da consciência? Estamos todos esgotados. A matéria quer perder a autoconsciência. Nós somos a mente e o coração em que a matéria se transformou. Hora de fechar tudo. É isso que nos impele agora.”
Ele pôs mais uísque no copo e me passou a garrafa. Eu estava gostando daquilo.
“Nós queremos ser a matéria morta que éramos antes. Somos o último bilionésimo de segundo na evolução da matéria. Quando era aluno eu procurava ideias radicais. Cientistas, teólogos, eu lia a obra de místicos de vários séculos, eu tinha uma mente esfomeada. Uma mente pura. Eu enchia cadernos com as minhas versões das filosofias todas. E agora, olha como estamos. Inventando narrativas folclóricas do final. Doenças de animais se espalhando, câncer transmissível. O que mais?”
“O clima”, eu disse.
“O clima.”
“O asteroide”, eu disse.
“O asteroide, o meteorito. O que mais?”
“Fome, fome mundial.”
“Fome”, ele disse. “O que mais?”
“Me dá um minuto.”
“Não precisa. Porque isso não interessa. Isso pra mim não serve pra nada. Nós temos que ir além disso.”
Eu não queria que ele parasse. Ficamos bebendo em silêncio e tentei pensar em outras possibilidades para o fim da vida humana na Terra.
“Eu era estudante. Eu almoçava e estudava. Eu estudei a obra de Teilhard de Chardin”, disse ele. “Ele foi pra China, um padre fora da lei, China, Mongólia, fazendo escavações, procurando ossos. Eu almoçava em cima do livro aberto. Eu não precisava de bandeja. As bandejas eram empilhadas no início da fila do refeitório do colégio. Ele dizia que o pensamento humano é vivo, circula. E a esfera do pensamento humano coletivo, ela está se aproximando do final, do último lampejo. Existia um camelo na América do Norte. Cadê ele?”
Eu quase disse: na Arábia Saudita. Em vez disso, devolvi a garrafa a ele.
“O senhor dizia coisas a eles. Eram reuniões do conselho de políticas? Quem estava lá?”, perguntei. “Gente do primeiro escalão? Militares?”
“Estava lá quem estava lá.”
Gostei dessa resposta. Ela dizia tudo. Quanto mais eu pensava, mais claro tudo parecia estar.
Ele disse: “Matéria. Todas as etapas, do nível subatômico aos átomos às moléculas inorgânicas. Nós expandimos, crescemos pra fora, é a natureza da vida desde que surgiu a célula. A célula foi uma revolução. Pense só. Os protozoários, as plantas, os insetos, o que mais?”.
“Não sei.”
“Os vertebrados.”
“Os vertebrados”, eu disse.
“E as formas surgindo. Se arrastando, rastejando, os bípedes, o ser consciente, o ser autoconsciente. A matéria bruta se transformando em pensamento humano analítico. A nossa bela complexidade mental.”
Ele fez uma pausa, bebeu, fez outra pausa.
“O que é que nós somos?”
“Não sei.”
“Somos uma multidão, um enxame. Pensamos em grupos, viajamos em exércitos. Os exércitos levam o gene da autodestruição. Uma bomba nunca basta. A indefinição da tecnologia, é aí que os oráculos planejam suas guerras. Porque agora vem a introversão. O padre Teilhard sabia disso, o ponto ômega. Um salto pra fora da nossa biologia. Faça essa pergunta a você mesmo. Nós temos que ser humanos pra sempre? A consciência se esgotou. Agora é voltar pra matéria inorgânica. É isso que nós queremos. Queremos ser pedras num campo.”
Fui pegar gelo. Quando voltei ele estava mijando do deque, na ponta dos pés para que o jato de urina passasse por cima do parapeito. Então nos sentamos e ficamos ouvindo os ruídos de animais ao longe entre os arbustos, e nos lembramos de onde estávamos, e ficamos algum tempo sem falar depois que os sons aos poucos morreram. Ele disse que gostaria de ter permanecido estudante, ido à Mongólia, um lugar remoto de verdade, para viver e trabalhar e pensar. Ele me chamou de Jimmy.
