INTRODUÇÃO

NI HAO! BOM DIA, BOA TARDE, BOA NOITE! RICARDO GEROMEL AQUI.

O objetivo mor deste livro é que seja uma leitura intensa, rápida, divertida e enriquecedora, que, no mínimo, vai lhe dar ferramentas tangíveis indispensáveis para você poder mergulhar com mais profundidade na nova China. Este livro me implorou para ser escrito. Há pontos essenciais sobre a China que deveriam ser parte do conhecimento básico de cada um de nós. Os Estados Unidos reinaram de maneira hegemônica como a superpotência mundial após a Segunda Guerra Mundial. O mundo entendeu e comprou o sonho norte-americano. Com o aumento exponencial do poder e a subsequente influência da China no mundo, é primordial entendermos o sonho chinês e como a China pensa e interage com o mundo.

A primeira vez que pisei na China foi em 2009. Eu trabalhava para a Noble Group, na época uma das cinco maiores trading houses do planeta, situada em Hong Kong – a empresa foi adquirida pela gigante chinesa Cofco. Era parte essencial do meu trabalho como trader de commodities agrícolas – principalmente soja – entender a China, a principal importadora de soja no mundo. O mercado de soja revela quão interligado é nosso mundo globalizado. A commodity é plantada no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos, e consumida na China, mas a decisão de como, por quanto e quando será vendida é muitas vezes tomada na Suíça. Eu estava em Lausanne, aprendendo com meu chefe Yves Pache (suíço de alma brasileira e referência no mercado), com visto para trabalhar em Xangai, quando decidi sair do mercado financeiro para investir na minha formação holística. Estava incomodado com o rumo da minha carreira, na qual saberia muito sobre pouco. Eu queria saber muito sobre muito e então fui estudar na ESCP Europe – a escola de negócios mais antiga do mundo, fundada em 1819, em Paris.

Na minha primeira semana, conheci uma colega chinesa. Nós nos apaixonamos, namoramos por cerca de dois anos e vivemos juntos. Ela foi ao Brasil e eu fui à China diversas vezes. Durante uma das longas férias de verão, enquanto a maioria dos meus colegas fizeram estágios em grandes empresas, eu me mudei para Pequim para empreender. Meu negócio era levar chineses relacionados ao futebol – jogadores, técnicos, árbitros, médicos esportistas e dirigentes – para se aperfeiçoar com cursos no Brasil. Foquei também no futebol profissional, quando um chinês influente me contratou e eu o levei ao Brasil para fazer reuniões com mais da metade dos clubes da primeira divisão com o intuito de fechar negócios com a China.

Antes de eu me formar, a Ernst & Young – consultoria que emprega mais de 190 mil pessoas ao redor do planeta – patrocinou a viagem de um grupo de estudantes, do qual eu fazia parte, para Xangai. Nossa tarefa era fornecer consultoria a empreendedores estrangeiros que buscavam prosperar na megalópole chinesa. Ah, o namoro com a chinesa não deu certo. Mas o dragão havia me mordido, e o amor pela China só cresceu.

Com essa intensa vida repleta de viagens e serendipidade, ingressei na Forbes em 2011. Não estudei jornalismo. Caí lá de paraquedas. Um dos meus primeiros artigos foi “Is Brazil a Derivative of China?.1 Eu cobria mercados emergentes e o nome da minha coluna era Decoupling, termo que descreve o conceito de que as chamadas economias emergentes não seriam mais tão dependentes de economias desenvolvidas para atingir o crescimento econômico, e o comércio Sul-Sul, entre as economias em desenvolvimento, cresceria significativamente.

EM 2010, UM ANO ANTES DE EU COMEÇAR A ESCREVER PARA A FORBES, ERAM 64 BILIONÁRIOS CHINESES; EM 2018, O NÚMERO AUMENTOU PARA 372.

Rapidamente, migrei para a “equipe da riqueza” (wealth team) da Forbes para cobrir (investigar, ler, escrever, descobrir e revelar) bilionários. Desde o primeiro dia na equipe da riqueza, tentei encontrar semelhanças entre os diversos bilionários. Ao sair da Forbes para empreender, resolvi fechar aquele capítulo da minha vida publicando o livro Bi.lio.nár.ios, que descreve minha crença de que o sucesso deixa pistas e de que a maioria absoluta dos bilionários apresenta algumas maneiras similares de pensar e agir. A verdade, porém, é que nunca saí da Forbes. Continuo colaborando para a lista dos bilionários e escrevendo artigos como freelancer.2 Já são mais de oito anos. Qual país você acha que mais aumentou o número de bilionários nesse período? Em nenhum local do mundo tanta riqueza foi criada nos últimos anos quanto na China. Em 2010, um ano antes de eu começar a escrever para a Forbes, eram 64 bilionários chineses; em 2018, o número aumentou para 372.

