9.

O Blue Lamp

Attila me sacudiu quando chegamos a Tuzla.

— Hora de acordar.

Na curva de uma rua estreita com as dimensões de uma passagem construída originalmente para carroças, vi a placa do hotel. Dizia: BLUE LAMP, HOTEL BOUTIQUE. Attila foi na frente com a bagagem. A noite fria, por volta dos dez graus, fez com que eu me sentisse desperto. Havia um pequeno comércio na esquina que parecia uma loja de conveniência, e alguns jovens, usando jaquetas de couro justas, estavam parados à porta, sacudindo os cigarros uns para os outros e se provocando, como os jovens sempre fazem.

Ao entrarmos no lobby do hotel, Attila imediatamente começou uma animada conversa em bósnio com o jovem casal atrás do balcão.

— Eles disseram que eu sou o rei por aqui — disse Attila. — Você deveria se sentir honrado por eu carregar sua bagagem. — Ela me entregou seu cartão e me disse para ligar se precisasse de algo.

Assim que Attila saiu, detectei movimento à direita. Atrás de mim, havia um pequeno lounge com mesinhas de canto e poltronas de couro pretas. Não fiquei surpreso ao ver Goos com uma cerveja na mão, inclinando-a na minha direção. Depois de pegar a chave do quarto, afundei na poltrona ao lado dele. Ela aparentava o brilho e a suavidade da mobília da embaixada em Washington. Os bósnios pareciam gostar de couro.

— Bem-vindo — disse Goos.

— Estou em outro planeta — falei. A mistura de sono e jet lag fazia com que eu me sentisse como se metade do meu corpo ainda estivesse no condado de Kindle.

— Bebida? — perguntou Goos.

Um dos recepcionistas me serviu uma dose de uísque, pedida em silenciosa gratidão a Merriwell, que permanecia na minha mente após a conversa com Attila.

— Quem era o seu motorista? — perguntou Goos.

Ele riu quando eu disse o nome.

— Eu queria contratar uns caras para nos ajudar amanhã — comentou ele —, e todo mundo me mandou ligar para Attila. Tentei falar com ele o dia todo.

— Ela, na verdade.

Goos encarou a porta por onde Attila havia partido.

— Sério? — perguntou ele.

— Ela disse que você a enviou para me buscar.

— É mesmo? Não me lembro disso. Eu liguei para uma empresa de táxi.

— Acho que ela é a dona.

— Vou dizer uma coisa, parceiro: não vamos usá-la como intérprete. Aqueles garotos lá disseram “Você acha que é o rei por aqui, mas aí está você, carregando a bagagem desse cara”, e ele distorceu as coisas, dizendo que você deveria se sentir honrado. Ela — corrigiu-se Goos.

O Blue Lamp tinha uma aparência contemporânea e confortável, mas não luxuosa, com rodameios de mogno escuro e detalhes laminados brancos nos espaços compactos. Dava para ver uma pequena área para o café da manhã, com algumas mesas brancas, atrás de Goos. No balcão de canto da recepção, uma grande TV exibia um slide show de cenas bósnias: montanhas, a grande mesquita em Sarajevo e um antigo castelo romano em algum lugar perto de Tuzla. As mesmas imagens eram mostradas numa TV menor na parede atrás de nós.

Eu tinha mandado um e-mail para Goos durante o fim de semana, falando da ideia de usar a OTAN para obter os registros do Exército americano. Antes de partir de Haia, ele desenterrara o estatuto de forças a que Merry havia se referido. E começou a ler na tela do celular.

— “O Estado anfitrião e os Estados convidados devem auxiliar uns aos outros em todas as necessárias investigações de crimes”, blá-blá-blá, “inclusive na apresentação de evidências”. Blá-blá-blá.

— Isso é ótimo. Podemos pedir os documentos em nome dos bósnios.

Goos assentiu com a cabeça.

— É claro que os advogados vão fazer o que sempre fazem e vão dizer que as palavras não significam o que está escrito. Podem se passar dez anos antes de chegarmos perto desses papéis. Mesmo assim, foi uma boa ideia, Boom.

— Não foi minha — declarei.

Dadas as implicações legais, eu havia sido cuidadoso com o que escrevera a respeito da reunião com Merriwell. Goos se endireitou na poltrona quando contei que a orientação para procurar a OTAN tinha vindo do general.

— A outra coisa útil que consegui com o general — continuei — foi que ele não negou que os roma de Barupra ajudaram o Exército de algum modo na tentativa de capturar Kajevic. Attila falou que os rumores que rolavam diziam que os ciganos revelaram a localização dele. Mas isso não está fazendo sentido.

— Por quê?

