Pela manhã, acordei me sentindo mais alerta, de tal modo que até a casca áspera e marrom dos pinheiros, ou os volteios costumeiros dos pica-paus, representavam para mim uma pequena revelação. Aquele cansaço persistente após os quatro dias de caminhada até o acampamento já tinha me abandonado. Seria isso um efeito colateral dos esporos? Ou apenas o resultado de uma noite bem-dormida? Eu me sentia tão bem que nem liguei.
Meu devaneio, no entanto, logo foi contaminado com notícias trágicas. A antropóloga tinha desaparecido, e a barraca fora esvaziada de todos os seus pertences.
O pior, no entanto, era a aparência da psicóloga, abalada, como se não tivesse dormido a noite inteira. Ela apertava os olhos de uma maneira esquisita, e o cabelo estava mais bagunçado do que de costume. Reparei na lama seca nas laterais das botas. Apoiava o peso do corpo na perna direita, como se estivesse machucada.
— Onde está a antropóloga? — perguntou a topógrafa, enquanto eu me mantinha afastada, tentando botar um pouco de ordem naquilo.
O que você fez com a antropóloga?, era a pergunta muda que eu me fazia, sabendo que era injusta. A psicóloga não estava diferente; o fato de eu saber o segredo de seu espetáculo de ilusionismo não queria dizer necessariamente que ela representava uma ameaça.
A psicóloga interrompeu o nosso pânico crescente com uma estranha afirmação:
— Falei com ela ontem à noite. O que viu naquela... estrutura... a deixou nervosa a ponto de não querer mais continuar na expedição. Ela partiu de volta para a fronteira, onde vai aguardar a extração. Levou consigo um relatório parcial, de modo que nossos superiores tomarão conhecimento de nosso progresso.
O hábito que a psicóloga tinha de se permitir esboçar um sorrisinho nas horas mais inadequadas me deixava com vontade de lhe dar um tapa.
— Mas ela deixou o equipamento... e a pistola — disse a topógrafa.
— Ela levou consigo somente o que achava que ia precisar, para deixar mais coisas conosco, inclusive uma arma extra.
— Acha que vamos precisar de uma arma a mais? — perguntei.
Eu estava cheia de curiosidade. Em alguns aspectos eu considerava a psicóloga tão fascinante quanto a torre. Suas motivações, suas razões. Por que não recorria à hipnose agora? Talvez mesmo com nosso condicionamento implantado, algumas coisas não pudessem ser sugeridas, ou o efeito se dissipasse com a repetição, ou ela não possuía naquele momento a energia necessária para fazê-lo, depois dos acontecimentos da noite passada.
— Acho que não sabemos do que vamos precisar — respondeu a psicóloga. — Mas com certeza não precisamos da antropóloga entre nós se ela está incapaz de exercer suas funções.
A topógrafa e eu a encaramos. A topógrafa estava com os braços cruzados. Todas nós tínhamos sido treinadas para ficar de olho em nossas colegas, para detectar sinais de estresse ou disfunção mental súbita. Ela provavelmente estava imaginando o mesmo que eu: tínhamos uma escolha. Podíamos aceitar a explicação da psicóloga para o desaparecimento ou podíamos rejeitá-la. Rejeitando-a, estaríamos afirmando que ela mentiu, e ao mesmo tempo refutando sua liderança em um momento crítico. E se tentássemos seguir a trilha de volta ao ponto de origem, até alcançar a antropóloga, para verificar se a história da psicóloga era verdadeira... será que teríamos forças para retornar ao acampamento depois de tudo?
— Temos que manter o plano inicial — disse a psicóloga. — Devemos investigar... a torre.
A palavra torre, naquele contexto, era um apelo pela minha lealdade.
Ainda assim a topógrafa hesitava, como se tentasse resistir à sugestão implantada pela psicóloga durante a noite. Isto me alarmou por outro motivo. Eu não iria embora da Área X antes de examinar a torre. Esse fato estava entranhado, fazia parte de mim. E naquele contexto eu não admitia a ideia de perder outro membro do grupo tão depressa, ficando sozinha com a psicóloga. Não em um momento em que eu não sabia nada sobre ela e ainda não fazia ideia dos possíveis efeitos dos esporos sobre meu organismo.
— Ela tem razão — afirmei. — Devemos levar a missão adiante. Podemos continuar mesmo sem a antropóloga. — Mas meu olhar firme nos olhos da topógrafa deixou inteiramente claro para nós duas que voltaríamos a discutir sobre a antropóloga mais tarde.
A topógrafa assentiu com um aceno seco e desviou o olhar.
Um suspiro audível de alívio ou de exaustão veio da direção da psicóloga.
— Está resolvido, então — determinou ela, depois passou pela topógrafa e foi preparar o café da manhã.
Até então, era a antropóloga quem o providenciava.
* * *
Na torre, a situação mudou mais uma vez. Eu e a topógrafa tínhamos preparado embalagens leves com comida e água suficiente para passar um dia inteiro lá embaixo. Estávamos armadas. Pusemos as máscaras de gás para evitar os esporos, mesmo sendo tarde demais para mim. Ambas usávamos capacetes com pequenas lanternas fixadas no topo.
Mas a psicóloga ficou de pé na encosta coberta de grama, próxima da entrada da torre, e disse:
— Ficarei vigiando daqui.
— Vigiando o quê? — perguntei, incrédula.
Não queria perder a psicóloga de vista. Desejava vê-la imersa nos perigos da exploração, e não parada no topo, assumindo sobre nós todo o poder implícito nessa posição.
A topógrafa também estava insatisfeita. Em um comportamento quase de súplica, que indicava um alto grau de estresse reprimido, ela disse:
— Você tem que vir conosco. É mais seguro.
— Mas vocês precisam ter certeza de que a entrada está bem protegida — retrucou ela, encaixando um pente de munição na pistola.
O rangido do atrito do metal ecoou mais alto do que eu teria imaginado.
Os dedos da topógrafa, cerrados em torno do rifle, se contraíram tanto que vi as juntas ficarem brancas.
— Você precisa vir conosco — repetiu ela.
— Não há recompensa no risco de todas nós descermos — disse a psicóloga, e pela inflexão reconheci um comando hipnótico.
A mão da topógrafa no cabo do rifle relaxou. Suas feições tonaram-se inexpressivas por um instante.
— Tem razão — disse. — Claro que sim. Faz todo o sentido.
Uma pontada de medo percorreu minha espinha. Agora eram duas contra uma.
Pensei nisso durante um momento, avaliei todo o poder do olhar da psicóloga no momento em que ela concentrou sua atenção em mim. Cenários paranoicos, cheios de pesadelos, passaram pela minha cabeça. Voltaríamos e acharíamos a saída bloqueada. Ou a psicóloga nos abateria uma a uma, à medida que emergíssemos da torre à luz do sol. Exceto pelo fato de que ela poderia ter matado qualquer uma de nós durante o sono, ao longo da semana inteira.
— Não tem muita importância — disse eu, depois de um instante. — Você é tão valiosa para nós aqui em cima quanto lá embaixo.
E assim descemos, tal como antes, sob os olhos vigilantes da psicóloga.
* * *
A primeira coisa que notei ao chegar ao patamar, antes de nos aproximarmos da escada em espiral que descia para as profundezas, antes mesmo de encontrarmos as palavras escritas na parede, foi que... a torre estava respirando. A torre respirava, e quando eu tocava as paredes sentia nelas o eco de um coração batendo... não eram feitas de pedra, e sim de tecidos vivos. Aquelas paredes ainda eram brancas, mas uma espécie de fosforescência branco-prateada se elevava delas. O mundo pareceu rodar por um momento, e eu me sentei pesadamente junto à parede. A topógrafa veio para perto de mim, tentando me ajudar a levantar. Acho que eu ainda estava tremendo quando finalmente fiquei de pé. Não sei se posso reconstituir em palavras a enormidade daquele momento. A torre era uma espécie de criatura viva. Nós estávamos adentrando um organismo vivo.
— O que há de errado? — perguntou a topógrafa, com a voz abafada pela máscara. — O que aconteceu?
Segurei a mão dela e forcei sua palma de encontro à parede.
— Me solte!
Ela tentou se libertar, mas eu não deixei.
— Não está sentindo? — perguntei, insistente. — Não consegue sentir isso?
— Sentir o quê? Do que está falando?
Ela estava assustada, claro. Aos seus olhos, eu estava agindo irracionalmente. Mesmo assim, persisti:
— Uma vibração, uma espécie de pulsação.
Soltei a mão dela e dei um passo para trás.
Ela respirou fundo e manteve a mão encostada à parede.
— Não. Talvez. Não, não... nada.
— E a parede. Do que ela é feita?
— Pedra, é claro — disse ela.
Sob a lanterna do meu capacete, as sombras produziam buracos no seu rosto, seus olhos grandes estavam envoltos pela escuridão, e a máscara dava a impressão de que ela não tinha nariz nem boca.
Respirei fundo. Queria pôr tudo para fora: dizer que eu tinha sido contaminada, que a psicóloga estava nos hipnotizando mais do que podíamos ter suspeitado. Que aquelas paredes eram feitas de tecido vivo. Mas não disse nada. Em vez disso, fiz das tripas coração, como meu marido costumava dizer. Fiz das tripas coração porque tínhamos que avançar, e a topógrafa não era capaz de ver o que eu via, não era capaz de experimentar o que eu estava experimentando. E eu não podia forçá-la a enxergar.
— Esqueça — disse eu. — Fiquei desorientada por um segundo.
— Escute, deveríamos voltar. Você está entrando em pânico — observou ela.
Tinham dito a todas nós que na Área X poderíamos ver coisas que não existiam. Sei que era isso que ela estava pensando ao meu respeito.
Mostrei a caixa preta no meu cinto.
— Não... não está acendendo. Estamos bem.
Era um gracejo, um gracejo meio bobo, mas era.
— Você teve uma alucinação.
Ela não ia largar do meu pé com facilidade.
Você é que não vê o que está ali, pensei.
— Talvez — admiti —, mas isso também não é importante? Não é parte do objetivo? Não estamos registrando tudo? E uma coisa que eu vejo e você não vê pode ser importante.
A topógrafa pensou sobre aquilo por uns instantes.
— Como se sente agora?
— Eu me sinto bem — menti. — Não estou vendo mais nada.
Sentia como se meu coração fosse um animal preso dentro de meu peito e estivesse tentando se arrastar para fora. A topógrafa estava cercada pela aura de fosforescência branca que emanava das paredes. Nada havia desaparecido. Nada havia me deixado.
— Então, vamos em frente — decidiu a topógrafa. — Mas só se me prometer que me avisará caso veja alguma coisa anormal outra vez.
Quase ri ao ouvir aquilo, lembro-me bem. Anormal? Como palavras estranhas escritas em uma parede? Escritas entre minúsculas comunidades de criaturas de origem desconhecida.
— Prometo — disse. — E você fará o mesmo, certo? — acrescentei, devolvendo a bola, mostrando que a mesma coisa podia acontecer com ela.
