10.
Barupra — 16 de abril
Às nove da manhã, chegamos à rocha amarela de Barupra. Viajando em comboio, havíamos seguido uma fila de carros da polícia bósnia, que tinha ficado a nossa espera do lado de fora do hotel. O capitão baixinho e barrigudo insistira, bastante animado, que o governo bósnio faria tudo o que fosse possível para ajudar o tribunal.
— Ajudar o caralho — disse Goos assim que fechamos a porta do pequeno Ford.
— O que você acha que eles estão fazendo?
— Estão nos vigiando, parceiro. Esse ainda é um país com facções dentro de facções. Existem três governos nacionais por aqui, e cada um desses caras se reporta a alguém diferente. — Goos trocou de marcha com certa ênfase e apontou para mim. — O que a advogada devia fazer era se livrar deles. Ferko não vai gostar de ficar no meio de tantos policiais.
Esma tinha dito a mesma coisa. A lealdade dos policiais bósnios era sempre duvidosa.
A polícia nos conduziu ao que parecia ser uma estrada secundária para sair da cidade. Subimos as colinas, percorrendo ruas residenciais que me faziam lembrar dos cânions a oeste de Los Angeles. Há gente rica por toda parte, e, em Tuzla, aquele parecia ser seu habitat. As estradas onde finalmente emergimos eram sinuosas, com vistas impressionantes da cidade surgindo ocasionalmente por entre árvores que começavam a secar. Após uns vinte minutos, chegamos ao vale ainda coberto de neve e passamos por fazendas e casinhas caiadas que poderiam ter sido o lar de João e Maria.
Após o Acordo de Dayton, os Estados Unidos estabeleceram uma base, com uma rede de seis campos, no planalto ao sul de Tuzla. Como era de imaginar, as instalações militares americanas ficavam na fronteira entre as áreas controladas por muçulmanos e croatas e o território que se tornaria o enclave autônomo da República Sérvia. A base aérea do Exército, em campo Comanche, incluía uma antiga pista para MiGs do Exército iugoslavo que, anos depois, tornou-se o aeroporto civil de Tuzla, ao qual, várias vezes por semana, chegavam os voos matinais de duas companhias aéreas.
A leste do campo Comanche, do outro lado das colinas, o campo Bedrock havia sido construído sobre os destroços de duas minas de carvão adjacentes. A escória amarronzada fora desbotada pelo sol e pelo vento até adquirir uma cor parecida com a de sementes de mostarda e formava uma pilha alta, criando uma saliência rochosa sobre o vale de Tuzla, a distância, e a mina de carvão Rejka, imediatamente abaixo. Era o tipo de posição elevada que todos os militares desde os romanos valorizavam muito, trocando a exposição à aridez dos elementos pela quase invulnerabilidade aos ataques por terra.
Os policiais nos conduziram até o antigo campo, descendo por uma estrada de terra e pedras que corria pelos fundos do antigo perímetro da cerca de arame e passava por uma velha quadra de basquete com o asfalto arrebentado pelo mato. Saí do carro. Estávamos em Barupra.
Nos onze anos desde que os roma desapareceram, o local havia se tornado o depósito de lixo da cidade, talvez num gesto de “já vão tarde”. Entre as grandes rochas cinzentas, a maior parte da área estava coberta pelo que pareciam ser restos de materiais de construção, especialmente pedaços de gesso cartonado, em meio aos detritos usuais: garrafas empoeiradas, latas de aerossol e, é claro, as onipresentes e indestrutíveis sacolas de plástico, que vão ocupar os espaços vazios durante séculos e nos afligir por milênios.
Além da polícia, havia outro carro na caravana, contendo três trabalhadores que Goos havia contratado na empresa de Attila. Acompanhada pelo motorista da noite passada, Esma chegou por último. Ainda estava vestida como uma dama, e sua única concessão ao cenário eram as botas sem salto.
Quando paramos, todos os policiais saíram dos carros e ficaram apoiados nos capôs. Goos estava certo. Eles estavam ali para espionar.
