Evaporar-se, pelo visto era essa a razão de ser dela, era para isso que ela fora feita, quarenta e oito horas, nenhum recado, nenhum sinal. Teria ela ultrapassado o limite das conjecturas ou estaríamos nós dispostos a imaginar o que acontecera? Eu tentava não pensar além da geografia, cada momento definido pela desolação à nossa volta. Porém a própria imaginação era uma força natural, irrefreável. Animais, pensei, e o que eles fazem com os corpos no deserto, na mente, nenhum lugar é seguro.
Na véspera, tendo dado todos os telefonemas e avisado todas as pessoas, eu estava do lado de fora da casa quando vi um carro no horizonte deslizando lentamente, num torvelinho de pó e névoa, como num plano geral num filme, um momento de lenta expectativa.
Era o xerife, rosto largo e vermelho, barba aparada. Havia um helicóptero no ar, disse ele, e uma patrulha dando uma busca em terra. A primeira coisa que ele queria saber era se recentemente tinha havido algum desvio no padrão normal do comportamento de Jessie. O único desvio, respondi, era o fato de que ela havia desaparecido.
Mostrei a casa para ele. Ele parecia procurar sinais de uma luta. Examinou o quarto de Jessie e falou rapidamente com Elster, que passou o tempo todo sentado no sofá, quase sem conseguir se mexer, ou por estar medicado ou por não ter dormido. Ele não disse quase nada e demonstrou confusão ao ver um homem de uniforme em sua casa, um homem grandalhão que fazia a sala encolher, distintivo no peito, arma na cintura.
Lá fora o xerife disse que, àquela altura, não havia indício de crime a ser investigado. Mais tarde, o procedimento seria coordenar um programa com funcionários de outros condados a fim de examinar registros de hotéis, registros de telefonemas, carros alugados, reservas em voos e outras questões.
Mencionei o zelador. Ele disse que conhecia o homem fazia trinta anos. Era um naturalista voluntário, que entendia de plantas e fósseis locais. Eles eram vizinhos, o xerife me disse, e então olhou para mim e enumerou algumas categorias de pessoas em crise, terminando com aquelas que vêm ao deserto para se suicidar.
Elster concordou em dar o telefonema, por fim, o telefonema para a mãe de Jessie. Experimentei o sinal em vários pontos da casa e constatei que era mais forte do lado de fora, final de tarde, o homem de costas para a casa. Ele falava em russo, o corpo encurvado, era-lhe difícil falar mais alto do que um sussurro. Houve pausas longas. Ele ouvia, depois voltava a falar, cada palavra era uma súplica, a reação de um homem acusado, negligente, idiota, culpado. Mantive-me a certa distância dele, me dando conta de que a única vez em que ele falou num inglês hesitante foi numa tentativa desajeitada de imitar a voz da filha, uma manifestação de dor compartilhada e identidade paterna. Surgiu um helicóptero no céu desmaiado para os lados do leste, e fiquei vendo Elster empertigar a coluna, lentamente, levantando a cabeça, a mão livre tapando o sol.
Mais tarde lhe perguntei se ele havia feito o que eu lhe dissera. Elster olhou para o outro lado e seguiu em direção a seu quarto. Eu lhe dissera para perguntar sobre o amigo de Jessie, o homem com quem ela andava saindo. Não fora por isso que a mãe mandara Jessie ficar com ele? Fui até a porta do quarto de Elster. Ele estava sentado na cama, esboçando com uma das mãos um gesto que não consegui interpretar. Não adianta nada, ou não tem nada a ver, ou me deixe em paz.
Ele queria o mistério puro. Talvez fosse mais fácil para ele, alguma coisa além do alcance escuso da motivação humana. Eu tentava pensar no que ele estaria pensando. O mistério tinha sua verdade, tanto mais profunda quanto mais informe, um significado esquivo que talvez lhe poupasse dos detalhes explícitos que, de outro modo, lhe viriam à mente.
Mas não era isso que ele estava pensando. Eu não sabia o que ele estava pensando. Eu mal sabia o que eu estava pensando. Meu pensamento só atuava em torno do fato do desaparecimento de Jessie. Quanto ao centro, ao momento em si, o ponto físico crucial da coisa, era um buraco no ar.