— Só não me agarre novamente, senão vou machucá-la.
Assenti. Ela não gostou de saber que eu era fisicamente mais forte.
Foi nos termos daquele compromisso vacilante que tomamos a direção da escada e descemos pela garganta da torre, com as profundezas se revelando um incessante espetáculo de horrores de tal beleza e biodiversidade que eu não conseguia assimilar tudo o que via. Mas tentei, como sempre havia tentado, desde o começo de minha carreira.
A primeira coisa de que me lembrava sempre que alguém me perguntava por que me tornei bióloga era a piscina tomada de vegetação nos fundos da casa alugada onde cresci. Minha mãe era uma artista desequilibrada que obteve algum sucesso, mas tinha uma certa afeição por álcool e dificuldade em encontrar novos clientes, ao passo que meu pai era um contador desempregado, especialista em esquemas para ficar rico do dia para noite que geralmente não resultavam em nada. Nenhum dos dois parecia ter a capacidade de se focar em uma única coisa durante certo período de tempo. Às vezes me sentia como se tivesse sido cedida àquela família, em vez de ter nascido nela.
Eles não tinham a iniciativa ou a inclinação para limpar aquela piscina com formato de rim periodicamente, mesmo ela sendo pequena. Logo depois que nos mudamos, a relva nas bordas cresceu bastante. Juncos e outras plantas altas predominavam. Os pequenos arbustos que margeavam a cerca em volta da piscina cresceram até cobrir todo o metal. Havia musgo nas rachas entre os azulejos. O nível da água subiu devagar, encorpado pela chuva, e a superfície foi ficando cada vez mais lodosa. Libélulas esvoaçavam o tempo todo por aquela área. Rãs enormes foram se aproximando junto com seus girinos, que mais pareciam manchas disformes que se moviam. Aranhas-d’água e besouros aquáticos começaram a se apossar do local. Em vez de me desfazer do meu aquário de água doce de mais de cem litros, como desejavam meus pais, joguei os peixes dentro da piscina, e alguns deles sobreviveram ao choque. Garças, garças-reais e outras aves da região começaram a aparecer, atraídas pelas rãs, pelos peixes e pelos insetos. Por algum milagre, também, pequenas tartarugas passaram a habitar a piscina, embora eu não tivesse ideia de como tinham ido parar ali.
Meses depois de nossa chegada, a piscina tinha virado um ecossistema em pleno funcionamento. Eu costumava entrar devagarinho pelo portão de madeira que rangia e ficava observando, sentada em uma cadeira de jardim enferrujada que havia colocado no canto mais afastado. Apesar do medo de me afogar, muito intenso e fundamentado, eu sempre gostara de ficar nas proximidades de grandes massas de água.
Em casa, meus pais faziam as coisas banais e desordenadas que os seres humanos fazem neste mundo, às vezes com bastante ruído. Mas para mim era fácil me perder naquele microecossistema da piscina.
Inevitavelmente, minha obsessiva atenção bloqueava os inúteis sermões de meus pais, cheios de preocupação por causa da minha introversão crônica. Era como se, agindo assim, eles pudessem me convencer de que ainda tinham as rédeas nas mãos. Eu não tinha muitos amigos, ou talvez nenhum, diziam. Eu não me esforçava. Poderia estar ganhando algum dinheiro com um trabalho de meio expediente. Mas quando lhes contei que, muitas vezes, como uma formiga-leão relutante, eu tivera que me esconder dos valentões no fundo das cascalheiras que havia nos terrenos abandonados atrás da escola, eles não tiveram o que dizer. Nem quando um dia, “sem motivo algum”, dei um soco na cara de outra estudante quando ela me disse “oi” na fila do lanche.
E assim nós seguimos, cada qual trancafiado em seus próprios imperativos. Eles tinham a vida deles, e eu tinha a minha. Gostava muito de fingir que era bióloga, e fingir muitas vezes nos transforma em um fac-símile razoável do que a gente está imitando, mesmo que a distância. Registrei minhas observações a respeito da piscina em uma série de diários. Podia diferenciar cada uma das rãs: o Velho Afundão era muito diferente do Pulador Feio; e sabia em que mês a relva estaria cheia de filhotes saltitantes. Sabia quais espécies de garça permaneciam o ano todo e quais eram migratórias. Os besouros e as libélulas eram mais complicados de identificar e seus ciclos de vida, mais difíceis de deduzir, mas eu tentava entendê-los, sempre diligente. Durante esse período, evitei livros de ecologia ou biologia. Queria primeiro descobrir as informações por conta própria.
No que me diz respeito — sendo filha única e uma especialista nos usos da solidão —, minhas observações daquele paraíso em miniatura poderiam se prolongar eternamente. Cheguei até mesmo a acoplar uma lâmpada à prova d’água a uma câmera também à prova d’água, e meu plano era mergulhar a engenhoca sob a superfície escura da piscina e tirar fotos usando um longo arame flexível para acionar o disparador. Não faço ideia se aquilo iria funcionar ou não, porque de um momento para o outro meu tempo acabou. Nossa sorte chegou ao fim, e não podíamos mais pagar o aluguel da casa. Fomos para um apartamento minúsculo, atulhado dos quadros de minha mãe, que aos meus olhos não eram muito diferentes de papéis de parede. Um dos grandes traumas da minha vida era a preocupação com a piscina. Será que os próximos inquilinos seriam capazes de ver sua beleza e a importância de deixá-la como era, ou iriam destruí-la, provocando uma carnificina imensurável com o objetivo de devolver à piscina sua real função?
Nunca fiquei sabendo — não teria coragem de ir até lá, embora a beleza daquele lugar nunca saísse da minha mente. Tudo que eu podia fazer era olhar para a frente e aplicar o que tinha aprendido durante minhas observações. E nunca voltei a olhar para trás, para o bem ou para o mal. Se o financiamento de um projeto se esgotava, ou a área que estávamos estudando de repente era comprada para construção, eu nunca mais voltava ali. Existem alguns tipos de morte que não se pode obrigar alguém a reviver, um tipo de conexão tão profunda que, quando se rompe, você sente o estalo do elo partido dentro de você.
Enquanto descíamos pela torre, voltei a sentir, pela primeira vez depois de muito tempo, o calor da descoberta que eu tinha experimentado quando criança. Mas também fiquei antecipando o estalo.
De onde jaz o fruto asfixiante que veio da mão do pecador eu trarei as sementes dos mortos para partilhar com os vermes que...
Os segredos da torre continuaram a se revelar, aqueles degraus esbranquiçados como os dentes em espiral de alguma besta incomensurável, e continuamos a descer porque não havia escolha. Em alguns momentos desejei que minha mente estivesse tão bloqueada quanto a da topógrafa. Entendi por que a psicóloga havia nos poupado, e fiquei pensando em como ela era capaz de suportar aquilo, pois não tivera ninguém para protegê-la, assim, de... nada.
A princípio, havia “apenas” as palavras, e isso era o bastante. Elas apareciam sempre à mesma altura na parede a nossa esquerda, e por algum tempo tentei gravá-las, mas havia muitas, e seu sentido ia e voltava, de modo que tentar acompanhar o significado das palavras era enveredar por um caminho sem volta. Eu e a topógrafa chegamos logo a um acordo: iríamos documentar a presença física das palavras, mas seria necessária uma missão separada, outro dia, para fotografar aquela frase contínua e interminável.
...para partilhar com os vermes que se reúnem nas trevas e povoam o mundo com o poder de suas vidas enquanto nos salões mal-iluminados de outros lugares formas que nunca poderiam existir se contorcem pela impaciência dos poucos que jamais viram ou jamais foram vistos...
A sensação de inquietude por ignorar a natureza ominosa daquelas palavras era palpável. Contaminava nossas próprias frases quando conversávamos, enquanto tentávamos classificar a realidade biológica daquilo que ambas enxergávamos. Ou a psicóloga queria que nós duas víssemos as palavras e como elas estavam escritas, ou a simples tarefa de suprimir a realidade física das paredes da torre requeria um esforço monumental e desgastante.
Durante nossa descida inicial nas trevas, experimentamos várias coisas: o ar tornou-se mais fresco e úmido, e com a queda da temperatura surgiu também um odor adocicado no ar, como de um néctar diluído. Nós duas observamos ainda as minúsculas criaturas em forma de mão que viviam entre as palavras. O teto era mais alto do que teríamos imaginado, e à luz dos nossos capacetes, quando olhávamos para cima, a topógrafa via cintilações e formas espiraladas como se fossem rastros de caracóis ou de lesmas. Pequenos tufos de musgo e líquen manchavam o teto, e, exibindo uma grande capacidade de aderência, pequenas criaturas translúcidas e de pernas longuíssimas, que lembravam camarões da caverna, passeavam por ali.
Coisas que apenas eu era capaz de ver: as paredes se elevavam e abaixavam sutilmente como se respirassem. As cores das palavras mudavam produzindo um efeito quase ondulatório, como as luzes estroboscópicas de uma lula. Em uma margem de mais de sete centímetros acima das palavras visíveis e sete abaixo, viam-se vestígios de palavras anteriores, escritas na mesma caligrafia cursiva. Na prática, essas camadas de palavras formavam uma espécie de marca d’água, porque eram apenas uma mancha na parede, sendo uma pálida sugestão de algo verde ou roxo o único sinal de que antes se elevavam letras ali. A maioria parecia repetir o texto principal, mas outras não.
Durante algum tempo, enquanto a topógrafa tirava fotos das palavras vivas, fiquei lendo as letras fantasmas para ver suas variações. Era difícil — havia várias faixas superpostas, que começavam, paravam e então recomeçavam. Era fácil perder palavras isoladas e até frases inteiras. A quantidade desses escritos fantasmas mostrava que o processo acontecia há muito tempo. Sem uma ideia melhor da duração de cada “ciclo”, porém, eu não tinha como fazer nem sequer uma estimativa de quantos anos.
Havia também outro elemento de comunicação na parede. Eu não tinha certeza se a topógrafa podia vê-lo. Decidi testá-la.
— Reconhece isso? — perguntei, apontando para uma espécie de treliça que, a princípio, não notei que obedecia a um padrão específico.
Ela cobria a parede até um pouco abaixo da escrita fantasma e acima dela, com uma faixa principal correndo no meio. Parecia uma cadeia de escorpiões presos uns aos outros pelo ferrão, subindo verticalmente para então descer mais uma vez. Eu nem sabia se estava olhando para uma linguagem propriamente dita. Podia ser apenas um padrão decorativo.
Para meu alívio, ela também o avistava.
— Não, não sei o que é — disse ela. — Mas não sou especialista.
Senti um impulso de irritação, mas não em relação a ela. Eu tinha uma mente pouco adequada àquela tarefa, e a topógrafa também; precisávamos de uma linguista. Podíamos passar séculos olhando aquela escrita entrelaçada, e a ideia mais original que me ocorreria seria que ela lembrava as ramificações do esqueleto de um coral. Para a topógrafa, lembrava a rede de afluentes de um grande rio.