Eu me aproximei do capitão e, depois de vários minutos, consegui convencê-lo de que os protocolos estabelecidos entre o tribunal e o governo bósnio exigiam que trabalhássemos sem supervisão. Mesmo assim, Esma insistiu que Ferko não se sentiria à vontade para falar na frente dos três trabalhadores, que acabaram sendo despachados para Vica Donja, a cidade mais próxima, a fim de comprar café, que aparentemente podia ser obtido mesmo no alto das montanhas da Bósnia. Só então Esma pegou o celular para chamar Ferko, para quem havia ligado mais cedo e que esperava ali por perto.
Ele apareceu cerca de dez minutos depois, num Opel vermelho dos anos noventa caindo aos pedaços, com ferrugem no para-lama dianteiro e a porta traseira presa com fita adesiva. Ao sair do carro vermelho, Ferko me pareceu mais alto e mais magro contra o cenário árido, especialmente perto de Esma, que, sem o salto, se revelou mais baixa do que eu esperava. Esma o segurou pelo cotovelo, quase como se estivesse conduzindo um prisioneiro. Ferko vestia calça xadrez, o mesmo colete e chapéu que havia usado durante o depoimento e, por baixo do casaco aberto, uma camisa alaranjada de colarinho largo. Goos se aproximou para dar as boas-vindas, mas Ferko ainda estava falando com Esma, gesticulando muito, e Goos, com uma capa de chuva púrpura, parou e ficou olhando para mim com ar irritado.
Por fim, Ferko estava pronto, e nós quatro caminhamos com dificuldade pelas pedras e pelos buracos de Barupra, enquanto ele revivia sua narrativa. Ele nos mostrou onde o abrigo que chamava de casa ficava, a uns cem metros da entrada do campo, e então, do outro lado do vilarejo, a latrina onde havia se escondido quando os agressores mascarados chegaram. Por alguma razão, eu imaginara uma construção de madeira, mas o que restara tinha paredes de cimento, o que significava que era a única estrutura ainda de pé, embora o telhado e a porta tivessem desaparecido havia mais de uma década. Ele apontou para o lugar onde Boldo, o filho e o irmão foram massacrados.
Depois disso, Ferko nos levou aos fundos do campo, acima do vilarejo, de onde havia observado o extermínio de sua família e de todos que conhecia. A mina era uma abertura abrupta abaixo de nós, numa queda de centenas de metros. Eu nunca fui um grande fã de altura, e o declive me deixou com vertigem, embora eu apreciasse a vista majestosa das colinas verdejantes, com chapéus brancos nos pontos mais altos. O vento agitava a calça larga de Ferko enquanto ele gesticulava para a sinuosa estrada de terra sob nós. Talvez uns quatrocentos metros abaixo, um declive de carvão e rochas mais claras jazia sobre o que outrora havia sido a caverna e agora era um cemitério secreto. Observando solenemente, Ferko balançou a cabeça uma única vez.
Voltamos ao local onde ficava o vilarejo. Ele mostrou mais ou menos onde tinha se escondido com o filho após os assassinatos. Por fim, conduziu-nos lentamente para a estrada, até chegarmos à depressão onde ele disse ter enterrado os corpos dos três homens que foram mortos a balas. Construíra um dólmen de pedras brancas para marcar o lugar. As pedras foram chutadas por pessoas que passaram por lá ou por crianças brincando, mas várias delas permaneciam onde as colocara, dando-lhe a certeza sobre o local.
Goos se agachou para examinar uma das pedras e ficou segurando-a. Então lançou um olhar surpreendentemente duro para Ferko.
— É uma distância grande para arrastar três corpos — comentou ele.
Assim que Esma traduziu, Ferko bateu um dos tênis no chão para enfatizar seu argumento.
— Ele concorda — disse Esma —, mas não foi fácil encontrar um lugar macio o bastante para cavar.
Ferko já dera alguns passos em direção ao carro vermelho que o havia transportado até lá.
— A que profundidade estão os corpos? — perguntou Goos.
Esma e Ferko conversaram um pouco.