Perguntei: “O senhor quer que eu ligue?”.
“Não faz sentido. Alguém em Nova York.”
“Não é para fazer sentido. O que é que faz sentido? O desaparecimento de uma pessoa nunca faz sentido”, disse eu. “Qual é o nome dela, a mãe de Jessie? Eu falo com ela.”
Foi só na manhã seguinte que ele concordou em me dar o número dela. Ocupado por meia hora, depois atendeu uma mulher irritada que não queria responder perguntas feitas por uma pessoa que ela não conhecia. Por algum tempo a conversa não foi a lugar nenhum. Ela havia estado com o homem uma vez, não sabia onde ele morava, que idade tinha exatamente, o que ele fazia na vida.
“Me diga o nome dele, só isso. A senhora sabe?”
“Ela tem três amigas, garotas, dessas eu sei o nome. Fora isso, aonde ela vai, com quem, ela não ouve nomes, ela não me diz nomes.”
“Mas esse homem. Eles saíam, não é? A senhora esteve com ele, a senhora disse.”
“Porque eu insisti. Dois minutos, ele parado aqui. Depois eles saem.”
“Mas ele disse o nome dele, ou então a Jessie disse.”
“Pode ser que ela tenha dito, só primeiro nome.”
Ela não conseguia se lembrar do nome, e isso a irritava mais ainda. Passei o telefone para Elster e ele disse alguma coisa para tranquilizá-la. Não deu certo, mas eu não queria desistir. Disse a ela que havia alguma coisa a respeito desse homem que não a agradava. Me diga, pedi, e pela primeira vez ela falou sem má vontade.
Durante uma semana, ou mais, o telefone tocava. Quando ela atendia, a pessoa desligava. Ela sabia que era ele, tentando falar com Jessie. A tela do aparelho exibia Número Confidencial. Era ele todas as vezes, desligando delicadamente, e ela se lembrava da figura dele à porta da casa dela como um sujeito que a gente vê três vezes por semana, o entregador da loja, e mesmo assim não sabe como ele é.
“A última vez que deu Número Confidencial eu atendo o telefone e não digo nada. Ninguém fala. Nós dois jogando uma espécie de jogo besta. Eu espero, ele não diz nada. Ele espera, eu não digo nada. Um minuto inteiro. Então eu digo eu sei quem você é. Homem desliga telefone.”
“A senhora tem certeza que era ele.”
“É aí que eu digo a ela você vai viajar.”
“E na mesma hora ela viajou.”
“Telefonemas param”, disse a mãe.
Ele parou de fazer a barba, eu fazia questão de me barbear todos os dias, agir como antes. Aguardávamos notícias. Eu queria sair, pegar o carro e me juntar à equipe de busca. Porém imaginava Elster com a boca cheia de soporíferos, todo o conteúdo de um frasco. Eu imaginava uma gosma úmida, uma bola, trinta ou quarenta comprimidos compactados e saliva escorrendo. Sentei-me ao lado dele e lhe falei sobre os remédios no armário do banheiro. Só a dose de sempre, eu lhe disse. Leia com muita atenção a bula, atente para as advertências. Disse isso mesmo, atente para as advertências, e não achei o fraseado forçado. Eu imaginava Elster parado à porta do banheiro, sem conseguir fechar a boca direito por causa da massa densa de comprimidos, uma tentativa tateante, literalmente um gostinho de suicídio, apoiando-se com uma mão em cada alizar.
Jessie não tinha celular, mas a polícia estava verificando se ela havia feito ou recebido ligações nos nossos telefones. Estavam examinando os registros dos hotéis, relatos sobre crimes nos condados e estados vizinhos.
“Nós não podemos ir embora.”
“Não podemos, não.”
“E se ela voltar?”
“Um de nós tem que estar aqui”, eu disse.