A certa altura, no entanto, eu era capaz de reconstruir fragmentos de algumas das variantes: Como posso descansar enquanto existe o mal no mundo... O amor de Deus ilumina qualquer um que entende os limites da resistência, permitindo o perdão... Fui escolhido para servir a um poder maior. Se a frase principal formava uma espécie de sermão sombrio e incompreensível, os fragmentos tinham com ele uma certa afinidade, mas sem a sintaxe rebuscada.
Será que eram restos de algum tipo de relato mais longo, talvez deixados por membros de expedições anteriores? Se era assim, com que intenção foram feitos? E ao longo de quantos anos?
No entanto, todas essas perguntas teriam que ser respondidas mais tarde, à luz do sol. Mecanicamente, como um robô, limitei-me a tirar fotos das frases principais — mesmo com a topógrafa achando que eu estava fotografando uma parede vazia, ou enquadrando de maneira errada algumas daquelas palavras feitas de fungos —, para pôr um pouco de distância entre mim e o que quer que eu pudesse pensar sobre tantas variantes. Enquanto isso a caligrafia principal continuava e continuava a me enervar: ... na água negra e com o sol brilhando à meia-noite, aqueles frutos amadurecerão e naquela escuridão dourada se partirão para expor a revelação da suavidade fatal da terra...
As palavras me derrotavam. Fui recolhendo amostras à medida que avançávamos, mas sem entusiasmo. Todos aqueles minúsculos fragmentos que estava guardando em tubos de vidro com o auxílio de pinças... o que teriam para me dizer? Não muito, eu sentia isso. Às vezes a gente percebe quando a verdade de certas coisas não será revelada sob o microscópio. Em pouco tempo, também, o som das pulsações por trás da parede se tornou tão alto aos meus ouvidos que precisei parar para colocar protetores e abafá-lo, em um momento em que a topógrafa estava distraída. Mascaradas, meio surdas por diferentes razões, continuamos a avançar.
* * *
Deveria ter sido eu a notar a mudança, não ela. Mas depois de uma hora de descida, a topógrafa deteve-se no degrau logo abaixo do meu.
— Não acha que as palavras na parede estão ficando... mais frescas?
— Mais frescas?
— Mais recentes.
Eu a encarei por um momento. Já tinha me acostumado àquela situação, dando o melhor de mim para fingir ser a espécie de observadora imparcial que se limita a catalogar detalhes. Mas senti todo aquele distanciamento tão duramente imposto me abandonar.
— Desligue a lanterna — sugeri, e fiz o mesmo.
A topógrafa hesitou. Depois da minha demonstração anterior de impulsividade, ia levar algum tempo para que ela voltasse a confiar em mim. E não o tipo de confiança capaz de fazê-la obedecer sem pensar a um pedido para mergulhar na escuridão comigo. Mas ela o fez. A verdade é que eu tinha deixado minha arma guardada no coldre do cinto propositalmente, e ela podia ter me abatido em um instante com seu rifle, bastando-lhe um movimento rápido para tirá-lo do ombro. Essa premonição de violência não fazia muito sentido, e, no entanto, me veio com facilidade à mente, quase como se colocada ali por forças externas.
No escuro, com a pulsação da torre ainda ecoando nos meus tímpanos, as letras, as palavras ondeavam enquanto as paredes estremeciam respirando, e eu vi que sem dúvida pareciam mais ativas, as cores mais brilhantes, a luminescência mais intensa do que eu lembrava ter visto alguns níveis acima. Era um efeito ainda mais evidente do que se as palavras tivessem sido escritas com uma caneta tinteiro. O polimento brilhante e úmido do que é novo.
Parada ali naquele lugar impossível, eu o disse antes que a topógrafa pudesse fazê-lo, para me apropriar daquela descoberta.
— Alguma coisa abaixo de nós está escrevendo essas linhas. Alguma coisa lá embaixo talvez ainda esteja escrevendo essas palavras.
Estávamos explorando um organismo que poderia conter um misterioso segundo organismo, que, por sua vez, estava usando outros organismos para produzir aquelas palavras na parede. Aquilo fazia a piscina coberta de vegetação da minha infância parecer uma coisa simplista, unidimensional.
Voltamos a acender as lanternas. Vi o medo nos olhos da topógrafa, mas também uma estranha determinação. Eu não fazia ideia do que ela via nos meus.
— Por que disse alguma coisa? — perguntou ela.
Não entendi.
— Por que você disse “alguma coisa”, em vez de “alguém”? Por que não pode ser “alguém”?
Dei de ombros.
— Pegue sua arma — disse a topógrafa com certo desgosto na voz, encobrindo alguma emoção mais profunda.
Obedeci, porque de fato não me importava. Mas segurar a arma fez com que me sentisse desajeitada, esquisita, como se aquela fosse uma reação errada ao que poderia nos acontecer.
Como até aquele ponto eu tinha meio que assumido a liderança, agora parecíamos ter trocado de papéis, e a natureza de nossa exploração consequentemente mudou.
Tínhamos estabelecido um novo protocolo. Paramos de registrar as palavras e os organismos na parede. Passamos a andar mais rápido, com a atenção focada na escuridão diante de nós. Falávamos aos sussurros, como se alguém pudesse estar nos ouvindo. Fui na frente, com a topógrafa cobrindo a retaguarda até chegarmos a uma curva, quando ela tomou a dianteira e eu a segui. Em nenhum momento falamos em voltar. A psicóloga, vigiando lá fora, parecia ter ficado a milhares de quilômetros de distância. Estávamos tomadas por uma energia nervosa produzida pela impressão de que encontraríamos uma resposta lá embaixo. Uma resposta viva, respirando.
Bom, a topógrafa podia estar pensando na situação nesses termos. Ela não sentia ou escutava a pulsação das paredes. Mas à medida que avançávamos mesmo eu não conseguia visualizar quem tinha escrito aquelas frases. Só via o mesmo de antes, quando olhei para trás após atravessar a fronteira, a caminho do acampamento: um feixe esbranquiçado e fora de foco. E mesmo assim sabia que não era algo humano.
Por quê? Por uma razão muito boa — uma razão que a topógrafa percebeu depois de mais vinte minutos de descida.
— Há alguma coisa no chão — disse ela.
Sim, tinha algo no chão. Já há bastante tempo os degraus estavam cobertos por uma espécie de resíduo. Eu não tinha parado para examiná-lo porque não queria deixar a topógrafa nervosa, já que não sabia se ela podia vê-lo ou não. Esse resíduo cobria a distância que ia da base da parede à nossa esquerda até cerca de meio metro da parede à direita. Isso significava que cobria uma extensão de cerca de três metros nos degraus.
— Deixe-me dar uma olhada — pedi, ignorando o tremor em seus dedos.
Ajoelhei-me, virando-me para dirigir o facho de luz da lanterna para os degraus que se erguiam às minhas costas. A topógrafa aproximou-se para olhar por cima do meu ombro. Aquele resíduo cintilava com um tênue brilho dourado através de flocos avermelhados como sangue seco. Parecia refletir parcialmente a luz. Toquei-o com uma caneta.
— É viscoso, como um muco — observei. — A camada nos degraus tem pelo menos três centímetros de espessura.
A impressão geral que aquilo nos dava era de algo que estava rastejando pelos degraus.
— E quanto àquelas marcas? — perguntou a topógrafa, inclinando-se para a frente e apontando outra vez.
Ela sussurrava, o que me parecia desnecessário, e sua voz estava tensa. Mas quanto mais eu percebia seu pânico aumentar, mais calma me sentia.
Examinei o rastro por algum tempo. Algo escorrendo, talvez, ou sendo arrastado, mas devagar o bastante para revelar muitas coisas nos resíduos deixados para trás. As marcas que ela apontava eram ovais, com cerca de trinta centímetros de comprimento por quinze de largura. Havia seis delas nos degraus, em duas fileiras. Uma profusão de endentações em seu interior lembrava as marcas deixadas por cílios. A cerca de vinte e cinco centímetros dessas marcas, circulando-as, havia duas linhas. Esse círculo duplo e irregular ondulava para dentro e para fora, quase como a barra de uma saia. Para além dessas “barras” havia leves sinais de outras “ondas”, como se uma força que emanasse de um corpo central tivesse deixado uma marca. Pareciam-se com as linhas deixadas na areia pelo recuo da maré, exceto pelo fato de que estavam borradas, pouco nítidas, como desenhos a carvão.
Essa descoberta me deixou fascinada. Eu não conseguia parar de olhar para aquele rastro, aquelas marcas ciliares. Imaginei que uma criatura como aquela poderia compensar o tranco dos degraus mais ou menos como uma câmera com estabilizador compensa os solavancos do terreno.
— Já viu alguma coisa assim? — perguntou a topógrafa.
— Não — respondi. Esforcei-me para reprimir uma resposta mais cáustica. — Não, nunca vi.
Algumas trilobitas, lesmas e vermes deixam rastros mais simples em comparação a esse, mas vagamente semelhantes. Eu tinha certeza de que ninguém no mundo já vira um rastro tão grande e tão complexo.
— E quanto àquilo? — indagou ela, indicando um degrau um pouco acima de nós.
Apontei o foco de luz para lá e vi a impressão de uma bota no resíduo.
— É apenas uma de nossas botas. — Comparado ao que víamos, era tão banal. Tão entediante.
A luz no capacete se moveu de um lado para o outro quando ela balançou a cabeça.
— Não. Olhe bem.
E apontou para as impressões das minhas botas e as das dela. Aquela outra marca era de um terceiro rastro, e estava subindo a escada.
— Tem razão — disse eu. — São de outra pessoa, que esteve por aqui há pouco tempo.
A topógrafa começou a praguejar.
Naquele momento, não nos ocorreu procurar por outro par de marcas de botas.
De acordo com os registros que tinham nos mostrado, a primeira expedição não relatou nada fora do comum na Área X, somente uma natureza selvagem e intocada. Depois que a segunda e a terceira expedições não voltaram, e seu destino tornou-se conhecido, as expedições cessaram durante algum tempo. Quando recomeçaram, foi utilizando voluntários cuidadosamente escolhidos que podiam ter alguma noção do risco envolvido. Desde então, algumas expedições tinham sido mais bem-sucedidas do que outras.
A décima primeira expedição, em particular, tinha passado por dificuldades — dificuldades que eu também enfrentara devido a um fato sobre o qual não fui totalmente honesta.
Meu marido estava na décima primeira expedição, na função de médico. Ele nunca quis ser médico, preferia trabalhar com primeiros socorros ou trauma. “Um enfermeiro para fazer triagem em campo”, como dizia. Foi recrutado para a Área X por um amigo, que se lembrava dele dos tempos em que tinham servido à marinha, antes de ele se tornar paramédico. Não aceitou a princípio, pois tinha ficado inseguro, mas depois de algum tempo eles o convenceram. Isso causou muito atrito entre nós, embora nosso relacionamento já estivesse passando por dificuldades.