— Bom, eu reli o arquivo sobre toda aquela confusão com Kajevic em Doboj enquanto estava no avião. E não consigo imaginar por que uns ciganos esfarrapados saberiam mais sobre Laza Kajevic que a inteligência da OTAN.

— Eu acho que é por isso que nos chamam de investigadores, Boom. — Goos sorriu.

Como eu, ele ficou confuso com a solicitude de Merriwell. Partilhei a teoria de Attila de que, após cair em desgraça, Layton Merriwell tinha ainda mais interesse em inocentar a si mesmo e aos seus soldados. Afastado da imprensa americana e de suas obsessões, Goos não sabia nada sobre o caso. Resumi a história e falei do jantar, que descrevi como um convite para nos comiserarmos juntos sobre as dificuldades enfrentadas por um divorciado de meia-idade. Aparentemente, eu não tinha falado muito com Goos sobre o fim do meu casamento, e ele reagiu encarando profundamente seu copo de cerveja.

— Eu nunca consegui entender o divórcio — comentou ele. — Não consigo entender como ele torna as coisas melhores.

Goos terminou a cerveja num único gole e ergueu um dedo para o recepcionista, pedindo outra. Estivera bebendo por tempo suficiente para ceder ao impulso confessional.

— São apenas fatos, parceiro. Sete bilhões de pessoas no mundo e eu acordo todos os dias com a mesma? Depois de algum tempo, qualquer um começa a se sentir preso. É só uma questão de como se reage a isso.

Eu entendia essa atitude, a abordagem fatalista do casamento. Eu e Ellen tínhamos sido incapazes de lidar com o tédio, que fora acompanhado, de ambos os lados, por um ressentimento incessante e destrutivo.

— Um camarada meu — continuou Goos — sempre diz que a cerveja é uma companhia melhor que qualquer mulher. Ela sempre está lá. Você sempre sabe como vai se sentir após uma, duas ou cinco. E você sempre vai se sentir melhor do que quando começou.

Ele deu um sorriso ambíguo ao fazer essa observação, enquanto um tumulto ocorria na entrada do hotel. Esma Czarni, seguida por um motorista se debatendo com duas malas grandes, chegou à recepção. Ela pagou ao motorista enquanto um dos jovens recepcionistas, que a chamou pelo nome, lhe dava as boas-vindas e se aproximava para ajudar com a bagagem. Esma não havia deixado a sofisticação de lado em prol da longa viagem. A gola de sua capa de chuva da Burberry estava erguida para protegê-la do frio, e um cachecol púrpura felpudo estava elegantemente dobrado sobre seus seios. A saia era curta o bastante para mostrar as pernas em reluzentes botas de salto alto.

Ela deu um sorriso esfuziante assim que me viu e se aproximou imediatamente.

— Bill!

Ela me deu os dois beijos europeus de costume, e eu a apresentei novamente a Goos. Ele nos informou sobre o cronograma para o dia seguinte.

— Estamos bebendo? — perguntou Esma, indicando nossos copos com uma mão cheia de pesados anéis de ouro que eu não havia notado antes.

Falei que o uísque tinha me deixado tonto e que estava pronto para ir dormir.

— Boa ideia — disse ela. — Para dizer a verdade, eu também estou cansada. Vou acompanhá-lo até lá em cima.

Goos, como sempre, disse que tomaria outra cerveja, embora tenha lançado um olhar para mim, rápido demais para interpretar.

Meu quarto ficava no que os europeus chamam de primeiro andar; o segundo para nós. Numa daquelas demonstrações europeias de consumo consciente que fazem com que fiquemos constrangidos com nosso desperdício, as lâmpadas fluorescentes no teto eram controladas por detectores de movimento e se acendiam conforme avançávamos, iluminando o corredor que levava até meu quarto. De pé no corredor, pedi a Esma que conversasse com Ferko mais uma vez, para ver se ele tinha alguma ideia de como alguém em Barupra poderia ter sabido onde Laza Kajevic estava escondido. Então, quando eu estava prestes a entrar no quarto, ela me olhou de cima a baixo.

— Estou feliz em te ver, Bill. Estive pensando em você.

— É bom te ver também, Esma.

Ela inclinou ligeiramente o rosto moreno e me lançou um olhar dissimulado, com seus olhos parecendo enormes nas sombras, sorrindo com malícia. O recado era como algo que meus professores no colégio gostavam de dizer: não banque o palhaço.

Esperei alguns segundos e então decidi, a despeito dos meus receios, que havia chegado a hora.

— Esma, eu estou tão cansado quanto você estava na noite em que nos conhecemos, e não lido tão bem quanto você com a falta de sono. Então, provavelmente vou dizer uma grande bobagem aqui e, se for o caso, peço desculpas. Mas, quando eu tinha uns 20 anos, descobri o que me pareceu uma verdade muito triste. Quando acho uma mulher imensamente atraente, outros homens também acham. O que significa que você não precisa que eu repita o que sem dúvida já ouviu milhares de vezes.