Agora era eu quem preparava as fritadas. Ele parecia não saber o que fazer com o garfo que tinha na mão. De manhã eu preparava o café, punha na mesa pão, cereal, leite, manteiga e geleia. Então eu ia para o quarto de Elster e o convencia a se levantar. Não acontecia nada que não fosse marcado pela ausência de Jessie. Ele comia pouco. Andava pela casa como se estivesse passando um esfregão no chão, dando passos determinados por uma circunstância trabalhosa.
Elster devia ir a Berlim dentro de uma semana, uma conferência, um congresso, ele não deu detalhes.
Começou a ver coisas com o canto do olho, o olho direito. Entrava num cômodo e vislumbrava alguma coisa, uma cor, um movimento. Quando virava a cabeça, nada. Acontecia uma ou duas vezes por dia. Expliquei-lhe que era uma coisa fisiológica, sempre o mesmo olho, alguma disfunção rotineira, nada de sério, acontece com pessoas de certa idade. Ele se virava e olhava. Alguém estava lá, mas aí ela não estava mais.
Eu voltara a contar os dias, tal como fazia no começo. Os dias desde o desaparecimento. Um de nós estava sempre no deque, montando guarda. Fazíamos isso até tarde da noite. Virou um ritual, uma prática religiosa, muitas vezes, quando nós dois estávamos juntos, inteiramente silenciosa.
Mantínhamos fechada a porta do quarto dela.
Ele começou a assemelhar-se a um desses reclusos que vivem numa cabana numa mina abandonada, um velho que não toma banho, trêmulo, a barba por fazer, olhos desconfiados, entre um passo e outro o medo de que alguém ou alguma coisa esteja à sua espera.
Agora ele se referia a ela como Jessica, o nome de verdade, o nome de batismo. Falava em fragmentos, abrindo e fechando a mão. Eu percebia que ele estava sendo insistentemente impelido para dentro. O deserto era um vidente, isso era no que ele sempre acreditara, a paisagem se desenrola e revela, ela conhece o futuro tanto quanto o passado. Porém agora ela o fazia sentir-se enclausurado, e eu compreendia isso, confinado, encurralado. Fora da casa, nós sentíamos o deserto pressionando. Um trovão estéril parecia pairar sobre a serra, luz de tempestade vindo em nossa direção. Uma centena de infâncias, disse ele, obscuro. Referindo-se sabe-se lá ao quê, talvez ao trovão, um ronco suave e evocativo a ressoar ao longo dos anos.
Ele me perguntou pela primeira vez o que havia acontecido. Não o que eu pensava ou achava ou imaginava. O que aconteceu, Jimmy? Eu não sabia o que lhe dizer. Nada que eu pudesse lhe dizer era mais ou menos provável do que alguma outra coisa. A coisa havia acontecido, fosse o que fosse, e não havia sentido em tentar chegar a ela pelo pensamento, embora tentássemos fazer isso, é claro, ou ao menos eu tentasse. Ele tinha um passado íntimo em que pensar, e o passado dela e o da mãe dela. Era isso que lhe restava, tempos e lugares perdidos, a vida verdadeira, vez após vez.
Um telefonema, tarde da noite, a mãe.
“Acho que sei o nome dele.”
“A senhora acha que sabe.”
“Eu estava dormindo. Então acordei com nome dele. É Dennis.”
“A senhora acha que é Dennis.”
“É Dennis, sim, com certeza.”
“O primeiro nome é Dennis.”
“Foi só o que ouvi, primeiro nome. Acordei, agora mesmo, é Dennis”, disse ela.
À noite os cômodos eram relógios. O silêncio era quase completo, paredes nuas, chão de tábua corrida, o tempo aqui e lá fora, nas trilhas da serra, cada minuto que passava uma função da nossa espera. Eu estava bebendo, ele não. Eu não o deixava beber e ele não parecia se incomodar com isso. O pôr do sol agora era só a luz morrendo, as possibilidades diminuindo. Durante semanas não havia nada a fazer senão conversar. Agora, nada a dizer.