Sei que essas informações não são muito difíceis de confirmar, mas espero que, quando lerem este relato, possam me considerar uma testemunha objetiva e confiável. Não como alguém que se apresentou como voluntária por algum motivo não ligado ao propósito da expedição. E de certo modo isso ainda é verdade, e a posição de meu marido como membro da expedição é, de muitas maneiras, irrelevante para as minhas razões de aderir a ela.
Mas como poderia não ser afetada pela Área X, mesmo que somente por intermédio dele? Certa noite, cerca de um ano depois de ele ter partido para a fronteira, eu estava deitada sozinha na cama e ouvi alguém na cozinha. Armei-me com um bastão de beisebol, saí do quarto e acendi todas as luzes da casa. Encontrei meu marido junto do refrigerador, ainda com o uniforme da expedição, bebendo leite, derramando-o pelo queixo e pelo rosto, e devorando furiosamente restos de comida.
Fiquei muda. Só conseguia olhar para ele como se fosse uma miragem que, se eu me mexesse ou dissesse qualquer coisa, iria se dissipar no nada, ou em menos do que nada.
Sentamos os dois na sala, ele no sofá e eu em uma poltrona em frente. Precisava de alguma distância daquela aparição repentina. Ele não sabia dizer como tinha deixado a Área X e não se lembrava de como havia chegado em casa. Tinha apenas uma vaga lembrança da expedição em si. Demonstrava uma calma estranha, rompida apenas por um breve momento de pânico quando lhe perguntei o que acontecera e ele percebeu que sua amnésia não era natural. Também parecia ter desaparecido de sua memória que nosso casamento tinha começado a se desintegrar, bem antes de sua ida para a expedição. Ele demonstrava aquele mesmo distanciamento de que, de maneiras sutis ou não, me acusara no passado.
Depois de algum tempo, não aguentei mais aquilo. Tirei a roupa dele, obriguei-o a tomar banho, depois o levei para o quarto e fiz amor com ele, comigo por cima. Estava querendo recuperar o que restava do homem que eu me lembrava, o homem que, tão diferente de mim, era extrovertido, impetuoso e adorava ser útil. Um velejador entusiasta que, durante duas semanas, todo ano, juntava os amigos e partia para o litoral para passear de barco. Não encontrei mais nada daquele homem.
Durante todo o tempo em que esteve dentro de mim ele olhou para meu rosto com uma expressão que mostrava que se lembrava, sim, de mim, mas somente através de uma névoa. Isso ajudou durante algum tempo, contudo. Fez com que ele se tornasse mais real, me permitiu fingir.
Mas passou rápido. Voltei a tê-lo em minha vida por apenas vinte e quatro horas. Foram buscá-lo na noite seguinte, e depois de atravessar o longo e exaustivo processo de ser revistada e liberada pela equipe de segurança, eu o visitei na clínica em que ele estava sob observação, até o fim. Aquele local antisséptico, onde o testaram e tentaram de todas as maneiras romper as barreiras de sua calma e da amnésia. Ele me saudava como a uma velha amiga — uma espécie de âncora, para dar sentido a sua vida —, mas não como amante. Confesso que ia porque tinha esperanças de que restasse alguma fagulha do homem que conheci um dia. Mas nunca a encontrei, na verdade. Mesmo quando me informaram que ele tinha sido diagnosticado com câncer sistêmico, inoperável, meu marido olhava para mim com uma expressão ligeiramente confusa no rosto.
Ele morreu seis meses depois. Durante todo esse tempo, nunca consegui ver além da superfície, nunca pude recuperar o homem que havia conhecido. Nunca pude; nem com as nossas interações pessoais, nem vendo de vez em quando as gravações das entrevistas dele e dos outros membros da expedição, que também morreram de câncer.
O que quer que tivesse acontecido na Área X, o fato é que ele não tinha voltado. Não de verdade.
Descemos ainda mais na escuridão, e fiquei me perguntando se alguma coisa daquilo também tinha sido experimentada pelo meu marido. Eu não sabia até que ponto a minha infecção mudava as coisas. Eu estava seguindo seus passos, ou ele tinha encontrado algo completamente diferente? Se fosse assim, quais seriam as diferenças na reação dele, e como isso teria afetado o que aconteceu a seguir?
A trilha de muco foi ficando mais espessa, e agora podíamos dizer que as chispas vermelhas eram organismos vivos descartados pelo que quer que estivesse lá embaixo, porque eles se agitavam naquela camada viscosa. A cor da substância tinha ficado mais intensa, e agora parecia um tapete dourado e cintilante colocado ali para nos receber para algum banquete estranho, mas magnífico.
“Devíamos voltar?” A topógrafa diria, ou eu diria.
E a outra responderia: “Depois da próxima curva. Só um pouquinho mais, e então voltamos.”
Era um teste da nossa frágil confiança. Um teste de nossa curiosidade e fascinação, ambas andando lado a lado com o medo. Um teste para saber se preferíamos ficar ignorantes ou em perigo. A sensação das botas avançando a passos mais que cuidadosos em meio àquele vômito pegajoso, o modo como aquela viscosidade parecia nos atolar mesmo enquanto íamos adiante, cedo ou tarde resultaria em inércia, nós sabíamos, se fôssemos longe demais.
Mas então a topógrafa dobrou em uma curva a minha frente e recuou às pressas, esbarrando em mim e me empurrando escada acima, e eu obedeci.
— Tem alguma coisa aí embaixo — sussurrou no meu ouvido. — Como um corpo ou uma pessoa.
Eu não quis lhe dizer que um corpo podia ser uma pessoa.
— Está escrevendo palavras na parede?
— Não, está caído junto à parede. Só vi de relance.
A respiração dela vinha rápida e curta de encontro à máscara.
— Homem ou mulher? — perguntei.
— Eu achei que fosse uma pessoa — disse ela, ignorando minha pergunta. — Achei que fosse uma pessoa. Achei que fosse.
Uma coisa era se deparar com um corpo, mas nenhum tipo de treinamento seria capaz de preparar alguém para encontrar um monstro.
E não poderíamos voltar para a superfície sem primeiro investigar esse novo mistério. Era impossível. Agarrei-a pelos ombros e a fiz olhar para mim.
— Você disse que é uma pessoa caída junto à parede. Não é o que estamos seguindo. Tem a ver com a outra pegada. Você sabe disso. Vamos nos arriscar, dar uma olhada em seja lá o que for, e depois subimos de novo. Não passaremos deste ponto, não importa o que a gente encontre, prometo.
A topógrafa assentiu. Saber que acabaria ali, que não teríamos que continuar descendo, foi o bastante para dar-lhe mais firmeza. Vamos encarar esta última coisa, e daqui a pouco veremos a luz do sol.
Começamos a avançar de novo.
Os degraus pareciam ainda mais escorregadios, mesmo que essa sensação existisse apenas em função de nosso nervosismo, e caminhamos devagar, usando a superfície branca da parede à direita para manter o equilíbrio. A torre estava silenciosa, prendendo a respiração, o pulsar de seu coração de repente ficou mais lento e mais distante do que antes, ou talvez tudo que eu estivesse ouvindo fosse o sangue latejando com força em meus ouvidos.
Após a curva, vi o vulto, e lancei sobre ele o facho de minha lanterna. Se tivesse hesitado um só segundo, jamais teria coragem. Era o corpo da antropóloga, caído de encontro à parede esquerda, com as mãos no colo, a cabeça abaixada como se estivesse rezando, e uma coisa verde brotava de sua boca. Suas roupas pareciam estranhamente desfocadas, indistintas. Um tênue brilho dourado envolvia seu corpo, quase imperceptível; acredito que a topógrafa fosse incapaz de vê-lo. Em nenhum cenário mental eu imaginava a possibilidade de a antropóloga estar viva. Tudo o que pensei foi: A psicóloga mentiu para nós. E de repente a presença dela lá em cima, vigiando a entrada, me atingiu como uma pressão intolerável.
Ergui a mão espalmada indicando à topógrafa que esperasse atrás de mim e me adiantei, apontando o facho de luz para as trevas à minha frente. Ultrapassei o corpo para me certificar de que os degraus abaixo estavam vazios, e depois retornei às pressas.
— Fique vigiando enquanto dou uma olhada no corpo — pedi. Não lhe disse que tinha sentido uma vaga impressão, quase como um eco distante, de que algo se movia lentamente lá embaixo.
— É um corpo? — perguntou a topógrafa.
Talvez ela esperasse algo mais estranho. Talvez tivesse pensado que a pessoa estivesse apenas dormindo.
— É a antropóloga — disse, e a vi assimilar a informação com uma contração dos ombros.
Sem outra palavra, ela passou por mim e assumiu uma posição defensiva alguns degraus abaixo, com o rifle de assalto erguido contra a escuridão.
Com cuidado, ajoelhei-me junto da antropóloga. Não tinha sobrado muito do seu rosto, e a pele que restara tinha estranhas marcas de queimadura. Derramando-se de sua mandíbula quebrada, que dava a impressão de ter sido arrancada em um único gesto brutal, havia uma torrente de cinzas esverdeadas, que se amontoava em seu peito. As mãos, pousadas no colo com as palmas viradas para cima, não tinham mais pele, só uma espécie de filamento diáfano e mais marcas de queimaduras. Suas pernas pareciam ter derretido e estavam meio que fundidas uma à outra, com uma bota faltando e a outra jogada ao lado da parede. Espalhados em volta dela havia alguns daqueles tubos de amostras que eu trouxera comigo. Sua caixa preta, esmagada, estava a alguns metros do corpo.
— O que houve com ela? — perguntou a topógrafa.
Ela dava olhadas rápidas e nervosas na minha direção enquanto continuava de guarda, quase como se aquilo que acontecera não tivesse acabado ainda. Como se esperasse que a antropóloga voltasse à vida de alguma forma horrível.
Não respondi. Tudo que poderia dizer era eu não sei, uma frase que vinha se tornando uma espécie de testemunho da nossa ignorância ou incompetência. Ou das duas coisas.
Projetei a luz na parede acima da antropóloga. Ao longo de um ou dois metros, a escritura na parede se tornava errática, indo para cima e para baixo, antes de se estabilizar.
...as sombras do abismo são como as pétalas de uma flor monstruosa que desabrochará dentro do crânio e expandirá a mente para além do que qualquer homem pode suportar...
— Acho que ela interrompeu o criador das frases — disse eu.
— E ele fez isto com ela?
A topógrafa estava me implorando para encontrar outra explicação.
Eu não tinha, então não respondi, voltei a examinar o corpo enquanto ela ficou lá, vigiando.
