12.

Ainda uma cigana

— Vocês estão com fome? — perguntou Attila quando fomos embora de Lijce. — Tem um lugar interessante a alguns quilômetros daqui.

Já passava das quatro, e nenhum de nós havia comido nada desde o café da manhã. Attila parou numa grande hospedaria de beira de estrada, na encosta de uma colina, composta por uma série de construções rústicas que pareciam um hotel-fazenda, com telhados inclinados e paredes de cedro decoradas com velhas rodas de carroça. Para aumentar o apelo turístico, havia reconstruções da vida bósnia há cem anos. Numa das cenas, um boneco de cera usando colete e um fez examinava uma saca de sementes.

No segundo andar da construção principal, entramos num salão a céu aberto, feito de pinho e bastante luxuoso. Garçons vestindo coletes formais e gravatas-borboleta nos conduziram a uma mesa ao lado da janela, com vista para outro adorável riacho montanhoso trinta metros abaixo, de onde emergia um romântico burburinho.

Attila, sem surpreender ninguém, era uma excelente anfitriã. Ela pediu um vinho branco da Eslovênia, embora, como descobrimos, não bebesse álcool. Seu foco estava num grande prato de queijos e carnes secas, uma iguaria local, acompanhados de um incomum pão amarronzado feito a partir de dezenas de camadas muito finas, um pouco como a crosta de um strudel. Enquanto relaxávamos, Attila fumou sem remorso, e Esma filou alguns cigarros, explicando que fumava apenas quando bebia e não estava na Inglaterra.

Attila havia acabado de escolher a entrada quando Esma pediu licença. Assim que ela se levantou, Attila se inclinou confidencialmente para a frente. Sua personalidade era tão grandiosa que eu quase me habituara a ignorar sua aparência esquisita, com aquela grande bola de cabelo crespo amarronzado, a pele cheia de sardas irregulares, os ombros estreitos e estranhamente quadrados e os braços magros e pálidos saindo da mesma camisa de manga curta que vestia quando tinha me buscado no aeroporto no dia anterior.

— O que você acha, Boom? Parece que foi Kajevic, não parece?

— Talvez. Eu estou muito longe de poder tirar conclusões, Attila.

— Um cara manda um mensageiro para dizer que vai matar um punhado de homens, e, uma ou duas semanas depois, eles estão todos mortos. Esse cara é o principal suspeito, não é?

— Claro. Mas essa não é a única possibilidade. O que você achou da mulher que disse que os bósnios mataram os roma porque queriam a base de volta?

— Eu achei que ela estava falando tanta merda quanto todas as outras; ou melhor, todas menos a última. Os Estados Unidos haviam se retirado. O campo tinha voltado a ser propriedade do governo. Se os bósnios quisessem expulsar os roma, eles só precisariam usar escavadeiras. Não havia razão para um massacre.

Bebi um gole de vinho, pensando em como abordar o assunto seguinte. Eu passara o dia todo querendo um instante a sós com Attila.

— Eu também não estou pronto para declarar que o Exército americano não é mais um suspeito.

Como eu imaginava, ela fez uma careta.

— E por que não?

— Bem, Tobar confirmou algo que venho ouvindo há semanas: que alguns ciganos em Barupra eram ladrões de carros. Aliás, você mesma disse que demitiu os motoristas roma quando eles desapareceram com alguns caminhões. Não foi isso?

— É verdade. — Ela assentiu com toda a parte superior do corpo.

Na noite anterior, eu havia acordado por volta das três, o que não era incomum quando estava sofrendo de jet lag. Sentia um aperto no coração por causa de alguma reconstrução onírica do encontro com Esma no corredor. Eu tinha me lembrado de suas unhas vermelhas quando ela apoiara a mão no meu braço, mas o sonho terminara em agitação e arrependimento, embora, como acontece com tanta frequência, eu não conseguisse me lembrar do que estava arrependido ao acordar. Por fim, quando havia me acomodado e começara a cochilar, minha mente se voltara para o caso. Tinha sido então, semiadormecido, que eu havia feito a conexão que vinha me incomodando desde que bebera com Goos no bar do hotel.