O nome parecia agourento, Jessica, parecia uma rendição formal. Eu era o homem que havia ficado parado no escuro olhando para ela deitada na cama. Fosse qual fosse a sensação de envolvimento de Elster, a natureza de sua culpa e fracasso, eu compartilhava esses sentimentos. Sentado, ele ficava abrindo e fechando a mão. Quando ouvia helicópteros descendo do céu ensolarado, levantava a vista, surpreso, sempre, e aí se lembrava do motivo pelo qual eles estavam lá.
Ficávamos o tempo todo testando os lugares em que o sinal do celular era mais forte, um de nós olhando para um lado, o outro para o outro, dentro da casa, fora da casa, dando e recebendo telefonemas, o telefone num ouvido, a mão livre no outro, ele no deque, eu no caminho à frente da casa, a quarenta metros da porta. Eu tentava não olhar quando nós dois fazíamos isso. Eu queria ficar dentro da coisa, onde a dança era uma questão prática. Queria estar livre da visão.
Comecei a usar os halteres antigos que ele havia encontrado. Eu ficava no meu quarto levantando pesos e contando. Telefonei para os guardas do parque e o xerife. Não conseguia me esquecer do que o xerife tinha dito. Há pessoas que vêm para o deserto para se suicidar. Eu sabia que precisava perguntar a Elster se alguma vez ela havia manifestado tendências. Jessica. Ela andava consultando algum médico? Tomava antidepressivos? Seu kit continuava no banheiro que eu dividia com ela. Não encontrei nada lá dentro, falei com o pai dela, telefonei para a mãe dela, não fiquei sabendo de nenhum dos dois nada que pudesse apontar para uma tendência nesse sentido.
Eu levantava os pesos um de cada vez, depois os dois juntos, vinte repetições para um lado, dez para o outro, levantando e contando, vez após vez.
Levei-o até o deque e sentei-o numa cadeira. Ele estava de pijama, com um par de tênis velhos, cadarços desamarrados, os olhos parecendo traçar um único pensamento. Era nisso que ele fixava a vista agora, não em objetos e sim em pensamentos. Fiquei atrás dele com uma tesoura e um pente nas mãos, e lhe disse que era hora de cortar o cabelo.
Ele virou a cabeça ligeiramente como quem pergunta, porém a virei para a posição original e comecei a aparar suas costeletas. Eu falava enquanto trabalhava. Falava num fluxo constante, penteando e cortando as mechas emaranhadas num dos lados de sua cabeça. Eu lhe disse que aquilo não era fazer a barba. Algum dia ele ia querer fazer a barba, isso ele teria que fazer sozinho, mas o cabelo era uma questão de moral, minha e dele. Eu disse muitas coisas vazias naquela manhã, falando por falar, acreditando no que dizia só até certo ponto. Retirei o elástico embolado do rabo de cavalo que pendia sobre a nuca e tentei pentear e aparar. A toda hora eu passava de um trecho de seu cabelo a outro. Ele falava sobre a mãe de Jessie, o rosto e os olhos dela, cheio de admiração, a voz cada vez mais baixa, grave e rouca. Senti-me compelido a aparar os pelos em suas orelhas, longas fibras brancas enrodilhadas emergindo da escuridão. Eu tentava desenroscar cada centímetro de vegetação emaranhada antes de cortar. Ele falou sobre seus filhos. Você não sabe disso, disse ele. Tenho dois filhos do primeiro casamento. A mãe deles era paleontologista. Então ele repetiu. A mãe deles era paleontologista. Estava relembrando a mulher, vendo-a na palavra. Ela adorava este lugar, e os meninos também. Eu, não, disse ele. Mas com o tempo isso foi mudando. Ele começou a antegozar os períodos que passavam naquela casa, disse ele, e então o casamento terminou e os meninos já eram rapazes e ele não conseguiu dizer mais nada.
Afastei-me um pouco para um lado, com a cabeça inclinada, e examinei o que havia feito. Tinha me esquecido de pôr uma toalha sobre os ombros de Elster, e havia pelos por toda parte, no rosto, na nuca, no colo, nos ombros, no pijama. Não fiz nenhum comentário sobre os filhos. Simplesmente continuei cortando. Se fosse necessário lhe dar um banho, eu daria. Eu enfiaria a cabeça dele na pia da cozinha e lavaria seu cabelo. Esfregaria a pele para tirar o cheiro azedo que o acompanhava. Eu lhe disse que já estava quase terminando, mas eu não estava quase terminando. Então lembrei que havia me esquecido de outra coisa, de pegar uma escova para tirar os pelos cortados. Mas não entrei na casa para procurar uma escova. Simplesmente continuei cortando, penteando e cortando.