Ainda na Forbes, criei um plano de negócios e atraí investidores para comprar dois times de futebol profissional nos Estados Unidos na então segunda divisão do país, a North American Soccer League (NASL). Mudei-me para a Flórida para gerir o Fort Lauderdale Strikers – trouxemos Ronaldo Fenômeno como um dos sócios. Depois, mudei-me para o Vale do Silício para co-fundar no San Francisco Deltas, que foi campeão nacional, tendo o Dagoberto como craque do time. No Vale, enquanto tocava o time, conheci o pessoal da StartSe. Eu palestrei para a primeira missão de brasileiros que foi conhecer o Vale do Silício pela StartSe. Contei para eles sobre a startup de tecnologia que cofundei e tinha como principal produto o futebol. Quando o San Francisco Deltas teve de fechar as portas, o pessoal da StartSe me convidou para ser sócio da empresa. Meu acordo era que eu empreenderia dentro da empresa.

Os gregos acreditavam que a oportunidade é uma deusa careca, salvo por um topete no topo da testa. Imagino que o penteado da deusa oportunidade seja parecido com o de Ronaldo Fenômeno na final da Copa do Mundo de 2002. Gregos diziam que a deusa oportunidade passa na sua frente e só há uma chance de agarrá-la. Se deixar o topete escapar de suas mãos, será impossível fisgar essa deusa depois. Um bilionário uma vez me disse uma versão atual disso: “O cavalo da oportunidade passa prontinho para todos pelo menos uma vez na vida; tem gente que decide pular, enquanto outros esperam demais e acabam perdendo o cavalo”. Eu sabia que na China encontraria muitas deusas com aquele topete e que o cavalo passaria mais vezes.

Havia outro fenômeno acontecendo: várias das pessoas mais brilhantes que eu conhecia no Vale do Silício estavam obcecadas pela China. Estavam indo beber daquela nova fonte de inovação e levantando capital de investidores chineses. Elas descreviam a China como superpotência inovadora. Sabiam que eu tinha vivido lá e era apaixonado por aquela cultura, por isso vinham discutir China comigo. No começo, minha resposta para o tema China, superpotência inovadora era: “O que vocês estão fumando!? China, inovadora??? A China é uma grande copiadora! Enquanto no Vale há meritocracia e transparência, a cultura chinesa valoriza o respeito à hierarquia; no Vale mais de 40% das startups possuem fundadores estrangeiros, já a China não é tão aberta para estrangeiros; na China nem podemos acessar todos os sites”. Enfim, eu amava a cultura chinesa, mas era muito ignorante na questão da inovação na China. Quando comecei a explorar a nova economia digital do império do meio, fiquei fascinado e enxerguei com clareza meu presente e meu futuro na China.

Meu primeiro empreendimento na StartSe foi levar um grupo de brasileiros para uma missão focada no futuro do esporte no Vale do Silício. Conversamos com protagonistas envolvidos com esportes na região: o investidor de fundo de capital de risco do fundador da Microsoft, Paul Allen, explicou sua tese de investimentos no mercado de esportes eletrônicos; o chefe de olheiros do San Jose Earthquakes nos explicou como usam tecnologia para recrutar; o fundador de equipe de corrida de carros de luxo e vencedor da prestigiosa prova Le Mans gostou de tal maneira do grupo que nos levou para jantar em sua casa; um empreendedor que usa IA no basquetebol me impressionou tanto que não consigo mais assistir a uma partida da NBA sem me lembrar dele; o pessoal da Bleacher Report explicou como imaginava e fazia a imprensa esportiva do futuro; conversamos com o governo local e outros players essenciais de um ecossistema empreendedor maduro etc. Foi intenso e eu me senti sortudo por meu trabalho ser a criação e a execução de todo aquele processo. Aprendi muito sobre o futuro do esporte e ganhei amigos; até hoje mantemos o grupo de WhatsApp e sempre que vou ao Brasil nos encontramos. Gostei desse negócio e liderei missões de executivos brasileiros para explorarem inovação na Índia, em Singapura e em Israel.