Ser bióloga não é o mesmo que ser detetive, mas comecei a pensar como um. Examinei o chão em volta do corpo, identificando primeiro as marcas das minhas botas, e depois as da topógrafa. Tínhamos obliterado as pegadas anteriores, mas ainda dava para ver alguns traços. Antes de tudo, a coisa — e não importa quais fossem as esperanças da topógrafa, eu não conseguia pensar nela como algo humano — tinha claramente entrado em um frenesi. Em vez dos rastros meio deslizantes de antes, o resíduo de muco formava uma espécie de redemoinho no sentido horário, as marcas dos “pés”, como pensávamos nelas, mais longas e estreitas devido à mudança brusca de direção. Mas por cima desses redemoinhos eu podia ver marcas de passos. Fui buscar uma das botas, tendo o cuidado de não pisar nos indícios. As pegadas no meio do redemoinho eram sem dúvida da antropóloga — e eu podia ver manchas na parede do lado oposto, como se ela tivesse se apoiado ali.
Uma imagem começou a se formar na minha mente, a da antropóloga descendo rumo às trevas para observar o criador daquelas frases. Os tubos espalhados em volta do corpo sugeriam que ela tinha pensado em colher amostras. Mas que coisa mais insana, mais idiota! Correr um risco como aquele — a antropóloga nunca tinha me dado a impressão de ser impulsiva ou corajosa. Fiquei ali por alguns momentos, e depois recuei ainda mais subindo a escada, enquanto sinalizava para a topógrafa, para sua inquietação, que ficasse onde estava. Se houvesse algo em que pudesse atirar, talvez ela ficasse mais calma, mas só o que tínhamos ali era o que se infiltrava em nossa imaginação.
Uma dúzia de degraus acima, no último ponto onde era possível ter uma visão parcial do corpo da antropóloga, encontrei dois conjuntos de pegadas de botas, um de frente para o outro. Um deles era da antropóloga. O outro não era meu nem da topógrafa.
Algo se encaixou em minha mente, e tudo ficou claro. No meio da noite, a psicóloga tinha acordado a antropóloga e a colocara sob hipnose. Juntas, as duas caminharam até a torre e desceram até ali. Naquele ponto, a psicóloga deu uma ordem à antropóloga, ainda hipnotizada, uma ordem que ela provavelmente sabia ser equivalente ao suicídio, e a antropóloga foi em direção à coisa que estava escrevendo na parede para colher uma amostra — e morreu tentando, provavelmente em agonia. A psicóloga então fugiu; pois ao descer de novo os degraus não vi mais marcas de suas botas abaixo daquele ponto.
Era pena ou empatia que eu estava sentindo pela antropóloga? Fraca, prisioneira, sem escolha.
A topógrafa me esperava, ansiosa.
— O que encontrou?
— Outra pessoa esteve aqui com a antropóloga — disse, e lhe contei minha teoria.
— Mas por que a psicóloga faria isso? — perguntou ela. — Viríamos todas para cá pela manhã, de qualquer maneira.
Eu me sentia como se estivesse observando a topógrafa a mil quilômetros de distância.
— Não faço ideia — respondi —, mas ela tem hipnotizado todas nós, e não foi apenas para nos relaxar mentalmente. Talvez esta expedição tenha um propósito diferente do que nos disseram.
— Hipnotismo — disse ela, como se a palavra não fizesse sentido. — Como sabe disso? Como pode saber disso?
A topógrafa parecia ressentida — não consegui descobrir se comigo ou com minha teoria. Mas podia entender por que se sentia assim.
— Porque, de algum modo, desenvolvi uma resistência — respondi. — Ela hipnotizou você antes de descermos aqui hoje, para se certificar de que cumpriria suas ordens. Eu vi quando ela o fez.
Eu queria confessar à topógrafa, dizer-lhe como eu havia adquirido uma resistência, mas achei que seria um erro.
— E não fez nada? Se é que tudo isso é verdade.
Pelo menos ela estava considerando a possibilidade de eu estar falando a verdade. Talvez algum resíduo, alguma lembrança difusa do episódio estivesse conservada em sua memória.
— Eu não queria que a psicóloga soubesse que não era capaz de me hipnotizar. — E também queria descer até aqui embaixo.
A topógrafa ficou pensativa por alguns instantes.
— Você pode acreditar em mim ou não — observei. — Mas saiba: quando voltarmos lá para fora, temos que estar preparadas para tudo. Talvez seja preciso dominar ou matar a psicóloga, pois não sabemos o que ela está planejando.
— E por que ela estaria planejando alguma coisa? — perguntou a topógrafa.
Aquilo seria desdém na sua voz, ou apenas medo?
— Porque ela deve ter instruções diferentes das que foram dadas a nós — disse, como se explicasse algo a uma criança.
Quando ela não respondeu, aceitei isso como um sinal de que estava começando a se acostumar com a ideia.
— Preciso ir na frente, porque ela não pode me influenciar. E você precisa usar isto aqui. Pode ajudá-la a resistir à sugestão hipnótica.
Entreguei-lhe meu par extra de protetores de ouvido.
Ela os recebeu, hesitante.
— Não — falou. — Vamos subir juntas, ao mesmo tempo.
— Isso não é muito esperto — retruquei.
— Não quero saber. Você não vai lá para cima sem mim. Não vou ficar aqui no escuro esperando que você resolva tudo.
Pensei por um instante, e falei:
— Muito bem. Mas se eu vir que ela está tentando controlar você, terei que detê-la.
Ou pelo menos tentar.
— Só se você estiver certa — disse a topógrafa. — Se estiver dizendo a verdade.
— Eu estou.
Ela me ignorou, e perguntou:
— E quanto ao corpo?
Aquilo queria dizer que tínhamos chegado a um acordo? Esperava que sim. Ou talvez ela tentasse me desarmar durante a subida. Talvez a psicóloga já a tivesse condicionado para isso.
— Vamos deixá-la aqui. O peso dela só iria nos atrapalhar, e não sabemos se estaríamos levando algum tipo de contaminação conosco.
A topógrafa assentiu. Pelo menos não era sentimental. Nada restava da antropóloga naquele corpo, e ambas sabíamos disso. Eu estava me esforçando para não pensar nos seus últimos momentos de vida, no terror que deve ter sentido enquanto continuava obedecendo às ordens que lhe tinham sido mentalmente impostas por outra pessoa, mesmo que aquilo significasse a própria morte. O que tinha visto? Para o que estava olhando quando tudo ficou escuro?
Antes de retornarmos, peguei um dos tubos de ensaio caídos em volta da antropóloga. Continha alguns traços de uma substância espessa que parecia carne e reluzia como ouro velho. Talvez ela tivesse conseguido recolher uma amostra útil antes do fim.
Enquanto subíamos de volta à superfície, tentei me distrair. Fiquei repassando meu treinamento várias vezes, procurando uma pista, algum fragmento de informação que pudesse me revelar algo sobre nossas descobertas. Mas não encontrei nada, e pude apenas me espantar com minha própria credulidade quando acreditei que tinham me passado informações úteis. A ênfase estava sempre em nossa capacidade e em nossos conhecimentos. E, pensando nisso agora, podia perceber um intento quase deliberado de obscurecer, de mascarar, disfarçado como preocupação em não nos assustar ou sobrecarregar.
O mapa foi a primeira forma de desinformação, pois o que era um mapa senão uma maneira de enfatizar certas coisas e tornar outras invisíveis? Sempre éramos mandadas de volta ao mapa, para memorizar seus detalhes. Nosso instrutor, cujo nome nunca soubemos, nos treinou durante seis longos meses para que aprendêssemos a posição do farol em relação ao acampamento, a distância em quilômetros entre um grupo de cabanas arruinadas e outro. A extensão da orla que deveríamos explorar. Quase sempre em um contexto a partir do farol, não do acampamento. Ficamos tão acostumadas com aquele mapa, com suas dimensões, com tudo que ele continha, que isso nos impediu de perguntar por que ou pelo menos o quê.
Por que aquele trecho da praia? O que havia dentro do farol? Por que o acampamento foi instalado na floresta, longe do farol, mas bastante próximo da torre (que, é claro, não existia no mapa) — e ele sempre tinha sido ali? O que havia além do mapa? Depois de descobrir a extensão da sugestão hipnótica que nos fora imposta, percebi que o foco no mapa podia ser ele próprio uma espécie de pista embutida. Que se não fazíamos perguntas era porque tínhamos sido condicionadas a não fazê-las. Que o farol, fosse sua representação ou o farol real, podia ser um gatilho subconsciente para uma sugestão hipnótica — e que ele podia também ter sido o epicentro daquilo que se espalhara para se tornar a Área X.
Minha preparação a respeito da ecologia daquele lugar tivera um foco igualmente limitado. Passei a maior parte do tempo me familiarizando com ecossistemas de transição, com a flora e a fauna, e a polinização cruzada que eu deveria encontrar. Mas também recebi um bom reforço na área de fungos e liquens, a qual, à luz daquelas palavras escritas na parede, parecia ser o verdadeiro propósito de todo aquele estudo. Se o mapa só servia para nos enganar, então a intenção da pesquisa ecológica tinha sido, no fim das contas, me preparar bem. A não ser que eu estivesse ficando paranoica. Mas, se não estivesse, isso queria dizer que eles sabiam a respeito da torre, talvez desde a primeira expedição.
A partir daí minha suspeita aumentou. Tínhamos passado por um treinamento rígido de sobrevivência e uso de armas, tão exaustivo que muitas noites íamos direto para nossas camas, que ficavam em alojamentos separados. Mesmo nas raras ocasiões em que treinávamos juntas, estávamos sempre fazendo algo diferente. Eles retiraram nosso nome a partir do segundo mês, arrancaram-no de nós. Os únicos nomes se referiam a coisas da Área X, e somente em termos gerais. Isto, também, era um meio de desviar nossa atenção e garantir que ninguém fizesse certas perguntas que só podiam ser formuladas por meio do conhecimento de detalhes específicos. Mas detalhes específicos úteis, e não, por exemplo, que existiam seis espécies de serpentes venenosas na Área X. Era uma hipótese ousada, é verdade, mas eu não estava disposta a descartar mesmo a hipótese mais improvável.
Quando ficamos prontas para cruzar a fronteira, sabíamos tudo... e não sabíamos nada.
A psicóloga não estava lá quando emergimos piscando, ofuscadas pelo sol, arrancando nossas máscaras e respirando o ar puro. Tínhamos nos preparado para qualquer tipo de situação, mas não para a ausência dela. Isso nos deixou desorientadas por algum tempo, naquele dia tão normal, o céu de um azul muito brilhante, o renque de árvores projetando sombras compridas. Retirei meus protetores de ouvido e descobri que não conseguia escutar mais as pulsações do coração da torre. Foi desconcertante como aquilo que tínhamos visto lá embaixo podia coexistir com as coisas mundanas. Era como se tivéssemos subido muito depressa depois de um mergulho em grandes profundezas, mas os sintomas da descompressão vinham da lembrança daquelas criaturas.
Continuamos examinando os arredores em busca da psicóloga, certas de que ela estava se escondendo, e meio que esperando encontrá-la, porque ela certamente teria uma explicação. Depois de algum tempo, se tornou uma obsessão ficar procurando sempre na mesma área em volta da torre. Mas por quase uma hora não conseguimos parar.
Por fim tive que admitir a verdade.
— Ela foi embora.
— Talvez tenha voltado ao acampamento — disse a topógrafa.