O telefone tocou cedo. A equipe de busca havia encontrado uma faca numa ravina profunda não muito longe de um trecho chamado Área de Impacto, entrada proibida, um lugar antigamente utilizado para testes com explosivos, onde havia muitas bombas não explodidas. A equipe havia cercado uma área em torno do objeto e estava aprofundando a busca. O guarda teve o cuidado de não se referir à faca como uma arma. Podia ser a faca de algum andarilho, algum turista, podia ter muitas utilidades diferentes. Deu a localização aproximada de uma estrada de terra que levava ao lugar e, quando terminamos a conversa, peguei o mapa de Elster e rapidamente localizei a Área de Impacto, um trecho largo de terreno geométrico com fronteiras retilíneas. Havia riscos finos e ondulados para o oeste — cânions, leitos secos de rios, estradas de minas.
Elster estava no quarto, dormindo, e eu debrucei-me sobre sua cama e escutei-o respirar. Não sei por que fechei os olhos ao fazer isso. Então examinei o armário de remédios para ver se o número de comprimidos nos diversos frascos não havia diminuído de modo perceptível. Preparei café, pus a mesa para ele e deixei um bilhete avisando que tinha ido à cidade.
A lâmina parecia não ter marcas de sangue, o guarda dissera.
Fui seguindo rumo à cidade e então tomei a direção leste por algum tempo, aproximando-me da área em questão. Saí da estrada asfaltada e segui por uma trilha esburacada que me levou a um leito seco de rio, longo e arenoso. Aos poucos foram se erguendo desfiladeiros altos rachados dos dois lados do carro, e não demorou para que eu chegasse a um beco sem saída. Pus o chapéu na cabeça, saltei do carro e senti o calor, o impacto e a força do calor. Abri o porta-malas e levantei a tampa do isopor, onde havia duas garrafas d’água imersas em gelo derretido. Eu não sabia a que distância estava do local da busca e tentei telefonar para o guarda, mas não havia sinal. Eu caminhava entre pedregulhos achatados, deslocados do alto da serra por cabeças-d’água ou eventos sísmicos. O solo daquela trilha parecia ser de granito esfarinhado. De vez em quando eu me detinha e olhava para cima e via um céu que parecia confinado, comprimido. Ficava olhando por um bom tempo. O céu estava esticado entre beiras de desfiladeiros, um céu estreitado e baixo, isso era a coisa estranha, o céu logo ali, era só escalar o desfiladeiro de pedra que se podia pôr a mão nele. Comecei a andar de novo e cheguei ao final da passagem estreita, entrando numa área aberta coberta de arbustos e pedras, e usando mãos e pés cheguei ao cume de um monte de pedregulhos, e lá do alto se descortinava todo o mundo ressequido.
Corri a vista pelas marés ofuscantes de luz e céu, e vi lá embaixo as serras cor de cobre, em dobras, que deviam ser as voçorocas, uma série de cristas primevas se elevando do solo do deserto, formando desenhos geométricos. Poderia haver uma pessoa morta ali? Eu não conseguia imaginar tal coisa. Era um lugar amplo demais, irreal, uma simetria de fendas e protuberâncias, aquilo me esmagava, uma beleza de partir o coração, uma indiferença, e quanto mais olhava mais certeza eu tinha de que jamais teríamos uma resposta.