“O senhor vai ter todas as oportunidades de falar sobre essas coisas”, eu disse. “Falar, silenciar, pensar, falar. O seu rosto”, eu disse. “Quem o senhor é, em que o senhor acredita. Outros pensadores, escritores, artistas, ninguém nunca fez um filme assim, nada planejado, nada ensaiado, nenhuma estrutura complexa, nenhuma conclusão predeterminada, uma coisa completamente sem máscara, sem cortes.”
Pronunciei essas falas num balbucio alcoólico, semiconsciente de que já tinha dito tudo isso antes, e ouvi-o respirar fundo e depois falar com uma voz tranquila e contida, até mesmo triste.
“O que você quer, meu amigo, quer você saiba ou não, é uma confissão pública.”
Isso não podia ser verdade. Eu disse a ele que de maneira alguma. Eu disse a ele que não tinha nenhuma intenção de fazer uma coisa assim.
“Uma conversão no leito de morte. É isso que você quer. A insensatez, a vaidade do intelectual. A vaidade cega, o culto ao poder. Me perdoem, me absolvam.”
Lutei contra aquela concepção, interiormente, e disse a ele que não tinha nenhuma ideia em particular além do que eu já tinha dito.
“Você quer filmar um homem em crise”, ele disse. “Eu entendo. Senão qual é o sentido?”
Um homem se dissolvendo na guerra. Um homem que ainda acredita na justeza da guerra, a guerra dele. Como ele ficaria, seu rosto, suas palavras, num filme, num cinema, numa tela em algum lugar, falando sobre uma guerra em haicais? Eu tinha pensado nisso? Eu tinha pensado na parede, na cor e na textura da parede, e tinha pensado no rosto do homem, as feições que eram fortes mas que também poderiam desabar ao se manifestarem as verdades cruéis que pudessem brotar em seus olhos, e então pensei em Jerry Lewis, visto em close em 1952, Jerry arrancando a gravata enquanto cantava alguma balada melosa da Broadway.
Antes de entrar na casa, Elster segurou meu ombro, para me tranquilizar, ao que parecia, e eu permaneci no deque por algum tempo, afundado demais na cadeira, na própria noite, para pegar a garrafa de uísque. Atrás de mim, a luz do quarto dele se apagou, iluminando o céu, e como aquilo parecia estranho, metade do céu ficando mais próxima, todas aquelas massas incandescentes aumentando em número, as estrelas e constelações, porque alguém apaga a luz numa casa no deserto, e lamentei que ele não estivesse ali para que eu pudesse ouvi-lo falar sobre isso, o próximo e distante, o que pensamos que estamos vendo quando não estamos vendo.
Me perguntei se não estávamos nos transformando numa família, tão estranha quanto qualquer família, a única diferença sendo que não tínhamos nada para fazer, nenhum lugar para ir, mas isso também não é estranho, pai, filha e fosse lá o que eu fosse.
Ela disse outra coisa também, a minha mulher, solidária, referindo-se ao modo como eu encarava a vida de um lado e o cinema de outro.
“Por que é tão difícil ser sério, tão fácil ser sério demais?”
A porta do banheiro estava aberta, ao meio-dia, e Jessie estava lá dentro, descalça, de camiseta e calcinha, lavando o rosto. Parei à porta. Eu não sabia se queria que ela me visse ali. Não conseguia me imaginar entrando e me colocando atrás dela e debruçando-me sobre ela, não conseguia ver a cena com clareza, enfiando as mãos por baixo da camiseta, abrindo suas pernas com meus joelhos para poder me apertar contra ela com mais força, encaixar-me no lugar, mas no pulsar tênue do momento a ideia estava ali, e quando me afastei da porta não fiz nenhum esforço especial para não fazer barulho.
O zelador chegou de carro, um sujeito atarracado com boné na cabeça e brinco numa das orelhas. Ele cuidava da casa quando Elster não estava lá, mais ou menos dez meses por ano, na maioria dos anos. Observei-o andar até o lado da casa onde ficava o botijão de propano. Quando ele voltou, cumprimentei-o com um movimento de cabeça quando ele entrou na casa. O homem não deu sinal de que registrara minha presença. Imaginei que ele moraria num daqueles conglomerados excêntricos de barracões, trailers e carros sem rodas, povoados acocorados que às vezes dava para ver das estradas de asfalto.