— Concorda que a ausência dela é um indício de culpa? — perguntei.
A topógrafa cuspiu na grama, olhando-me de perto.
— Não, não concordo. Talvez alguma coisa tenha acontecido com ela. Talvez tenha precisado voltar ao acampamento.
— Você viu as pegadas. Viu o corpo.
Ela fez um gesto com o rifle.
— Vamos para o acampamento.
Eu não conseguia decifrar o que ela estava pensando. Não sabia se estava desconfiando de mim ou apenas sendo cautelosa. A volta à superfície a tinha deixado mais corajosa, em todo caso, e eu a preferia insegura.
Mas, ao chegarmos ao acampamento, um pouco da coragem se esvaiu. A psicóloga não estava lá. Não apenas não estava, como tinha levado consigo metade dos nossos suprimentos e a maior parte das armas. Ou os enterrara em algum lugar. Mas agora tínhamos certeza de que estava viva.
Vocês precisam entender como eu me sentia naquele momento, como a topógrafa deve ter se sentido: éramos cientistas, treinadas para observar os fenômenos da natureza e os resultados da atividade humana. Não recebêramos treinamento para confrontar o desconhecido. Em situações fora do comum podemos encontrar conforto até na presença de alguém que consideramos um inimigo. Tínhamos chegado às proximidades de alguma coisa inaudita, e com menos de uma semana de missão perdemos não apenas a linguista, ainda na fronteira, mas nossa antropóloga e nossa psicóloga.
— Está bem, desisto — disse a topógrafa, jogando o rifle no chão e afundando em uma cadeira diante da barraca da antropóloga, enquanto eu vasculhava lá dentro. — Vou acreditar em você por enquanto. Vou acreditar porque de fato não tenho escolha. Não tenho nenhuma teoria melhor. O que faremos agora?
Não encontrei pistas na barraca da antropóloga. O horror do que havia acontecido com ela ainda me afetava. Ser compelida a ir de encontro à própria morte. Se minha hipótese estivesse correta, a psicóloga era uma assassina, muito mais do que o que quer que tenha matado a antropóloga.
Como não respondi à topógrafa, ela repetiu a pergunta com ênfase ainda maior:
— Então, que diabos vamos fazer agora?
Saindo da barraca, respondi:
— Vamos analisar as amostras que colhi, revelar as fotos e examiná-las. E amanhã provavelmente voltaremos à torre.
A topógrafa deu uma risada áspera enquanto lutava para encontrar as palavras. Por alguns segundos seu rosto deu a impressão de que iria se partir, talvez pela tensão de ter que combater uma sugestão hipnótica. Por fim ela conseguiu falar:
— Não, não vou voltar para aquele lugar. E é um túnel, não uma torre.
— O que quer fazer, então? — perguntei.
Como se tivesse conseguido romper alguma barreira, suas palavras vieram mais rápidas, mais determinadas.
— Vamos voltar para a fronteira e aguardar a extração. Não temos recursos para continuar, e, se o que disse é verdade, a psicóloga está por aí, agora, planejando alguma coisa, mesmo que seja apenas a desculpa que irá nos contar. E se não for o caso, se estiver morta ou ferida porque alguma coisa a atacou, é mais uma razão para cairmos fora daqui.
A topógrafa tinha acendido um cigarro, um dos poucos que nos tinham permitido trazer. Soprou duas compridas colunas de fumaça pelo nariz.
— Não estou pronta para voltar — respondi. — Ainda não. — Não estava nem um pouco pronta para isso, mesmo depois do que acontecera.
— Você prefere este lugar, não é? — disparou a topógrafa. Não parecia uma pergunta; sua voz estava impregnada de uma espécie de pena ou nojo. — Você acha que isso vai durar muito? Vou lhe dizer, mesmo em manobras militares planejadas para simular resultados negativos, vi chances melhores do que as nossas aqui.
Ela estava se deixando levar pelo medo, mesmo que tivesse razão. Decidi empregar as táticas de adiamento usadas pela psicóloga.
— Vamos dar uma olhada nas amostras que coletamos, e então decidir o próximo plano de ação. Você pode muito bem ir para a fronteira amanhã.
Ela deu outro trago no cigarro, enquanto digeria aquilo. A fronteira ainda estava a quatro dias de caminhada.
— É verdade — concordou, cedendo por enquanto.
Não falei o que estava pensando: que talvez não fosse tão simples. Que ela podia cruzar a fronteira apenas no sentido abstrato, como meu marido fizera, mas desprovida daquilo que a tornava um indivíduo. Mas não quis que ela achasse que não tinha saída.
* * *
Passei o resto da tarde examinando amostras ao microscópio, na mesa improvisada diante da minha barraca. A topógrafa ocupou-se em revelar as fotos na barraca que também servia de câmara escura, um processo frustrante para quem estava acostumada a baixar imagens digitais. Depois, enquanto as fotos secavam, ela voltou a investigar os restos dos mapas e dos documentos que a expedição anterior tinha deixado no acampamento.
Minhas amostras contavam uma série de piadas obscuras com desfechos que eu não compreendia. As células da biomassa que formava as palavras escritas na parede tinham uma estrutura pouco usual, mas ainda nos limites do aceitável. Ou talvez tais células fossem uma imitação magnífica de certos organismos saprotróficos. Fiz uma anotação mental para recolher uma amostra do que havia na parede por trás das palavras mais tarde. Eu não fazia ideia da profundidade a que os filamentos tinham penetrado, ou se havia nódulos por baixo e aqueles filamentos eram apenas sentinelas.
A amostra de tecido da criatura em forma de mão resistiu a qualquer interpretação, e isso por si só já era estranho, mas não me esclareceu em nada. Principalmente porque não encontrei células na amostra, apenas uma forma sólida de cor âmbar com bolhas de ar no interior. Durante todo o tempo, interpretei aquilo como uma amostra contaminada ou indício de que aquele organismo se decompunha muito depressa. Outra ideia só me ocorreu quando já era tarde para testá-la: a de que eu, tendo absorvido esporos daquele organismo, estava provocando alguma reação nas amostras. Não tinha acesso a instalações médicas que pudessem diagnosticar mudanças no meu corpo e na minha mente desde que fui exposta.
Por fim, havia a amostra recolhida pela antropóloga. Eu a deixara por último por motivos óbvios. Pedi à topógrafa que seccionasse um trecho, pusesse na lâmina e escrevesse o que via no microscópio.
— Por quê? — perguntou. — Por que precisa de mim para fazer isso?
Hesitei.
— Hipoteticamente... poderia haver contaminação.
Que rosto duro o dela, os dentes trincados.
— Hipoteticamente, por que você estaria mais, ou menos, contaminada do que eu?
Dei de ombros.
— Nenhum motivo em particular. Em todo caso, fui a primeira a encontrar as palavras na parede.
Ela me olhou como se eu estivesse dizendo absurdos, e deu uma risada áspera.
— Estamos muito mais envolvidas do que isso. Acha mesmo que aquelas máscaras que usamos nos protegeram de qualquer coisa que possa existir lá embaixo?
Ela estava errada — pelo menos eu achava que estava —, mas não a corrigi. As pessoas simplificam ou trivializam dados por todo tipo de motivo.
Não havia mais nada a dizer. Ela voltou às suas tarefas enquanto eu me concentrava no microscópio, examinando a amostra daquilo que tinha matado a antropóloga. A princípio não sabia o que estava vendo, porque era muito inesperado. Tecido cerebral — e não um tecido cerebral qualquer. As células eram extraordinariamente humanas, mas com algumas irregularidades. Meu pensamento na hora foi de que a amostra tinha sido contaminada, mas não pela minha presença: as anotações da topógrafa descreviam exatamente o que eu via, e quando ela voltou a examinar as amostras mais tarde, confirmou que não tinham mudado.
Continuei perscrutando pelas lentes do microscópio, erguendo a cabeça de tempos em tempos para depois espiar novamente, como se não pudesse ver corretamente a amostra. Então parei e olhei fixamente para ela até se tornar apenas uma série de floreios e círculos. Aquilo era de fato humano? Estaria fingindo ser humano? Como já falei, havia irregularidades. E como a antropóloga tinha conseguido recolher aquela amostra? Tinha apenas caminhado na direção da coisa com uma colherinha de sorvete e perguntado: “Posso fazer uma biópsia do seu cérebro?”. Não, a amostra tinha que vir das margens, do exterior. Não podia ser tecido cerebral, o que significava que certamente não era humano. Eu me senti desorientada, perdida, mais uma vez.
Foi então que a topógrafa veio até mim e jogou as fotos reveladas na minha mesa.
— Inúteis — disse ela.
Cada foto das palavras na parede era um caos de cores brilhantes e desfocadas. Cada foto de qualquer outra coisa além das palavras tinha saído um breu total. As poucas fotos restantes estavam também fora de foco. Eu sabia que isso se devia à respiração lenta a contínua das paredes, as quais deviam estar emitindo também algum tipo de calor ou outro agente que pudesse causar tal distorção. Esse pensamento me fez lembrar de que eu não tinha recolhido amostras da parede. Eu havia reconhecido que as palavras eram organismos. Sabia que as paredes também o eram, mas minha mente ainda registrava paredes como algo inerte, parte de uma estrutura. Para que tirar amostras delas?
— Eu sei — disse a topógrafa quando xinguei em voz baixa, mas sem me entender. — Alguma sorte com as amostras?
— Não. Nenhuma — falei, ainda olhando as fotos. — Algum resultado com os mapas e os documentos?
A topógrafa fez um ruído de insatisfação.
— Nem uma coisinha. Nada. Exceto que todos parecem ter uma fixação pelo farol: observando o farol, indo para o farol, morando no maldito farol.
— Então não temos nada.
Ela ignorou o que eu falara e perguntou:
— O que faremos agora?
Era nítido que ela detestava perguntar aquilo.
— Vamos jantar — propus. — Depois faremos uma busca no perímetro do acampamento para ter certeza de que a psicóloga não está escondida no mato. E pensaremos no que faremos amanhã.
— Vou lhe dizer uma coisa que não faremos amanhã. Não vamos voltar àquele túnel.
— Torre.
Ela me encarou, irritada.
Não fazia sentido ficar discutindo.
* * *
Ao anoitecer, o gemido já familiar chegou aos nossos ouvidos vindo do pântano de água salgada, enquanto comíamos junto à fogueira. Quase não o notei, de tão concentrada que estava na refeição. A comida estava deliciosa, e eu não sabia por quê. Devorei tudo, repeti o prato, e enquanto isso a topógrafa, perplexa, apenas me observava. Tínhamos pouca coisa, ou nenhuma, a dizer à outra. Conversar significaria fazer planos, e nada que eu quisesse planejar seria do agrado dela.