Quando cheguei à China com o objetivo de mergulhar na nova economia digital do país para poder organizar as missões, me senti como um desbravador chegando a El Dorado. A velocidade e a quantidade de oportunidades relacionadas à inovação eram e são difíceis de descrever sem parecer que estou exagerando. Decidi imediatamente que mudaria para cá. Minha esposa, Madison Stanford, nunca tinha vindo para a China. Apesar de ter se graduado em Stanford e, definitivamente, ser o cérebro da nossa família, seu conhecimento sobre a o país era muito limitado, como o da maioria dos ocidentais. No entanto, ela topou fazer a mudança.

O cerne do meu trabalho com a StartSe é decodificar a nova economia da China. Percebi que há muitas pessoas que moram aqui há muito mais tempo que eu e conhecem muito menos da nova economia digital local, pois focam seu dia a dia, sua empresa, sua família. E eu, sortudo, passo minhas horas focado em maximizar tempo com protagonistas da nova economia digital da China, aprendendo, entrevistando, lendo, ajudando a fazer negócios para poder passar meus conhecimentos da melhor maneira possível por meio de palestras, missões, cursos on-line e eventos. Gosto de me definir como “aprendedor profissional”. Eu achava que a melhor maneira de aprender era ler. Sempre fui um leitor voraz. Depois, graças ao Bi.lio.nár.ios, comecei a dar muitas palestras e descobri que uma das melhores maneiras de aprender é ensinando – Conhecimento compartilhado = Conhecimento.

O perfil do cofundador do Airbnb3 causou um grande impacto no modo como busco aprender. Como um jovem de 33 anos aprende a liderar uma empresa que vale bilhões de dólares e emprega mais de 2 mil pessoas em 21 escritórios ao redor do mundo? Brian Chesky descreveu como faz para aprender da melhor e mais rápida maneira, chamando seu estilo de “ir direto à fonte” (going to the source). Basicamente, se você tem tempo limitado para aprender sobre algo específico, gaste a maior parte do tempo pesquisando quem seriam suas melhores fontes naquele tópico – depois vá direto a elas. As fontes podem ser livros, jornais acadêmicos, mas geralmente são pessoas ou autores de livros ou textos ou estudos. Para aprender sobre recrutamento, Chesky não foi falar com executivos de Recursos Humanos (RH). Em vez disso, escolheu aprender com agentes de atletas, pois o principal diferencial dos agentes de mais sucesso é recrutar e manter excelentes talentos em seu portfólio. Chesky também conversou com Mark Zuckerberg sobre redes sociais, com Jeff Bezos para aprender como escalar seu negócio e com Warren Buffett a propósito de investimentos. A fórmula de Chesky vem funcionando: entre a época em que o perfil foi escrito até a última lista da Forbes, ele ganhou mais de 3,7 bilhões de dólares em fortuna pessoal, de acordo com a revista.

Este livro nasceu para tentar ajudá-lo a aprender sobre a nova economia da China como um bilionário faria. Você gostaria de aprender como um bilionário? Eles vão direto à fonte. No meu trabalho e no meu dia a dia, levo essas fontes para as pessoas. Tenho orgulho das fontes que consigo levar para quem vem aprender comigo na China no que chamamos de missão: uma semana focada em conteúdo e zero de turismo, de segunda a sexta-feira. Apenas durante a missão Fintech, quando liderei um grupo de brasileiros que vieram se aprofundar nesse segmento em que a China é indiscutivelmente líder mundial, foram 32 encontros (prefiro chamar assim, em vez de reunião). Durante a missão RetailTech – uma semana focada na cadeia de valor do varejo do futuro –, foram 29 encontros distintos. Também fizemos diversas missões sobre a inovação na China – foram mais de mil encontros em menos de dois anos. Mais importante que a quantidade é a qualidade. Durante uma missão exclusiva para um grupo de educação, fizemos apenas catorze encontros. Como aprendi sobre educação e estudo na China! Não consigo imaginar maneira mais eficiente.

Este livro se esgoelava para nascer depois de encontros com as melhores fontes. Diversas vezes liguei para minha esposa logo após os encontros para dizer o que ela havia perdido! Eu não sei se você já teve aquele sentimento de aprender algo tão poderoso que precisa ir correndo contar para as pessoas que ama, para ajudá-las na sua própria jornada. Isso acontece constantemente comigo aqui na China. Nem todo mundo consegue aprender sobre o país in loco – e devo dizer que nenhum livro jamais vai substituir uma visita –, mas alguns enriquecem a jornada e aproveitam ainda mais intensamente o que a China tem a oferecer (antes, durante e depois de suas insubstituíveis visitas em pessoa). Este livro nasce querendo ser um deles.