Eu precisava sair do sol, e fui deslizando encosta abaixo até o terreno plano onde havia uma nesga de sombra, e lá tirei do bolso a garrafa d’água. Tentei mais uma vez ligar para o guarda do parque. Queria lhe dizer onde eu estava. Queria saber onde ele estava, dessa vez de modo mais preciso. Queria chegar ao local só para ver, para sentir o que estava lá. Presumia que a faca já estaria sendo encaminhada a algum laboratório de análises criminais em algum lugar no condado. Presumia que o xerife havia agido com base na informação que eu lhe dera a respeito dos telefonemas que a mãe de Jessie estava recebendo do Número Confidencial. Dennis. Na minha cabeça ele era Dennis X. Haveria uma justificativa legal para identificar os telefonemas? A mãe se lembraria corretamente do nome do homem? O pai ainda estaria na cama, engolido pelas lembranças, imobilizado, quando eu voltasse para casa? A água estava morna e química, reduzida a moléculas, e eu bebi um pouco e derramei o resto no rosto e na camisa.
Voltei para a garganta, sob uma linha fina de céu, então parei e pus a mão na muralha do desfiladeiro e senti a rocha cheia de camadas, rachaduras ou veios horizontais que me faziam pensar em enormes movimentos geológicos. Fechei os olhos e fiquei escutando. O silêncio era completo. Eu nunca sentira um silêncio como aquele, um nada envolvente como aquele. Mas um nada que era, que se desenrolava ao meu redor, ou então era ela, Jessie, quente sob meus dedos. Não sei quanto tempo fiquei parado ali, escutando com todos os músculos de meu corpo. Seria possível esquecer meu próprio nome naquele silêncio? Tirei a mão da muralha e levei-a ao rosto. Eu estava suando muito, e lambi aquele fedor úmido de meus dedos. Abri os olhos. Eu continuava ali, no mundo exterior. Então alguma coisa me fez virar a cabeça, e fui obrigado a dizer a mim mesmo, atônito, o que era aquilo, uma mosca, zumbindo bem perto. Fui obrigado a dizer a palavra a mim mesmo, mosca. Ela havia me encontrado e se aproximado de mim, em todo aquele espaço fluente, zumbindo, e enxotei-a com um gesto vago e voltei a caminhar em direção ao fundo do beco sem saída. Eu me movia devagar e permanecia perto da muralha, numa sombra intermitente. Depois de algum tempo comecei a achar que já devia ter chegado ao carro. Estava cansado, com fome, sem água. Perguntei a mim mesmo se aquela garganta, aquele desfiladeiro, se ramificava, um ramo norte e um ramo sul, e teria eu entrado no ramo errado? Não consegui me convencer de que isso não era possível. O céu parecia convergir num ponto em que as muralhas do desfiladeiro se encontravam, e pensei em voltar atrás. Tirei a garrafa d’água do bolso e tentei apertá-la, para pingar uma ou duas gotas na boca. A cada dois ou três passos que eu dava, repetia a mim mesmo que devia voltar atrás, porém seguia em frente, apressando o passo. Não sabia muito bem se que aquele caminho de granito esfarinhado era o mesmo pelo qual eu viera. Tentei relembrar a cor e textura, até mesmo o ruído que meus sapatos faziam sobre o cascalho. Quando me convenci de que estava perdido, vi a trilha alargar-se um pouco e lá estava o carro, um tolete empoeirado de metal e vidro, e abri a porta e desabei no banco. Pus a chave na ignição, liguei o ar-condicionado e o ventilador e apertei mais alguns botões. Então relaxei e respirei fundo algumas vezes. Era hora de dizer a Elster que íamos voltar para a cidade.
Naquela noite não consegui dormir. Eu passava de um devaneio a outro. A mulher do quarto ao lado, no outro lado da parede, às vezes era Jessie, às vezes não era clara nem simplesmente ela, e depois eu e Jessie no quarto dela, na cama dela, um traspassando o outro, virando e arqueando como o mar, como uma onda, algum momento impossível e interminável de sexo transparente. Os olhos dela estão fechados, o rosto descongelado, é Jessie ao mesmo tempo que é expressiva demais para ser ela. Parece estar fluindo para fora de si própria até mesmo quando eu a ponho dentro de mim. Estou lá, estou excitado, mas me entrevejo parado à porta aberta, olhando para nós dois.
Olhei para ele. O rosto aos poucos afundava na densa ossatura da cabeça. Ele estava no banco do carona e eu pronunciei as palavras em voz baixa.
“Cinto de segurança.”