Ela abriu um grande sorriso, numa glamorosa exibição de dentes grandes e perfeitos.

— Algumas coisas jamais ficam batidas, Bill — retrucou ela.

Eu sorri também.

— Mas não pode acontecer nada aqui, Esma. — Movi a mão direita no espaço entre nós.

— Você se envolveu com alguém?

— Não é isso, Esma. Você é advogada de um cliente cujas alegações devo ser capaz de avaliar objetivamente, como promotor do caso.

— Ferko não é meu cliente. Fui indicada para ajudá-lo durante uma única audiência, que já passou.

— Se ele não é seu cliente, Esma, por que você está aqui? Além disso, as tecnicalidades não mudam as aparências. Você é uma advogada boa demais para não entender o que estou dizendo.

Como antes, o elogio a agradou, embora apenas brevemente.

— Não tenho certeza de que vejo as coisas da mesma forma, Bill. Estou tão consciente quanto você das regras profissionais. Mas achei que seríamos bons um para o outro.

— Não nesse momento, Esma. Quem nós somos no caso inevitavelmente iria se misturar ao que seríamos um para o outro.

Havia sido nessa autoilusão que Layton Merriwell, Bill Clinton e centenas de outros homens acreditaram e a razão pela qual as pessoas zombavam deles: o poder que se provara sedutor para certas mulheres não era realmente deles, mas sim um presente que lhes fora confiado temporariamente e com objetivos muito distintos.

Mas Esma balançou ligeiramente a cabeça.

— Eu não cheguei à mesma conclusão, Bill. Sim, o profissional afeta o pessoal. Mas não há nada falso a respeito disso. Será que eu me enganei em relação a você? Eu o vejo como um homem que abriu mão de uma vida confortável e foi para um lugar a milhares de quilômetros de distância para descobrir que suas energias estão devotadas a consertar grandes erros. Isso é muito atraente, você tem razão. Esse tipo de convicção é uma qualidade mais rara do que você imagina.

Enquanto ela falava, as luzes voltaram a se apagar. Nas sombras, fiquei subitamente consciente de seu perfume, um cheiro poderoso, cheio de doçura e sedução, que até então eu absorvera meramente como parte de sua presença extremamente sensual.

Eu sabia que Esma possuía um intelecto ágil demais para que eu a convencesse com argumentos. Então usei meu trunfo.

— Eu não posso, Esma. — Achei que estava falando por uma questão de princípios, mas, ao dizer essas palavras, tive uma estranha percepção da minha própria fraqueza. E percebi, mais uma vez, que sentia um pouco de medo de Esma.

Durante um instante, o hotel permaneceu imóvel a nossa volta, antes que uma porta desse uma batida forte no andar de baixo.

— Muito bem, Bill. Não vou forçar a barra. — Sob a luz débil, ela me encarou por mais um instante e então se aproximou para me dar um beijo no rosto, como havia feito no lounge, porém demorando-se um pouco mais. — Mas prevejo que, no futuro, você vai mudar de ideia.

— Você prevê? — A palavra me divertiu. — Você lê a sorte, Esma, como as mulheres ciganas nas carroças?

— Eu sou meio intuitiva. A maioria das mulheres roma é. Não ria. É verdade.

Assenti com a cabeça em vez de discordar.

— Eu certamente leio mentes. Posso ler a sua mente e sei o que você não diz e nem sabe que precisa dizer. — Ela falou com extrema seriedade, sem traço de ironia e de um modo bastante autoritário. — E prevejo que vai mudar de ideia. — Ela havia apoiado a mão no meu braço ao me beijar, mas a retirou.

— Talvez, Esma. Mas, para mim, infelizmente, isso vai ser num futuro distante.

Ela se virou, e, com seu movimento súbito, as luzes fluorescentes se acenderam de novo. Na dolorosa claridade, Esma deu um aceno elegante e se afastou.

Arrastei minha bagagem até o quarto. A porta se fechou atrás de mim, com um som definitivo e fatal. Sozinho após ter recuado, eu me senti pesaroso e desamparado, mas abri a mala para retirar as poucas coisas de que precisaria antes de dormir.

Durante toda a minha vida, meu inconsciente havia se expressado em canções. Eu habitualmente me pegava cantarolando por motivos que demorava a compreender. Enquanto guardava as roupas na cômoda, comecei a murmurar uma balada soul que Pete me apresentara anos antes. O título era a primeira linha do refrão, que se erguia em meio a grandes floreios de trompete. Cantarolei até me lembrar das palavras. A música se chamava “Don’t Make Me Do Wrong”.