O vento ficou mais forte, e começou a chover. Eu via cada gota caindo como um diamante líquido e facetado, perfeito, refratando a luz mesmo com o céu nublado, e podia sentir o cheiro do mar e visualizar as ondas arrebentando na praia. O vento parecia uma coisa viva; entrava por cada um dos meus poros e trazia consigo um cheiro forte de terra e de juncos. Eu tinha tentado ignorar aquela mudança quando estivera no espaço confinado da torre, mas os meus sentidos ainda pareciam extremamente sensíveis e aguçados. Ainda estava me adaptando, mas em momentos assim eu me lembrava de que no dia anterior eu era outra pessoa.
Montamos guarda em turnos alternados. Perder um pouco de sono parecia menos imprudente do que permitir que a psicóloga se infiltrasse entre nós de surpresa; ela sabia a localização de todos os alarmes que havíamos colocado em volta do acampamento, e não tínhamos tido tempo de desarmá-los e mudá-los de lugar. Deixei que a topógrafa ficasse com o primeiro turno de vigia, como prova de boa-fé.
No meio da noite, ela veio me despertar para meu turno, mas eu já estava acordada, por causa dos trovões. Resmungando, ela foi direto para a cama. Duvido que confiasse em mim; acho que só não conseguia manter os olhos abertos nem por mais um segundo, depois de um dia tão desgastante.
A chuva aumentou de intensidade. Não tive receio de que nos desabrigasse: aquelas barracas eram as mesmas usadas pelos militares, seriam capazes de aguentar qualquer coisa mais fraca que um furacão, mas, se eu ia ter que ficar acordada, de qualquer maneira, preferia sentir a tempestade. Portanto, fui para o lado de fora, no espaço fustigado pela chuva e pelas fortes rajadas de vento. Já podia ouvir a topógrafa roncando em sua barraca; ela provavelmente já dormira em noites muito piores do que aquela. As luzes de emergência esmaecidas brilhavam nos limites do acampamento, deixando as barracas em um triângulo de sombras. Até mesmo a escuridão me parecia uma coisa viva, rodeando-me como algo sólido. Não posso dizer que sua presença fosse sinistra.
Naquele instante senti como se tudo não passasse de um sonho — o treinamento, minha vida anterior, o mundo que deixei para trás. Nada tinha importância. Só me importava aquele lugar, aquele momento, e isso não fora imposto pela hipnose da psicóloga. Arrebatada por aquela emoção tão poderosa, fiquei virada na direção do mar, olhando através dos espaços irregulares entre as árvores. Ali avultava uma escuridão ainda mais densa, a confluência entre a noite, as nuvens e o oceano. Um lugar mais além, outra fronteira.
E então, no meio da escuridão, eu vi: um lampejo de luz alaranjada. Só uma mancha luminosa, bem alta no céu. Isso me deixou intrigada, até que percebi que deveria ter origem no farol. Enquanto olhava, aquele clarão se moveu minimamente para a esquerda e para cima até sumir de novo, reapareceu após alguns minutos bem mais acima e depois apagou-se de vez. Esperei que a luz voltasse, mas não aconteceu. Por alguma razão, quanto mais a luz demorava a reaparecer, mais inquieta eu ficava, como se, naquele lugar estranho, uma luz — qualquer tipo de luz — fosse um sinal de civilização.
Tinha desabado uma tempestade naquele derradeiro dia em que fiquei sozinha com meu marido depois que ele voltou da expedição. Um dia com uma claridade de sonho, de alguma coisa que era estranha, mas também familiar; uma rotina familiar, mas uma calma estranha, mais até do que aquela à qual eu tinha me acostumado antes de ele partir.
Naquelas últimas semanas antes da expedição, tínhamos discutido... violentamente. Eu o empurrei na parede, atirei coisas nele. Tentei de tudo para quebrar aquela decisão resoluta que, agora, eu sabia ter sido provavelmente imposta a ele por sugestão hipnótica.
— Se você for — eu lhe dissera —, talvez não volte, e não pode ter certeza de que estarei esperando quando você voltar.
Isso o fez rir, o que me enfureceu, e então ele falou:
— Ah, você esteve esperando por mim esse tempo todo? Será que eu já cheguei?
A partir daí ele não parou mais, e qualquer tipo de contestação era respondida com sarcasmo — o que seria perfeitamente natural, com ou sem sugestão hipnótica. Tinha tudo a ver com sua personalidade concentrar sua atenção em alguma coisa e ir em busca dela, sem ligar para as consequências. Deixar um impulso se transformar em uma compulsão, principalmente se achasse que estava contribuindo para uma causa maior. Essa era uma das suas razões para ter ficado na marinha por mais um período.
Nosso casamento estava se desfazendo havia algum tempo, em parte porque ele era do tipo gregário e eu preferia o isolamento. Aquilo já fora uma fonte de força para nossa relação, mas não mais. Eu não o achava apenas bonito, eu admirava sua natureza confiante e extrovertida, sua necessidade de estar rodeado de pessoas — reconheci isso como um contraponto saudável à minha própria personalidade. Ele também tinha um ótimo senso de humor, e, na primeira vez em que saímos, em um parque cheio de gente, ele contornou meu jeito reticente fingindo que éramos uma dupla de detetives investigando um caso e estávamos ali para observar um suspeito. O que nos levou a inventar fatos sobre a vida das pessoas que nos cercavam, e depois sobre nós mesmos.
No começo, devo ter parecido misteriosa aos seus olhos, meu jeito reservado, minha necessidade de estar só, mesmo depois que ele julgou ter ganhado minha confiança. Ou eu era um enigma a ser decifrado, ou ele achava que assim que me conhecesse melhor teria acesso a um novo lugar, um lugar lá no fundo onde vivia outra pessoa dentro de mim. Durante uma de nossas brigas, ele admitiu isso — tentou explicar que ter se “voluntariado” para a expedição era um sinal do quanto eu o tinha afastado, e depois voltou atrás, envergonhado. Fui bem direta para que não houvesse dúvida: essa pessoa que ele queria encontrar não existia. Eu era o que parecia ser pelo lado de fora. Isso não iria mudar, nunca.
No começo do namoro, eu contara ao meu marido a respeito da piscina, quando estávamos na cama, lugar onde passávamos grande parte do tempo naquela época. Ele tinha ficado fascinado, talvez até pensando que eu faria revelações ainda mais extraordinárias. Descartou logo as partes que falavam da minha infância solitária, e focou sua atenção na piscina propriamente dita.
— Eu teria brincado de velejar.
— Barcos capitaneados pelo Velho Afundão, sem dúvida — repliquei. — E tudo seria feliz e deslumbrante.
— Não. Porque eu iria achar você carrancuda, teimosa e sinistra. Bastante sinistra.
— Pois eu iria achar você frívolo, e torceria para que as tartarugas virassem seu barco.
— Se fizessem isso, eu teria apenas que reconstruí-lo para que ficasse melhor ainda, e enquanto isso contaria às pessoas sobre a garotinha sinistra que conversava com as rãs.
Eu nunca tinha conversado com as rãs; eu sentia desprezo por quem antropomorfiza um animal.
— E o que mudaria, se não tivéssemos gostado um do outro quando crianças? — perguntei.
— Ah, eu iria gostar de você mesmo assim — disse ele, sorrindo. — Você iria me deixar fascinado, e eu iria atrás de você não importa aonde. Sem hesitar.
E assim nos encaixávamos, naquele tempo, à nossa maneira oblíqua. Estávamos juntos porque éramos opostos, e nos orgulhávamos da ideia de que isso nos fazia um casal mais forte. Nós nos deleitávamos com esse conceito; tanto, e por tanto tempo, que isso se tornou uma onda que só veio a se quebrar depois que já tínhamos nos casado... e começou a nos destruir com o passar do tempo, daquele jeito tão deprimente, tão familiar.
Mas nada disso — o bom ou o ruim — teve importância quando ele voltou da expedição. Não fiz perguntas, não trouxe de volta nenhuma de nossas velhas discussões. Quando acordei ao lado dele na manhã seguinte à sua volta, eu sabia que nosso tempo juntos estava se esgotando.
Fiz café da manhã para ele, enquanto lá fora a chuva caía com força, e raios riscavam o céu bem perto dali. Ficamos sentados à mesa da cozinha, de onde se tinha uma bela vista do exterior, por causa das portas envidraçadas que nos mostravam o quintal inteiro, e tivemos uma conversa absurdamente educada a respeito de ovos e bacon. Ele elogiou o formato do comedouro de pássaros cinzento que eu tinha instalado, e a pequena vasilha de água, agora toda borrada pelos pingos de chuva. Perguntei-lhe se tinha dormido bem, e como se sentia. Fiz até perguntas sobre a noite da véspera, sobre se caminhada de volta tinha sido muito cansativa, por exemplo.
— Não — disse ele —, não tive nenhum trabalho. — E fez luzir uma imitação do seu velho sorriso irritante.
— Quanto tempo levou? — perguntei.
— Tempo nenhum.
Não consegui ler sua expressão, mas naquele seu vazio senti algo lamentoso, algo que estava preso lá no fundo e que tentava se comunicar, sem conseguir. Meu marido nunca tinha sido lamentoso nem melancólico em todo o tempo em que estive com ele, e aquilo me amedrontou um pouco.
Ele perguntou como andava a minha pesquisa, e eu lhe contei algumas das novidades. Naquela época, eu trabalhava para uma companhia voltada para a criação de produtos naturais capazes de decompor plástico e outras substâncias não biodegradáveis. Era um tédio. Antes disso eu tinha feito pesquisa de campo, beneficiada por várias bolsas. E antes, fui uma ambientalista radical, participando de protestos e trabalhando em uma organização sem fins lucrativos recrutando doadores por telefone.
— E seu trabalho? — perguntei, meio que sondando, sem saber quantas voltas precisaria dar, pronta a fugir do mistério ao primeiro sinal de alarme.
— Ah, você sabe — respondeu ele, como se tivesse ficado longe apenas algumas semanas, como se eu fosse uma colega de trabalho, não sua amante. Sua esposa. — O mesmo de sempre. Nada novo.
Ele deu um longo gole no suco de laranja, saboreando-o de tal maneira que por um ou dois minutos parecia que nada mais existia senão o prazer que ele experimentava. Depois, começou a fazer perguntas sobre outros melhoramentos que eu fizera na casa.
Após o café da manhã, nos sentamos na varanda, vendo a chuva cair e as poças aumentarem na horta. Lemos durante algum tempo, depois voltamos para o quarto e fizemos amor. Era uma espécie de foda repetitiva, meio em transe, confortável apenas porque fomos impelidos pelo tempo lá fora. Se até aquele instante eu ainda estava me enganando, depois não podia mais afirmar que meu marido estava totalmente presente.
Então veio o almoço, em seguida assistimos à tevê — encontrei a reprise de uma corrida de barcos para ele — e conversamos sobre amenidades. Ele perguntou por alguns amigos, mas eu não sabia. Nunca os via. Nunca tinham sido amigos meus, na verdade; eu não cultivava amizades, só herdava as do meu marido.
Tentamos jogar um jogo de tabuleiro e demos risadas com algumas perguntas bobas. Então, lacunas esquisitas no seu conhecimento começaram a aparecer, e paramos de jogar, deixando que uma espécie de silêncio nos envolvesse. Ele leu o jornal, se atualizou com algumas de suas revistas prediletas, acompanhou o noticiário. Ou talvez estivesse apenas fingindo que fazia todas essas coisas.
