1.

Recomeço — 8 de janeiro de 2015

Aos 50 anos, decidi recomeçar. Isso não foi nem de longe um plano consciente, mas, nos quatro anos seguintes, deixei minha casa, meu casamento, meu emprego e, finalmente, meu país.

Essas escolhas foram recebidas com espanto ou com piadas por praticamente todo mundo que era próximo de mim. Minha irmã achou que eu ainda estava me recuperando das mortes em rápida sucessão dos nossos pais. Meus sócios no escritório de advocacia afirmaram que eu jamais havia me ajustado à vida longe dos holofotes. Minha ex-mulher considerou tudo uma forma prolongada de crise de meia-idade. E meus filhos alternaram entre ficar atônitos e irritados com o fato de seu pai, sempre com uma vida estável, ter se tornado tão volúvel quanto um adolescente justamente quando eles pareciam ter encontrado a própria estabilidade na vida adulta. Ignorei todos eles, porque minha vida tinha se chocado com a rocha de uma verdade maior. Apesar de todo o meu sucesso, ao olhar para trás, não conseguia identificar um momento no qual, em meu âmago, tivesse me sentido verdadeiramente à vontade comigo mesmo.

Meu exílio na Holanda e no Tribunal Penal Internacional não era uma solução garantida, mas foi a proverbial porta que se abriu quando outra se fechou. Quem de fato surgiu à minha porta foi meu colega de faculdade Roger Clewey.

— Boom! — gritou ele, e, aproximando-se para me dar um aperto de mão, ziguezagueou entre as caixas de papelão abertas que ocupavam grande parte do meu escritório espaçoso.

Eu passara três dias sentado com um cesto de lixo entre as pernas, praticamente imobilizado em meus esforços para embalar tudo. A partir de 1º de janeiro de 2015, eu deixaria de ser sócio do DeWitt Royster, onde havia trabalhado por quatorze anos, à frente da equipe de crimes do colarinho-branco. Alguém com uma natureza mais prática teria empacotado tudo em questão de horas, mas eu me demorava em praticamente tudo que tocava — livros de direito, pequenos enfeites de mesa, fotos dos meus filhos em várias idades e dezenas de placas, canetas e cristais comemorativos que havia recebido durante meu mandato de quatro anos, uma década e meia atrás, como procurador federal do condado de Kindle. Tomado pela emoção e pela força do tempo, eu retornava das minhas memórias e me descobria olhando, quarenta andares abaixo, para a faixa coberta de neve das Tri-Cities e para a linha cinzenta que era o rio Kindle, congelado em mais um inverno terrível do nosso clima de extremos.

— Disseram que você decidiu dar o fora — comentou Roger.

— Está mais para “vou sair antes que me mandem embora”.

— Não foi o que eu ouvi. Seus filhos estão bem?

— Eles dizem que sim. Pete ficou noivo.

— Você já esperava por isso — disse Roger, acertadamente. — E quanto à sua vida pessoal? Ainda aproveitando a putaria pós-divórcio?

— Acho que eu já superei essa fase — falei, uma resposta mais conveniente que contar que ela jamais havia começado.

Eu e Roger nos conhecemos na Faculdade de Direito de Easton há mais de trinta anos. Depois da graduação, Rog havia entrado para o Ministério das Relações Exteriores, atuando como responsável jurídico de várias embaixadas. Durante algum tempo, achei que sabia o que ele fazia. Então suas designações para vários locais de conflito, como os Bálcãs, o Afeganistão e o Iraque, passaram a incluir tarefas que ele nunca podia discutir. Com o passar dos anos, concluí que meu amigo era espião, embora jamais soubesse ao certo para que agência trabalhava. Recentemente, sua história era de que tinha voltado a trabalhar para o Departamento de Estado, embora eu não tenha certeza de que é possível pedir demissão de um disfarce diplomático. Ele tinha o hábito de aparecer em Kindle sem avisar e a misteriosa habilidade de saber quando eu estava na cidade, o que com o tempo percebi que devia ir além de um mero golpe de sorte.

— O que vai acontecer agora? — perguntou ele.

— Só Deus sabe. Acho que vou me dar um ano de férias de verão, seguindo o sol ao redor do mundo. Nadar, fazer trilha, malhar todo dia, reencontrar velhos colegas, jantar al fresco ao pôr do sol e então passar as noites lendo tudo que sempre quis ler.

— Sozinho?

— Para começar. Talvez eu conheça alguém no caminho. Estou certo de que os meninos vão topar uma viagem ou outra, se o destino for agradável o suficiente. E se eu pagar a conta.

— Quer saber o que eu acho?

— Você vai me dizer de qualquer jeito.