Além de garantir acesso às melhores fontes, meu papel também é fazer o meio-campo entre o Brasil e o melhor da China. Diferentemente do Vale do Silício, Israel e outros polos de inovação, a maioria dos chineses quer fazer negócios e não apenas trocar conhecimento. Para ser o melhor possível no meu dia a dia, preciso saber como explicar as diversas jabuticabas chinesas (coisas que só existem e só existirão na China); pegar na mão de pessoas para elas abrirem as janelas de oportunidades que parecem estar escancaradas para mim, mas que ainda seguem invisíveis para aqueles que têm os meios de lucrar; trazer luz e atenção para os pontos cegos dos interlocutores; ter certeza de que estão falando a mesma língua; enfim, há muito mais trabalho essencial do que apenas apresentar as partes interessadas.

A primeira frase de Anna Karenina de Tolstói é inesquecível: “Famílias felizes são todas iguais; toda família infeliz é infeliz à sua maneira”. Eu tomo a liberdade de distorcer a frase do mestre para explicar o que este livro quer ser: encontros ruins são todos iguais; todo encontro bom é bom à sua maneira. Sinto que os encontros ruins são meio iguais, pois são genéricos e rasos. Lembram aquelas palestras de autoajuda que na hora podem até empolgar, mas não resistem ao calor da segunda-feira. Depois de um tempo, você já nem lembra de cada um deles, parecem todos iguais. Ao contrário, os encontros bons são essencialmente únicos, cheios de insights aplicáveis, deliciosamente leves, mas intensos ao mesmo tempo; você fica com gostinho de quero mais ao terminar, mas feliz por poder agir em cima do que aprendeu. São inesquecíveis. Às vezes parecem se tornar uma obsessão, e você se pega pensando nele semanas mais tarde no meio da correria do seu dia. Este livro nasce vociferando que será uma série de encontros bons.

Mais de duzentos brasileiros, inclusive vários bilionários, já vieram em programas executivos liderados por mim e pelo time que montei aqui para descobrir essa nova China inovadora. Alguns me pedem recomendação de livro como introdução para a nova economia da China. Eu recomendo uma lista extensa. Mas, com toda modéstia, busquei aqui fazer o guia inicial ideal para quem está interessado na nova economia da China. Aperte os cintos e se entregue nessa viagem, há grandes riscos de você ser mordido pelo dragão e se viciar na China, como aconteceu comigo e com várias pessoas que conheci aqui.

Como disse no primeiro parágrafo, este livro implorou para ser escrito. Um dos gritos mais fortes que ele deu: fui procurado por um investidor brasileiro que queria colocar alguns milhões em uma startup de educação na China. Ele desejava saber minha opinião sobre aquela oportunidade de investimento. Eu comecei perguntando se ele achava que o gaokao continuaria sendo daquela maneira por muito tempo. Ele me respondeu que não sabia o que era gaokao. Expliquei minha crença de que não tem como tentar começar a entender educação na China sem entender o peso do gaokao na sociedade. E tive que explicar o gaokao para ele (não se preocupe, teremos uma sessão sobre isso).

Outro berro do livro quase me deixou surdo quando um executivo, que vive aqui há mais de dez anos e que admiro demais me disse que nunca tinha ouvido falar de Neil Shen, o maior investidor em tecnologia do mundo, o Messi dos Venture Capitalists (VCs). Converse com qualquer empreendedor de primeiro escalão de empresas digitais da China, eles babarão ao ouvir o nome de Neil Shen, que investiu em mais de 25 unicórnios, empresas de capital fechado que valem mais de 1 bilhão de dólares. Dizer que entende da nova economia da China sem nem saber quem é o Neil Shen é como dizer que entende do Grêmio atual sem saber quem é o zagueiro Geromel – não se preocupe, se você aguentar terminar este livro, vai se sentir como amigo de infância do Neil.