Elster pareceu me ouvir com certo atraso, sabendo que eu havia falado mas não conseguindo entender o significado. Ele começava a parecer uma radiografia, era só órbitas e dentes.
“Cinto de segurança”, repeti.
Apertei meu cinto de segurança e fiquei esperando, olhando para ele. Estávamos no carro alugado, o meu carro. Eu o havia lavado com uma mangueira. Fizera as malas e as colocara no porta-malas. Dera mais de dez telefonemas. Dessa vez ele fez que sim com a cabeça e começou a procurar a fivela do cinto acima do ombro direito.
Estávamos deixando Jessie para trás. Era difícil pensar nisso. No início, havíamos decidido que um de nós ficaria ali, sempre. Agora, uma casa vazia, entrando no outono e atravessando o inverno, e nenhuma possibilidade de ela voltar. Soltei meu cinto de segurança para ajudá-lo a colocar o seu. Então fomos até a cidade para abastecer o carro e logo estávamos de novo atravessando zonas de falhas geológicas e passando por entre colunas de rocha retorcida, a história que passa pela janela, montanhas em formação, mares recuando, a história de Elster, tempo e vento, a marca de um dente de tubarão numa rocha no deserto.
Fiz bem em tirá-lo de lá. Ele acabaria reduzido a cinquenta quilos se ficássemos mais tempo. Eu o levaria a Galina, era esse o nome dela, a mãe, e confiaria o homem à compaixão dela. Olhe para ele, frágil e derrotado. Olhe para ele, inconsolavelmente humano. Eles dois estavam juntos nessa, eu dizia a mim mesmo. Ela haveria de querer compartilhar aquela provação, eu dizia a mim mesmo. Porém ainda não havia telefonado para ela dizendo que estávamos voltando. Galina era o telefonema que eu tinha medo de dar.
A toda hora eu olhava para o lado. Ele estava reclinado no banco, os olhos arregalados, e eu falava com ele tal como fizera quando cortei seu cabelo, falando a esmo durante toda aquela longa manhã, tentando fazer-lhe companhia, distrair a nós dois. Mas agora não havia mais quase ninguém com quem eu pudesse falar. Ele parecia estar além da memória e sua teia de arrependimentos, um homem reduzido ao contorno mais básico, desprovido de peso. Eu dirigia e falava, falava sobre nosso voo, dizia-lhe o número do voo, explicava que estávamos na lista de espera, recitava a hora da partida e da chegada. Fatos nus e crus. No som das minhas palavras eu julgava ouvir uma estratégia frágil para fazê-lo voltar ao mundo.
A estrada começou a subir, a paisagem ficando verde à nossa volta, casas esparsas, um camping de trailers, um silo, e ele começou a tossir e pigarrear, esforçando-se para soltar o catarro. Achei que ele podia engasgar-se. A estrada era estreita e íngreme, com uma mureta do lado do barranco, e eu não podia fazer outra coisa senão seguir em frente. Por fim ele conseguiu, pigarreou e escarrou na mão aberta. Depois ficou olhando para o catarro estremecendo na mão, e eu fiz o mesmo, por um instante, uma coisa espessa, fibrosa, pulsante, verde-pérola. Não havia onde colocá-la. Consegui arrancar um lenço do bolso e jogá-lo para ele. Não sei o que ele via naquele punhado de muco, mas não parava de olhar.
Passamos por uma fileira de carvalhos. Então ele grasnou algumas palavras.
“Um dos humores da Antiguidade.”
“O quê?”
“Fleuma.”
“Fleuma”, repeti.
“Um dos humores da Antiguidade e da Idade Média.”
O lenço estava caído sobre a coxa dele. Estendi a mão e agarrei-o, sem tirar os olhos da estrada, abri-o e o coloquei sobre sua mão, cobrindo o catarro. Um helicóptero passou por trás de nós e eu olhei pelo retrovisor e depois olhei para Elster. Ele não se movia, estava parado com a mão estendida, recoberta pelo lenço. Deixando Jessie para trás. Ficamos ouvindo o ronco do rotor a se perder na distância. Ele limpou a mão e depois amassou o lenço e o jogou no chão, entre os pés.