— Você disse que todos os caminhões que a OTAN usou na Bósnia eram seus. Da CoroDyn. Certo?

— Basicamente. Os veículos operacionais estavam sob o comando da unidade de transportes, mas eram todos meus.

— Ok. No avião, eu reli os meus arquivos sobre a tentativa de prender Kajevic em Doboj. A maioria dos relatos da imprensa diz que ele fugiu em caminhões roubados do Exército americano. A primeira vez que li isso, achei que ele e seus Tigres tinham feito ligação direta nos veículos utilizados pelas forças especiais. Mas toda a emboscada teve um planejamento minucioso demais para envolver uma fuga improvisada. Foi então que percebi, no meio da noite, na verdade, que Kajevic já tinha aqueles caminhões.

Eu tinha conseguido atrair a atenção de Attila. Suas sobrancelhas finas e sem forma estavam contraídas sobre os olhos miúdos.

— O que significa — continuei — que os veículos em que Kajevic fugiu foram roubados de vocês e da CoroDyn. Certo?

Attila comprimiu os lábios antes de falar.

— Eu já falei, Boom. Gosto de você e tudo mais, mas não vou foder com a minha habilitação de segurança.

— Não pode ser segredo a quem os caminhões pertenciam, Attila. Eles tiveram que ser identificados para que a polícia bósnia pudesse procurá-los.

Ela deu de ombros.

— Foram os roma de Barupra que roubaram os caminhões e venderam para Kajevic, não foram?

Attila estava olhando fixamente para a mesa. Então ela ergueu os olhos e acendeu outro cigarro.

— Boom, você já falou demais? — perguntou ela, com a chama do Zippo ainda acesa.

— Ocasionalmente.

— Eu fiz isso a vida toda. A merda sai da minha boca e eu fico me perguntando por que caralho eu disse aquilo. E, Boom, eu realmente não sei por quê. Eu sempre acabo me envolvendo nessas situações.

Eu não estava disposto a me deixar distrair pelos seus arrependimentos passados.

— Mas foi assim que os roma ficaram sabendo onde Kajevic e seu pessoal estavam escondidos. E foi por isso que puderam fornecer a localização para a inteligência do Exército.

— Eu não estou aqui para mentir para você, Boom. Mas tenho que ser muito mais cuidadosa com o que digo.

— Bem, talvez você possa responder a outra pergunta, Attila. Se os roma me dissessem onde Kajevic estava escondido, eu fosse até lá e acabasse caindo numa emboscada, eu ficaria puto, talvez mortalmente puto, ainda mais quando percebesse que eles mesmos venderam os caminhões que Kajevic usou para fugir. Isso poderia me parecer uma grande traição.

Ela balançou a cabeça enfaticamente.

— Não foi assim que aconteceu.

— E como foi?

— Eu não posso me envolver nisso, Boom. Eu sei que falo demais, e, com um cara esperto como você, uma coisa leva a outra. Não posso dizer mais nada. Só uma coisa: você ouviu aquela moça dizer que Kajevic jurou matar todos os ciganos.

O celular de Attila, que ela colocara sobre a mesa de madeira, começou a tocar de novo, vibrando tanto que, por um momento, achei que poderia voar pela janela. Ela colocou a mão sobre ele antes que o deslizasse para longe e atendeu. Eu teria jurado que Attila havia ligado para si mesma a fim de evitar mais perguntas, mas o celular tocara bem na minha frente e eu conseguia ouvir uma voz falando em servo-croata do outro lado da linha.

— Merda — disse ela ao desligar. E se levantou. — Preciso ir. Tenho que encontrar cinco caras que falem pachto e mandá-los para Cabul até as oito da noite de amanhã. E o problema, Boom, é que qualquer pessoa que fale pachto trabalhou no Afeganistão. E qualquer pessoa que trabalhou no Afeganistão prefere dar o cu a voltar para lá. Isso vai custar caro. Vou passar a noite ao telefone.