— Ele disse que só cavou o suficiente para que os corpos não fossem devorados pelos animais. Algo em torno de um metro. Com esse vento durante dez anos, pode não ter mais de trinta centímetros até os ossos.
Ferko ergueu a mão debilmente e voltou as costas para nós. Esma caminhou ao seu lado.
Eu me aproximei de Goos.
— Assim que chegamos, você ouviu alguma coisa que não gostou.
— Ah, sim. — O investigador baixou a cabeça. — Os dois estavam discutindo em romani, mas ele usou uma ou duas palavras em servo-croata para dar ênfase. Ste obecali. “Você prometeu.” E ficou repetindo isso. “Eu quero aquilo que você prometeu.” É melhor que ela não esteja dando dinheiro a ele, Boom. O depoimento de Ferko não vai valer nada se tiver sido comprado.
Prometi abordar a questão mais tarde. Assim que Ferko foi embora, Goos chamou os trabalhadores de volta. Enquanto ele estava ao celular, outro problema me ocorreu.
— Não podemos cavar aqui, podemos? Não precisamos de um antropólogo forense para isso?
Goos estava de lado para proteger o telefone do vento, mas se virou para mim bem lentamente, com a boca fina um pouco aberta.
— Parceiro — disse por fim —, eu sou antropólogo forense.
Geralmente bem-humorado, Goos ficara cada vez mais amargo naquela manhã, por razões que eu não entendia, e agora parecia totalmente desgostoso comigo.
Eu queria falar o óbvio: ninguém me disse isso. Isso era verdade, mas ambos parecíamos reconhecer um insulto mais profundo, a implicação de que, de algum modo, eu não o levara suficientemente a sério para descobrir sozinho.
Ele se virou para aguardar seus homens.
Na pequena depressão a que Ferko havia nos levado, ainda restavam alguns pontos de neve manchada de fuligem. Ao lado deles, os inspiradores brotos verdes de algumas gramíneas precoces brotavam da terra. A equipe de Goos chegou com enxadas e sacolas de lona, aparentemente contendo outras ferramentas. Ele abriu a sacola e vestiu macacão branco, gorro cirúrgico e luvas de plástico. Então se agachou sobre o ponto mais baixo, analisando o local como se contivesse algo metafísico, empurrando a terra solta até recolher um punhado, que depositou num saco plástico com fecho.
Perguntei o objetivo daquilo.
— Verificar a mistura de subsolo e terriço. — Ele ainda estava mal-humorado e respondeu com um grunhido quase inaudível. Então olhou para a sacola de lona e retirou dela uma pequena câmera de vídeo, que me entregou em seguida. — Faça alguma coisa de útil. Grave a escavação, para que ninguém diga que plantamos evidências.
Levei algum tempo para entender o funcionamento dos botões, mas Goos começou a trabalhar imediatamente. Ele iniciou o procedimento com uma barra de aço inoxidável em formato de T, de quase um metro de comprimento e ponta afilada, erguendo-a acima da cabeça e subitamente enfiando-a no solo. Pediu uma fita métrica, que usou para determinar a profundidade da sonda, fazendo anotações num caderninho em espiral que guardava no bolso de trás da calça. Então fez um gesto pedindo outra ferramenta, tão longa quanto a primeira, mas com um par de hastes verticais perto da ponta. Ele a torceu no solo a fim de extrair outra amostra, que ergueu com um palito de madeira simples, parecido com hashis. Não falou comigo, exceto para dizer as medidas em voz alta o bastante para que a câmera registrasse.
Finalmente, Goos fez com que os trabalhadores abrissem quatro grandes lonas azuis nos quatro cantos da depressão. Ele deu a cada trabalhador uma pequena pá de jardinagem e demonstrou como escavar superficialmente, depositando a terra sobre a lona. Com seu hashi, inspecionou o que descobriram.
Eu estava em silêncio havia uns bons vinte minutos quando finalmente perguntei o que ele estava procurando. Goos demorou um pouco para responder.
— Fragmentos de bala. Eles saem do corpo durante a decomposição. Se encontrarmos algum, vamos poder fazer um teste de balística.