Elster foi atrás dele para a cozinha, falando sobre um problema do fogão, e eu olhei para as serras brancas como giz e me enquadrei daquela distância, de um modo clínico, homem numa paisagem num dia longo, quase invisível.
O almoço era móvel, flexível, cada um come quando e onde quiser. Dei por mim na mesa junto com Elster, que estava olhando para o queijo fundido que Jessie havia comprado na última vez que fomos à cidade. Ele disse que o corante daquele queijo era urânio usado e em seguida o comeu, com mostarda, entre duas fatias de pão de prisão, e eu fiz o mesmo.
Jessie era o sonho do pai. Ele não parecia ficar perplexo diante do modo atrofiado como ela reagia a seu amor. Não reparar era natural nele. Não sei se Elster tinha consciência do fato de que ela não era ele.
Quando terminou o sanduíche, ele se debruçou sobre a mesa, apoiando-se nos cotovelos, falando num tom mais baixo.
“Não faço questão de ver um carneiro selvagem antes de morrer.”
“Certo”, respondi.
“Mas quero que a Jessie veja.”
“Certo. A gente pega o carro.”
“A gente pega o carro”, ele disse.
“Vai ter uma hora que a gente talvez tenha que saltar do carro e subir uma encosta. Eu acho que eles ficam parados na beira dos precipícios. Eu gostaria de ver um deles. Não sei muito bem por quê.”
Ele se aproximou um pouco mais.
“Você sabe por que ela está aqui.”
“Imagino que o senhor quisesse estar com ela.”
“Eu sempre quero estar com ela. A mãe, foi ideia da mãe dela. Ela está saindo com um homem.”
“Certo.”
“E a mãe dela está cismada com as intenções dele, ou então é só o jeito dele, a cara dele. E ela decretou, do jeito autoritário dela, que era melhor a Jessie se afastar dele um pouco, por ora, temporariamente, para testar o envolvimento dela.”
“Por isso ela veio pra cá. E o senhor falou com ela sobre isso.”
“Tentei. Ela fala pouco. Não tem problema nenhum, é o que ela diz. Parece que ela gosta do sujeito. Eles saem. Eles conversam.”
“Qual o grau de intimidade entre eles?”
“Eles conversam.”
“Eles transam?”
“Eles conversam”, ele disse.
Agora estávamos os dois debruçados sobre a mesa, um de frente para o outro, falando num cochicho nervoso.
“Ela nunca teve um caso?”
“Confesso que às vezes me pergunto isso.”
“Nenhum namorado sério.”
“Acho que não, não, com certeza não.”
“É a mãe dela que mandou ela pra cá. Isso certamente quer dizer alguma coisa.”
“A mãe dela é uma mulher lindíssima, até hoje, mas entre nós ainda tem muito ressentimento, e quando ela manda a menina ficar comigo, isso quer dizer alguma coisa, sim. Mas além disso ela é maluca. É uma louca varrida que exagera tudo.”
“O sujeito não vive perseguindo ela. Tipo psicopata.”
“Não, Deus me livre, não é psicopata, não, odeio essa palavra. Talvez persistente, só isso. Ou então é gago. Ou então tem um olho castanho e outro azul.”
“As esposas. Que assunto”, eu disse.
“As esposas, sim.”
“Quantas?”
“Quantas. Duas”, ele disse.
“Só duas. Eu pensava que era mais.”
“Só duas”, ele disse. “A sensação que eu tenho é que é mais.”
“As duas loucas. Estou só chutando.”
“As duas loucas. Com tempo a coisa vai amadurecendo.”
“O quê, a loucura?”
“No início a gente não vê. Ou porque elas escondem ou porque a coisa precisa amadurecer. Quando isso acontece, não tem que errar.”
“Mas Jessie é o tesouro, a bênção.”
“Isso mesmo. E você?”
“Não tenho filho.”
“A sua mulher. Que você separou dela. Ela é louca?”
“Ela acha que eu é que sou louco.”
“Você não concorda”, ele disse.
“Não sei.”
“Você está protegendo o quê? Ela é louca. Pode dizer.”