Attila me deu um aperto de mão e disse que um motorista chegaria em uma hora e nos levaria de volta a Tuzla quando estivéssemos prontos. Ela caminhou uns cinco passos antes de dar meia-volta e se inclinar sobre a mesa, me deixando frente a frente com seus olhos estreitos e sua pele ruim. Então disse em voz baixa:

— Diga a Esma que foi um prazer conhecê-la. Mas tome cuidado, meu camarada. Aquela mulher é esperta demais. E nunca esqueça que ela ainda é uma cigana.

Então foi embora com um breve aceno.

A comida — carneiro grelhado com vegetais numa grande travessa de inox — chegou alguns minutos depois, segundos antes de Esma retornar. Expliquei a partida de Attila, e ambos ficamos encantados com ela por algum tempo. Esma parecia completamente extasiada. Ela se sentara diante de mim enquanto Attila estivera presente, mas agora se acomodara ao meu lado, perto o bastante para nossos cotovelos se tocarem.

— E então, Boom? Descobriu alguma coisa útil hoje?

— Eu preciso processar tudo o que ouvi. — Eu ainda não queria partilhar meus pensamentos sobre a investigação. Em vez disso, perguntei sobre Lijce, sabendo que sua paixão pelo seu povo a distrairia.

— O desafio dos roma é permitir a interação com a sociedade dos gadjos para aqueles que, como eu, desejam se unir a ela, sem impor os valores da sua sociedade, Bill, aos muitos que não desejam.

— Mas como as crianças roma podem fazer essa escolha sem ter acesso à educação formal?

— O valor da escola não é claro para a maior parte do meu povo — respondeu Esma. — Em romani, não há palavras para “ler” ou “escrever”. A música roma é maravilhosa. Mas não existe literatura. Minha avó ficava preocupada sempre que me via com um livro. Ela me perguntava: “So keres?” “O que você está fazendo?” Para o meu povo, o conhecimento é adquirido através da interação social, da conversa.

— Uma tradição oral?

Ela deu um leve sorriso, divertindo-se com a ambiguidade dos costumes roma.

— Sim, mas não pense nos anciões nativo-americanos repetindo lendas para um círculo de jovens ouvintes. Os roma, Bill, são um povo sem história, sem entendimento partilhado do passado. Minha avó se recusava a acreditar quando eu dizia que a gente não veio do Egito, um erro comum que levou ao nome “gypsy”. Para nós, não existe um mito prevalente de criação nem sete dias e sete noites. Os homens ciganos com quem cresci eram ferozes lutadores, mas jamais houve um Exército cigano, porque não há terras que tenhamos sido inspirados a conquistar e defender ou para onde tenhamos sentido vontade de retornar.

“E, ao contrário de quase todos os outros grupos humanos do mundo, nosso senso de identidade não é forjado pelas incontáveis injúrias do passado. Não contamos histórias sobre nossos séculos de escravidão, diferente dos afro-americanos e dos judeus. Em vez disso, os ciganos são excelentes em esquecer. Você viu isso com Tobar, quando perguntou sobre Barupra. A gente vive no presente. Para os ocidentais, somos tão estranhos quanto marcianos.”

Outra vez, ela deu aquele sorriso largo, repleto de prazer e orgulho pelo seu legado diferente.

— E qual foi o impacto disso tudo em você, Esma? Você se sente presa entre dois mundos?

— Não. Eu fiz as minhas escolhas. Para pessoas como aquela senhora que a gente viu em Lijce, eu sequer sou rom. Foi por isso que ela não quis falar romani comigo.

— E quanto à sua família? Sua mãe é mais tolerante que seu pai?

— Minha mãe morreu. Câncer. Todos aqueles cigarros. Ela discutia com o meu pai por minha causa, mas sempre senti que era mais para contrariá-lo que por ver qualquer valor na minha educação. Quando fiz 15 anos, ela começou a falar de casamento. Ela já havia conversado com a outra família. O garoto, que se chamava Boris, parecia gostar muito de mim, mas o sentimento não era recíproco. Então ele me sequestrou e me estuprou. Isso não é incomum entre os roma ingleses, para os quais um pau duro frequentemente equivale a um pedido de casamento. Depois do sexo, ele poderia declarar que tínhamos fugido juntos. Mas ficou furioso quando não viu sangue nos lençóis. A família dele, é claro, desistiu de suas intenções, e o meu pai ficou furioso.