Quando a chuva parou, acordei de um cochilo no sofá e descobri que ele não estava mais na sala. Tentei não entrar em pânico quando chequei todos os aposentos da casa e não o vi. Saí e acabei encontrando-o lá fora, na parte lateral da casa. Estava parado diante do barco que comprara alguns anos antes, e que nunca tínhamos conseguido acomodar dentro da garagem. Era apenas uma lancha, com cerca de seis metros de comprimento, mas ele a adorava.
Quando me aproximei e lhe dei o braço, vi que ele tinha uma expressão perplexa no rosto, quase desorientada, como se fosse capaz de lembrar que o barco era importante mas não soubesse por quê. Não percebeu minha presença, ficou apenas fitando o barco com um olhar cada vez mais intenso e vazio. Eu podia ver seu esforço para tentar lembrar alguma coisa importante; apenas não percebi, a não ser muito depois, que isso tinha a ver comigo. Ele poderia ter me dito alguma coisa vital, ali, naquele momento, se pelo menos pudesse lembrar o que era. Então ficamos ali juntos, e embora eu pudesse sentir o calor e o peso do seu corpo junto ao meu, o som regular de sua respiração, estávamos em mundos diferentes.
Depois de algum tempo, não aguentei mais a completa desorientação e a impessoalidade de sua angústia, de seu silêncio. Levei-o de volta para dentro de casa. Ele não resistiu. Não protestou. Não tentou olhar para o barco por cima do ombro. Acho que foi então que tomei minha decisão. Se ao menos ele tivesse olhado para trás. Se tivesse resistido, mesmo que por um momento, tudo teria sido diferente.
Na hora do jantar, quando ele estava terminando de comer, vieram buscá-lo, em quatro ou cinco carros sem nenhuma identificação e uma van. Não chegaram com violência e gritos nem exibindo algemas e armas de fogo. Em vez disso, abordaram-no com respeito, quase com medo: com aquela delicadeza cuidadosa que se pode esperar de alguém manuseando uma bomba que não explodiu. Ele os acompanhou sem reclamar, e eu deixei que levassem aquele estranho da minha casa.
Não poderia impedi-los, mas também não quis. Naquelas poucas horas finais eu tinha convivido com meu marido em uma espécie de pânico crescente, cada vez mais convencida de que o que quer que tivesse acontecido na Área X o tinha transformado em uma casca vazia, em um autômato repetindo gestos sem sentido. Alguém que eu não conhecia. A cada gesto atípico, a cada palavra, ele ia se afastando mais e mais da pessoa que eu conhecera, e, apesar de tudo que havia se passado entre nós, preservar a lembrança dele era algo importante para mim. Foi por isso que liguei para o número especial que nos tinham dado para o caso de uma emergência: eu não sabia o que fazer com ele, não podia coexistir com ele naquele estado alterado. Ao vê-lo partir, senti, para ser honesta, uma espécie de alívio, não culpa ou traição. O que mais eu poderia ter feito?
Como já disse, fiquei visitando-o nas instalações médicas até o fim. Mesmo sob hipnose naquelas entrevistas gravadas, ele não tinha nada de novo a dizer, a não ser que isso tenha sido escondido de mim. O que mais recordo é a tristeza repetitiva de suas palavras: “Eu estou andando eternamente ao longo da trilha entre a fronteira e o acampamento. Leva um tempo enorme, e sei que vou levar ainda mais tempo para voltar. Não há ninguém comigo. Estou sozinho. As árvores não são árvores e os pássaros não são pássaros e eu não sou eu, mas apenas alguma coisa que está andando há muito, muito tempo...”
Foi esta a única coisa que descobri nele depois de seu retorno: uma profunda, interminável solidão, como se ele tivesse recebido um dom e não soubesse como usá-lo. Um presente venenoso, que acabou por matá-lo. Mas seria capaz de me matar também? Essa foi a pergunta que se insinuou em minha mente quando olhei nos olhos dele nas últimas vezes, desejando adivinhar seus pensamentos, sem conseguir.
Enquanto eu prosseguia com meu trabalho cada vez mais repetitivo em um laboratório esterilizado, continuei pensando na Área X, e em como eu nunca saberia o que estava acontecendo lá. Ninguém era capaz de me dizer, e nenhum relatório podia suprir a experiência direta. Portanto, meses depois da morte do meu marido, eu me apresentei como voluntária para uma expedição na Área X. Até então, nenhum cônjuge de um ex-membro tinha participado. Acho que me aceitaram em parte porque queriam saber se essa conexão poderia fazer alguma diferença. Acho que me aceitaram a título de experiência. Mas, mesmo assim, talvez desde o começo eles tivessem a expectativa de que eu me apresentaria.
Pela manhã, parou de chover, e o céu estava azul e quase sem nuvens. Somente as folhas de pinheiro caídas nas barracas, as poças de lama e os galhos pelo chão sinalizavam a tempestade da noite anterior. O brilho que infectara meus sentidos estava se espalhando pelo meu peito; não tenho outra forma de descrever o que sentia. Dentro de mim havia um brilho, uma espécie de formigamento de energia e de expectativa que combatia minha sonolência. Isso fazia parte da mudança? Mesmo assim, não tinha importância — eu não tinha meios de combater o que acontecia em mim.
Eu também precisava tomar uma decisão, e estava dividida entre o farol e a torre. Parte daquele meu brilho queria voltar imediatamente à escuridão, e essa lógica se relacionava à valentia, ou à falta dela. Mergulhar direto na torre, sem pensar, sem planejar, seria um ato de fé, de pura resolução ou impaciência, sem nada mais por trás. Mas eu também sabia que alguém tinha ido ao farol na noite anterior. Se a psicóloga tivesse se refugiado ali, e eu a encontrasse, então poderia obter mais informações sobre a torre antes de voltar a explorá-la. Isso me parecia cada vez mais importante, mais ainda do que na noite anterior, porque o número de incógnitas apresentadas pela torre tinha se multiplicado. Portanto, na hora em que voltei a conversar com a topógrafa, já havia me decidido pelo farol.
A manhã tinha o cheiro e a sensação de um novo começo, mas não iria ser assim. Se a topógrafa não queria de modo algum voltar à torre, também não demonstrou qualquer interesse pelo farol.
— Você não quer descobrir se a psicóloga está lá?
Ela me olhou como se eu tivesse acabado de dizer uma coisa idiota.
— Escondida em um lugar com visibilidade em todas as direções? Onde nos disseram haver armas estocadas? Prefiro me arriscar aqui. Se for esperta, fará o mesmo. Pode acabar “descobrindo” que não gosta de um buraco de bala na cabeça. Além disso, ela pode estar em qualquer outro lugar.
Sua teimosia me fez vacilar. Eu não queria que nos separássemos, por motivos puramente práticos — de fato, tinham nos dito que as expedições anteriores deixavam armas estocadas no farol — e porque eu acreditava que era mais provável que ela tentasse voltar para casa se eu não estivesse ali.
— É o farol ou a torre — retruquei, tentando contornar o problema. — E seria melhor para nós duas se conseguíssemos encontrar a psicóloga antes de voltar à torre. Ela viu o que matou a antropóloga. Sabe mais do que nos contou.
A ideia que não expressei era a de que, talvez, deixando passar um ou dois dias, qualquer que fosse o ser que habitava a torre, traçando devagar aquelas palavras na parede, teria desaparecido, ou descido até um ponto tão adiante que nunca o alcançaríamos. Mas isso me trouxe à mente a imagem perturbadora de uma torre infinita, com infinitos andares descendo até o fundo da terra.
A topógrafa cruzou os braços.
— Você não entende mesmo, não é? A missão acabou.
Ela estava com medo? Ou apenas não gostava de mim o bastante para concordar? Qualquer que fosse a razão, sua opinião me irritou, bem como a expressão presunçosa em seu rosto.
Naquele instante, acabei fazendo algo que agora lamento. Falei:
— Não há recompensa no risco de descer a torre agora.
Achei que tinha sido sutil ao formular um dos comandos hipnóticos usados pela psicóloga, mas o rosto da topógrafa estremeceu em uma espécie de desorientação momentânea. Quando aquilo passou, sua expressão me mostrou que ela percebera o que eu tentara fazer. Não era sequer uma expressão de surpresa; parecia mais que eu tinha apenas confirmado uma noção que ela estava formando aos poucos e que agora se cristalizava. Foi quando descobri que as sugestões hipnóticas só funcionavam quando eram usadas pela psicóloga.
— Você faria qualquer coisa para conseguir o que quer, não é? — disparou a topógrafa.
Mas o fato era: ela tinha o rifle. Que arma eu tinha, na verdade? E convencera a mim mesma de que só escolhera aquela linha de ação para que a morte da antropóloga não fosse em vão.
Como não respondi, ela suspirou, e disse, enfim, com a voz cansada:
— Sabe, finalmente descobri, quando estava revelando essas fotos inúteis. O que mais me incomoda. Não é aquilo no túnel, ou como você se comporta, ou qualquer coisa que a psicóloga tenha feito. É este rifle que estou segurando. Este maldito rifle. Eu o desmontei para limpá-lo e descobri que é feito de partes com mais de trinta anos de idade, misturadas. Nada do que trouxemos pertence ao presente. Nem as nossas roupas, nem os sapatos. Tudo é lixo velho. Porcarias recicladas. Estamos vivendo no passado esse tempo todo. Em uma espécie de reconstituição. E por quê? — Ela emitiu um som de desprezo. — Você nem sabe o porquê.
Era o máximo que ela já me dissera até então. Tive vontade de responder que aquela informação se colocava como uma das menores surpresas na hierarquia de tudo que tínhamos descoberto. Mas não o fiz. Tudo que me restava era ser sucinta.
— Você ficará aqui até que eu volte? — perguntei.
Esta era a questão primordial, e não gostei da rapidez com que veio a resposta, nem do tom.
— O que você preferir.
— Não prometa nada que não queira cumprir.
Há muito tempo eu tinha parado de acreditar em promessas. Imperativos biológicos, sim. Fatores ambientais, sim. Promessas, não.
— Foda-se — disse ela.
E assim nos despedimos — ela reclinada naquela cadeira velha, segurando o rifle, enquanto eu saía para descobrir a origem da luz que vira na noite anterior. Levei comigo uma mochila cheia de comida e água, bem como duas pistolas, equipamento para colher amostras e um dos microscópios. Por alguma razão, levar o microscópio me dava segurança. E, não importa quanto eu tivesse insistido com a topógrafa para que me acompanhasse, havia também parte de mim que agradecia a chance de explorar sozinha, de não depender de alguém, de não ter que me preocupar com alguém.
Olhei para trás umas duas vezes antes fazer a curva na trilha, e a topógrafa ainda estava ali sentada, fitando-me como um reflexo distorcido de quem eu fora poucos dias antes.