Nós dois continuávamos cochichando, o cochicho parecia fortalecer os laços entre nós, mas eu não disse. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos por um momento, vendo meu apartamento, limpo e silencioso e vazio, quatro horas da tarde, horário de Nova York, e minha presença parecia maior lá, naquela luz poeirenta, do que ali, na casa ou sob um céu aberto, mas eu me perguntava se eu queria mesmo voltar a ser o homem que mora no quarto e sala cercado pela cidade construída para medir o tempo, segundo Elster, o tempo furtivo dos relógios, calendários, minutos que restam para viver.
Então olhei para ele e perguntei se havia um binóculo na casa. Vamos precisar de um binóculo para a expedição, expliquei. Ele pareceu ficar perplexo. Os carneiros selvagens, eu disse. Se a gente não morrer afogada numa cabeça-d’água. Se o calor não matar a gente. Vamos precisar de um binóculo para ver os detalhes. O macho é o que tem aqueles chifrões curvos.
* * *
Ela disse uma coisa engraçada no jantar, que os olhos dela ficavam mais perto um do outro em Nova York, por efeito do congestionamento em série das ruas. Ali no deserto os olhos se afastam, os olhos se adaptam ao ambiente, como asas ou bicos.
Em outras ocasiões ela parecia insensível a qualquer coisa que pudesse lhe provocar alguma reação. Seu olhar parecia encurtado, não chegava até a parede ou a janela. Olhar para ela me perturbava, por saber que ela não se sentia observada. Onde estaria ela? Não estava imersa em pensamentos nem lembranças, não estava planejando a próxima hora nem o próximo minuto. Estava ausente, tensamente imobilizada por dentro.
Seu pai se esforçava para não perceber esses momentos. Sentado do outro lado da sala, na companhia de seus poetas, lia movendo os lábios.
Abordei Richard Elster depois de uma conferência que ele deu na New School e não perdi tempo, fui logo falando na ideia de fazer um filme, simples e forte, eu disse, o homem e a guerra, ele também não perdeu tempo, me deixou gesticulando no meio de uma frase, mas só por um momento. Fui atrás dele pelo corredor, falando não tão depressa, e depois o acompanhei no elevador, ainda falando, e quando chegamos à rua ele olhou para mim e fez um comentário sobre a minha aparência, dizendo que eu parecia ele quando ele era muito mais jovem, um estudante que comia pouco e estudava demais. Achei que isso era um estímulo, dei-lhe meu cartão de visitas e ouvi-o ler em voz alta, Jim Finley, Deadbeat Films. Mas não estava interessado em participar de um filme, nem meu nem de ninguém.
O segundo encontro foi mais longo e mais estranho. No MoMA. Toda vez que eu vou ao museu, por mais vezes que já tenha ido, andando em direção ao oeste, ele está sempre mais longe que da vez anterior. Eu estava perambulando por uma exposição sobre dadaísmo e lá estava Elster, sozinho, debruçado sobre um mostruário. Eu sabia que ele havia escrito a respeito dos significados do balbuciar dos bebês, e por isso evidentemente estaria interessado numa mostra importante de objetos criados em nome da demolição da lógica. Fiquei atrás dele por meia hora. Eu olhava as coisas que ele olhava. Às vezes ele se apoiava na bengala, em outras ocasiões apenas a carregava, de qualquer jeito, na horizontal, em meio às marés de gente. Eu disse a mim mesmo para ficar tranquilo, ser civilizado, falar devagar. Quando ele foi andando em direção à saída, aproximei-me dele, lembrei-o do nosso encontro anterior, falei sobre o balbuciar dos bebês e depois insisti com jeito para que ele subisse até o sexto andar e fosse à galeria onde estava a instalação de Psicose em baixa velocidade. Ficamos parados na escuridão, olhando. Senti quase na mesma hora que Elster estava resistindo. Alguma coisa vinha sendo subvertida ali, sua linguagem tradicional de reação. Imagens natimortas, tempo desmontado, uma ideia tão aberta à teorização e à argumentação que não lhe deixava um contexto nítido para dominar, apenas a rejeição seca. Na rua ele falou por fim, basicamente sobre a dor no joelho. Quanto ao filme, nem pensar, jamais.
Uma semana depois ele me telefonou dizendo que estava num lugar chamado Anza-Borrego, na Califórnia. Eu nunca ouvira falar nele. Então chegou pelo correio um mapa desenhado à mão, estradas e trilhas para jipes, e na tarde seguinte peguei um voo barato. Dois dias, pensei. Três no máximo.