“Mesmo assim, essa foi a minha libertação. Como passei a ser inadequada para o casamento, estava livre para continuar frequentando o colégio e ir para a universidade.”

— Oxford?

— Cambridge. Caius College.

— E você nunca se casou?

— Não. Eu sou independente demais, Bill. Ainda penso em filhos de vez em quando, mas não sou constante o suficiente para ser uma boa mãe.

A comida, que comíamos enquanto conversávamos, era excelente, preparada sem muita fanfarra, mas saborosa e com uma bela apresentação. No centro do prato, havia uma cebola grelhada da qual pimentas brotavam como antenas. Durante a refeição, havíamos pedido uma segunda garrafa de vinho.

Quando terminamos a sobremesa, pedi a conta, mas descobri que Attila já deixara tudo pago. Esma riu e imediatamente apontou que, por causa disso, eu ainda lhe devia um jantar.

Do lado de fora, o carro que Attila havia prometido estava à nossa espera, um antigo veículo iugoslavo grande como um tanque. Esma e eu nos sentamos no banco de trás e partimos para Tuzla, atravessando as colinas enquanto anoitecia. Não fiquei surpreso quando Esma, que tinha bebido mais que eu, ficou em silêncio e de olhos pesados e então caiu num sono profundo, com a cabeça jogada para trás e ressonando ligeiramente. Uma curva fechada a jogou em cima de mim, e ela apoiou a cabeça no meu ombro, me lançando numa rede de sensações. Eu podia ser tão cauteloso quanto quisesse, mas, com sua beleza e personalidade forte, seu sex appeal parecia uma corrente elétrica, e o calor do seu corpo tão próximo, sua respiração no meu pescoço e seu perfume no ar me mantiveram excitado durante a maior parte do caminho.

Quando começamos a sacolejar pelas ruas de paralelepípedos de Tuzla, ela se endireitou e balançou a cabeça para acordar. Esma pegou o celular, mas falou por apenas alguns segundos em romani.

— Preciso me encontrar com Ferko — avisou ela quando paramos em frente ao Blue Lamp. — Eu disse que o veria hoje à noite para discutirmos algumas coisas.

Finalmente me lembrei de perguntar a ela sobre o que Goos tinha ouvido.

— Goos disse que Ferko estava insistindo para que você cumprisse o que prometeu. Desculpe, sei que não preciso dizer isso a você, mas, se estiver recompensando Ferko de alguma forma pelo depoimento, ele não vai ter nenhum valor.

Ela recebeu o comentário com uma risada.

— Você não precisa me dizer isso. A única conversa que tivemos sobre dinheiro foi quando eu disse que ele poderia receber alguma forma de reparação do tribunal, num futuro distante, se houvesse uma condenação. Mas ele não tocou no assunto desde então. O que prometi a Ferko quando ele concordou em testemunhar foi que você faria todo o possível para mantê-lo em segurança. E é direito dele insistir para que essa promessa seja cumprida, você não acha?

Assenti com a cabeça. Querendo ou não, eu tinha que ficar satisfeito com essa resposta.

— Eu ainda não tive a chance de pressioná-lo sobre Kajevic, como você pediu — continuou ela —, mas vou mencionar o assunto e manter você informado.

Ela ouvira Sinfi, assim como eu. Era difícil duvidar da jovem, o que significava que seria bastante peculiar se Ferko — ou qualquer outra pessoa vivendo em Barupra — não tivesse ouvido falar das ameaças de Kajevic.

Esma guardou o celular na bolsa e me encarou já com um pé na rua.

— Obrigada por me deixar dormir, Bill. Eu me senti confortável do seu lado. — Ela não disse mais nada, mas me lançou um olhar demorado, franco e íntimo, antes de se afastar.

De pé na rua em frente ao hotel, eu reverberava. E, subitamente, pensei em Layton Merriwell.