A maioria dos livros de gestão tentará convencê-lo você de que um dos segredos do sucesso é começar suas tarefas com o objetivo claro e bem definido. Qual seu objetivo ao ler este livro? Não sei a sua resposta particular para essa indagação e realmente discordo da teoria clássica, acho que você não precisa necessariamente saber. De qualquer maneira, garanto a você que as próximas páginas vão enriquecer seu conhecimento. Os gregos costumavam dizer que se for atrás da deusa da fortuna, ela fugirá. Entretanto, se cortejar a deusa da sabedoria com afinco e dedicação, ela se doará para você pouco a pouco. Então, a deusa da fortuna, ao ver que está conquistando a deusa da sabedoria, repentinamente aparecerá em sua vida, e você terá grandes chances de conquistá-la. Você tem sorte, pode levar o tempo que quiser para devorar esta obra. Se o seu objetivo estiver atrelado à oportunidade de negócios, eu recomendaria velocidade chinesa. Minha crença quando comecei a coluna “Decoupling” na Forbes em 2011 permanece: o comércio entre a China e a América Latina vai continuar aumentando significativamente.

Aprendi com outro bilionário: “Nunca seja a pessoa mais inteligente da sala. Se você for, mude de sala imediatamente ou chame alguém para a sala”.

Aqui neste livro, você não estará apenas comigo na sala. Este livro leva meu nome, mas tem uma família extensa com vários tios, avós, primos etc. Algumas das melhores fontes serão coautoras de alguns capítulos. Outras não coescreveram capítulos, mas tiveram impacto direto. Certamente, tentei subir no ombro de gigantes.

Já pode apertar os cintos, mas antes de decolarmos, preciso fazer alguns disclaimers extremamente importantes:

É dito que a população da China é de cerca de 1,4 bilhão de pessoas ou 20% da população mundial. Ninguém sabe ao certo o número. É mais complicado ter acesso a dados precisos na China. Por isso, sempre que trabalhar com dados chineses, tenha uma margem de segurança. Quem trabalha com o país sabe a importância disso. No caso da população, a explicação para a falta de precisão até faz sentido: a bizarra política do filho único durou cerca de trinta anos. Não era fácil impor essa lei. Logo, não sabemos quantos chineses de fato vivem na China. No entanto, haverá circunstâncias em que pode parecer óbvio como encontrar dados precisos, mesmo assim reitero que a margem de segurança é sempre recomendada. Sou um grande fã da frase “I trust in God, all others must bring data” (em português: eu confio em Deus, todos os outros devem trazer dados). Repito: nestas mal traçadas linhas, você encontrará muitos dados, das mais diversas fontes, então não se esqueça de aplicar a margem de segurança. Para facilitar a leitura, não vou ficar repetindo isso. A liberdade de expressão e de imprensa, assim como conhecemos no Brasil, é diferente na China.

Como há cerca de 1,4 bilhão de pessoas, quase tudo o que você ouvir sobre a China é verdade e é mentira. Em um local com tantas pessoas, deve haver, sim, várias que comem cachorro. Eu nunca conheci nenhuma. Mas elas devem existir. A absoluta maioria das mais de duzentas pessoas que já vieram para a China em missões me relatam que são sacaneadas sobre o suposto hábito de comer cachorro dos chineses. Chega a ser cômico, diversas vezes o camarada está encantado conhecendo pessoas e empresas futuristas como a fazenda vertical ou o robô que faz drinques, ou estamos no trem-bala a mais de 350 km/h e ele me mostra uma mensagem de WhatsApp de um amigo engraçadinho sacaneando em algum grupo: “Você está gostando de comer cachorro na China?”. Eu já vi isso acontecer tantas vezes que já sei qual vai ser a reação: alguma outra pessoa do grupo fica chateada com essa pergunta e comenta com um pouco de fúria sobre quanto o Ocidente está distante em temas como estudo, infraestrutura, inovação e conhecimento sobre a China. E quando me perguntam se é verdade que comem cachorro na China, eu costumo dizer que deve ser verdade, sim. Que em algum canto deste vasto país, alguém deve comer. Mas nunca me ofereceram. Para os mais curiosos e com estômago forte, recomendo a leitura do artigo do jornal espanhol El País,4 que afirma que 10 milhões de cachorros são consumidos por ano na China e apresenta fotos brutais do festival de carne de cachorro e licor de lichia realizado anualmente na cidade de Yulin. Nesse festival, que dura dez dias durante o pico do verão, estima-se que mais de 10 mil cachorros eram comidos, mas, depois de muitos protestos da comunidade internacional, o número caiu para mil nos dez dias. Eu reitero que nunca vi nada disso nas cidades que visitei. Na China, há mais de 62 milhões de animais domésticos5 registrados, e ter cão tornou-se comum na crescente classe média. Durante a Revolução Cultural (1966-1976), foi proibido tê-los como animais domésticos.