Com ferramentas tão pequenas, a escavação ocorria em ritmo laborioso, mas, por fim, após outros quinze minutos, Goos ergueu abruptamente a mão enluvada e prendeu uma lâmpada halógena na faixa elástica que usava na testa. Então afofou o solo com um novo par de hashis e usou uma escova pequena para varrer delicadamente, até que eu pude ver um caroço amarronzado da cor de cogumelo. Percebi que ele estava desenterrando um osso da bacia.
A visão desses restos mortais me afetou com muito mais intensidade do que eu tinha previsto. Advogados — todos os advogados — vivem numa terra de conceitos e palavras, com pouquíssima intrusão da realidade física. Nos meus anos como promotor, ouvir o juiz pronunciar a sentença e ver o delegado federal colocar algemas no réu e levá-lo para a cela era algo que costumava me angustiar. Era só então que eu parecia compreender integralmente que meus esforços visavam não apenas àquela abstração que eu chamava de justiça, mas, de forma mais concreta, prender um ser humano numa gaiola durante boa parte de sua vida.
Goos expusera a maior parte da pelve e o alto do fêmur quando o A8 de Attila chegou sacolejando e levantando poeira. Fiquei aliviado por ter um motivo para me afastar da cova e entreguei a câmera a um dos trabalhadores.
Esma, que também se mantivera distante, aproximou-se de mim.
— Encontraram alguma coisa?
Assenti com a cabeça.
— Não gosto de sangue nem de ossos — comentou ela.
— Nem eu — falei.
Ela riu e passou o braço pelo meu enquanto caminhávamos até Attila. Fiz as apresentações.
— A famosa Attila — disse Esma. Seu motorista, como aparentemente metade da população de Tuzla, era funcionário dela.
— Eu não sou a babaca que dizem que sou — defendeu-se ela. — Na minha humilde opinião.
— Pelo contrário, você foi muito elogiada.
Attila abriu um imenso sorriso. Ser maltratada com tanta frequência indubitavelmente a deixara vulnerável a qualquer elogio. Em seguida, com seu caminhar desconjuntado e parecido com o de um pombo e a postura estranhamente ereta, ela foi até a cova conversar com Goos e se assegurar de que ele tinha toda a ajuda de que precisava. Tive uma ideia sobre algo útil que eu poderia fazer e que me manteria longe dos restos mortais.
— Esma, você não disse que ouviu falar de Ferko num vilarejo roma?
— Sim. Voltei lá algumas vezes.
— É longe daqui?
— Lijce? Não tenho certeza.
Dado o circuito fechado da comunidade roma, achei que provavelmente encontraríamos em Lijce as melhores informações sobre Barupra. Quando Attila voltou, disse que a cidade ficava a uns vinte minutos dali e se ofereceu para me levar até lá.
Fui até onde tinha deixado Goos. Ele já abrira caminho até um segundo esqueleto, mas, no momento, fixava uma fina agulha de carboneto de tungstênio a uma pequena picareta de mão, a fim de afofar a terra em torno do primeiro conjunto de ossos, examinando-os em busca de sinais de trauma.
Ele concordou com o plano. Quando me virei, ele disse às minhas costas:
— Eu não estava tentando bancar o importante, Boom.
Goos estava se desculpando por ter sido pretensioso.
— É claro que não. A culpa foi toda minha. Eu deveria saber.
Ele assentiu, aparentemente satisfeito com a resposta.
Quando retornei, descobri que Esma estava se preparando para dispensar o motorista e ir até Lijce comigo e Attila. Todos os roma eram seu povo, pessoas com quem tinha uma conexão particular, e ela era conhecida na cidade. Mesmo assim, eu estava relutante com sua presença, uma vez que confirmar a história de Ferko era a principal razão para ir até lá. Chamei-a de lado e expliquei isso.
— Você fala romani? — perguntou ela. — Porque muitos deles não são fluentes em nenhuma outra língua.
Ponto para Esma. Conversei novamente com Goos, que achou que ela seria mais benéfica que prejudicial, ao menos naquela visita exploratória. Sempre poderíamos retornar com nosso próprio intérprete.