Seguimos em silêncio, atrás de um barco a motor rebocado por uma picape preta. Pensei nos comentários de Elster sobre a matéria e o ser, aquelas longas noites no deque, semibêbados, eu e ele, transcendência, paroxismo, o fim da consciência humana. Tudo aquilo parecia não passar de ecos mortos agora. O ponto ômega. Daqui a um milhão de anos. O ponto ômega se estreitou, aqui e agora, reduzindo-se à ponta de uma faca penetrando um corpo. Todos os grandes temas do homem reduzidos a uma única dor local, um corpo, lá fora em algum lugar, ou não.
Passamos por um pinhal e um lago, pássaros em voos rasantes sobre a água. Os olhos dele estavam fechados, sua respiração era um zumbido nasal constante. Tentei pensar no futuro, semanas e meses desconhecidos à frente, e me dei conta do que havia saído da minha cabeça até aquele momento. Era o filme. Eu me lembrava do filme. Lá está ele outra vez, homem e parede, rosto e olhos, mas não uma outra cabeça que fala. No filme o rosto é a alma. O homem é uma alma que sofre, como em Dreyer ou Bergman, um personagem marcado por uma falha trágica num drama de câmara, justificando a guerra dele e condenando os homens que a conduziam. O filme jamais viria a ser agora, nem um único fotograma. Ele não teria força de vontade nem interesse, e eu também não. A história estava acontecendo ali, não no Iraque nem em Washington, e nós a estávamos deixando para trás, e levando-a conosco, as duas coisas ao mesmo tempo.
Agora a estrada começava a descer em direção à autoestrada. Elster estava preso pelo cinto de segurança, como uma criança, adormecido. Pensei no aeroporto, na bagagem, na necessidade de arranjar uma cadeira de rodas para ele. Pensei nos humores da Idade Média. A toda hora eu olhava para ele, para conferir.
Lá estávamos nós, emergindo de um céu vazio. Um homem já não sabia mais nada. O outro sabia apenas que levaria algo consigo a partir daquele dia, um silêncio, uma distância, e via a si próprio no estúdio de alguém, cheio de gente, onde ele põe a mão na superfície áspera de uma velha parede de tijolo e então fecha os olhos e fica escutando.
Logo estávamos seguindo em direção ao oeste, carros e caminhões formando aglomerados, tráfego ruidoso, quatro pistas, e meu celular tocou. Hesitei um instante, depois peguei o telefone e disse sim. Nada. Eu disse sim, olhando para a tela. número confidencial. Eu disse sim, alô, falando mais alto. Nada. Olhei para Elster. Agora seus olhos estavam abertos, a cabeça virada para mim, eu não o via tão alerta fazia uma semana. Eu disse sim e olhei para a tela. número confidencial. Desliguei o telefone e o recoloquei no estojo preso ao cinto.
Eu detestava dirigir em autoestradas, o tráfego mais pesado agora, carros passando de uma pista para outra. Eu não tirava os olhos da pista. Não queria olhar para ele, não queria ouvir nenhuma pergunta, nenhuma especulação. Estava pensando em seis coisas ao mesmo tempo. A mãe. Ela se lembrou do nome do homem enquanto dormia. Eu estava pensando, alguém está retornando minha ligação. Era só isso, só podia ser isso, alguém que eu conhecia dando retorno a um dos telefonemas que eu dera na véspera, ou naquela manhã mesmo, amigo, colega, senhorio, sinal fraco, impossível completar a ligação. O que tudo isso queria dizer? Que em pouco tempo a cidade estaria acontecendo, a Nova York que não para nunca, rostos, idiomas, andaimes de obras por toda parte, o fluxo de táxis às quatro da tarde, com o sinal aceso que indicava fora de serviço.
Pensei no meu apartamento, como ele pareceria distante mesmo no momento em que eu abrisse a porta. Minha vida num único olhar, tudo ali, música, filmes, livros, a cama e a escrivaninha, o esmalte gasto em torno dos queimadores do fogão. Pensei no telefone tocando no momento em que eu entrasse.