QUANDO O ASSUNTO É CHINA, QUANTO MAIS VOCÊ APROFUNDA, MAIS PERCEBE QUE MENOS SABE. O QUEBRA-CABEÇAS PARECE AUMENTAR PERPETUAMENTE.

Não tenho nenhuma ignorante ambição em me descrever como profundo conhecedor de China. Sou um estudante apaixonado de China. Como disse meu amigo Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil nno país: “A China é um vício”. Para quem gosta de aprender, é viciante, pois aqui muitas coisas que parecem corriqueiras são extremamente diferentes. Então, quem mantém os olhos abertos aprende constantemente. Por aqui, as coisas mudam em velocidade tão avassaladora que nem mesmo os próprios chineses conseguem acompanhar e realmente entender. Numa economia que segue crescendo mais de 6% ao ano, mudanças são tangíveis e perceptíveis a olho nu. Quando o assunto é China, quanto mais você aprofunda, mais percebe que menos sabe. O quebra-cabeças parece aumentar perpetuamente. Se alguém disser a você que conhece a China profundamente, corra. As pessoas (ocidentais ou orientais) mais brilhantes e com mais tempo de país são as primeiras a explicar quão mutável isso aqui é. Aqui você é lembrado constantemente da máxima de Sócrates: “Só sei que nada sei”.

Elon Musk ainda não teve sucesso enviando o homem para outro planeta. Eu brinco que o mais próximo de outro planeta que alguém pode ir é a China, onde ideias como felicidade, sucesso, boa-vida, rotina saudável e muitas outras tendem a ser bem diferentes do que estamos acostumados. Antes de julgar se a sociedade chinesa e os chineses estão certos, errados ou se chegam a ser nojentos, aprendi a primeiro buscar entender. Coloque os óculos da pessoa que está na sua frente, use os sapatos dela, tente entender como ela foi criada e por que enxerga o mundo daquela maneira. Para maximizar o aprendizado com China, devemos nos lembrar de evitar o impulso de tirar conclusões precipitadas. Recomendo lembrar de ser um excelente curioso para ter uma chance de chegar o mais perto possível da realidade. A perspectiva geral da China é que cada país tem suas próprias características culturais, seus próprios valores, e deve ser livre para seguir o próprio modelo quando se trata de governar não apenas a si mesmo, mas também a internet.

Este livro foca no melhor da China, superpotência inovadora. Se você está em busca de algo mais holístico, há ampla literatura sobre outros lados da China.

Um dos objetivos desta obra é que aqueles que sobreviverem até o final, ao mesmo tempo, conheçam novos fatos novos sobre a China e também tenham mais perguntas novas do que respostas. Espero que o quebra-cabeça China aumente no final deste livro, com peças que você não imaginava existir. Durante sua jornada nestas páginas, você encontrará QR codes; se quiser interagir com o livro, basta pegar seu celular. Se não conseguir ler o código por qualquer motivo, digite no Google “como escanear QR code”. Aprender como aprender talvez seja a mais importante habilidade deste século. Fique à vontade para entrar em contato comigo nas redes sociais @ricardogeromel ou @ricogeromel – às vezes demoro, mas tento responder a todos.

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@ricardogeromel


1 Geromel, Ricardo. “Is Brazil a Derivative of China?” Forbes. 24 de agosto de 2011. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/ricardogeromel/2011/08/24/is-brazil-a-derivative-of-china/>. Acesso em: 17 de agosto de 2019.

2 Alguns dos meus artigos sobre a nova economia chinesa estão disponíveis em: <www.forbes.com/sites/ricardogeromel>.

3 Gallagher, Leigh. “The Education of Airbnb’s Brian Chesky”. Fortune. 26 de junho de 2015. Disponível em: <www.fortune.com/brian-chesky-airbnb>. Acesso em: 17 de agosto de 2019.

4 “A grande matança chinesa de cachorros para serem comidos na festa de Yulin”. El País. 21 de junho de 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/21/internacional/1529561996_120987.html>. Acesso em: 17 de agosto de 2019.

5 Ahluwalia, Ravneet. “Yulin Dog Meat Festival: Whats is It, How Did it Start and Will Activists Ever Manage to Get it Banned?”. Independent. 21 de junho de 2018. Disponível em: <https://www.independent.co.uk/travel/news-and-advice/yulin-dog-meat-festival-explainer-what-is-it-when-start-banned-controversy-a8410426.html>. Acesso em: 17 de agosto de 2019.