— Eu acho que em um mês você vai estar entediado e se sentindo sozinho, um holandês amargo e mal-humorado se perguntando em que merda se enfiou.

Dei de ombros. Eu tinha certeza de que seria melhor que isso.

— Além disso — continuou Roger —, eu tenho uma oportunidade incrível para você. Alguma chance de você ter conversado com Olivier nas últimas horas?

Olivier Cayat era outro colega de faculdade. Ele havia sido muito mais próximo de Roger naquela época, mas, havia cerca de dez anos, chegara ao condado de Kindle, vindo de Montreal, para me ajudar na defesa de um executivo canadense que demonstrara incrível imaginação na maneira como havia fraudado a contabilidade de sua empresa. Perdemos o julgamento, mas ficamos muito mais próximos. Recentemente, Olivier tinha passado por sua própria crise de meia-idade e se mudara para a Holanda, de onde com frequência relatava estar bastante feliz.

— Olivier afirma que você vem ignorando as mensagens dele há uma semana — disse Roger.

No fim do ano, eu havia criado respostas automáticas nos sistemas de voz e e-mail do escritório, explicando que me desligaria em 1º de janeiro e não verificaria as mensagens com regularidade; o que, ao menos durante a primeira semana, significou que não verifiquei nunca. Eu achava melhor me afastar completamente. Mesmo assim, com Roger observando, virei-me para o computador atrás de mim e batuquei no teclado até localizar o primeiro dos quatro e-mails enviados por Olivier desde a virada do ano.

Mon ami”, dizia ele, “me ligue. Tenho uma novidade que você pode achar interessante.”

Eu me virei de novo para Roger.

— Falando nisso, Rog, no que Olivier trabalha lá na Holanda?

— No Tribunal Penal Internacional, em Haia. É um tribunal de crimes de guerra permanente. Olivier é um dos principais promotores de lá, mas Hélène quer que ele fique em casa. — Roger se permitiu uma pausa dramática antes de acrescentar: — Olivier acha que você é o cara certo para o lugar dele.

Após minha própria pausa, perguntei:

— Então sua grande ideia é que eu volte a ser promotor?

Eu tinha sido escolhido como procurador federal do condado de Kindle por mero acaso, em 1997, em boa parte para que nosso senador sênior, que fizera a recomendação à Casa Branca, não tivesse de escolher entre dois outros candidatos, ambos políticos influentes que se odiavam. Na época, eu era promotor havia quase doze anos, incluindo dois como primeiro-assistente, o segundo cargo mais alto da hierarquia. Mesmo assim, aos 37 anos, eu ainda era jovem demais para a responsabilidade, e toda manhã, durante meses, tivera de conter o terror diante da ideia de fazer alguma besteira. Com o tempo, havia passado a sentir que tinha o melhor emprego possível para um advogado de litígios: eletrizante, desafiador e significativo. Mesmo assim, eu disse a Roger que não tinha interesse em voltar. Aquele filósofo grego estava certo ao afirmar que não é possível atravessar duas vezes o mesmo riacho.

— Não, não — disse ele. — Isso é diferente. Eles trabalham com atrocidades em massa. Genocídio. Limpeza étnica. Mutilação, estupro e tortura como instrumentos de guerra. Esse tipo de coisa.

— Rog, eu não sei merda nenhuma sobre esse tipo de coisa.

— Deixa de besteira. Tudo se resume a testemunhas, documentos e técnicas forenses, apenas em maior escala. Os crimes são hediondos, mas provas são provas.

Roger havia tirado uma caixa do caminho e se sentara em uma poltrona, sentindo-se tão confortável em me provocar quanto nos últimos trinta anos. Hoje em dia, sua barriga escondia o cós da calça e sua cabeça calva com cabelos brancos exibia alguns daqueles constrangedores fios rebeldes que se projetavam da careca reluzente. Havia assumido aquela atitude WASP de meia-idade de parecer que vestia o mesmo terno todo dia nos últimos vinte anos, como se fosse vulgar se preocupar demais com a própria aparência. Seus sapatos, resistentes e caros quando comprados, não viram mais graxa desde então. E eu duvidava que ele tivesse mais que duas ou três gravatas. Era apenas um uniforme que vestia toda manhã. Ele jogava para um time cujos astros eram muito discretos.

— Rog, por que você está aqui no meu escritório defendendo o caso de Olivier? Você tem algum interesse profissional nisso?

— Alguns — respondeu ele. — Há um caso naquele tribunal que os Estados Unidos odiariam ver em mãos erradas.

— Que tipo de caso?

— Você sabe onde fica a Bósnia? — perguntou ele.

— Em algum lugar do leste.

— Em 2004, havia um campo de refugiados perto de Tuzla. Todos roma.

— Ciganos?

— Esse não é o termo politicamente correto.

— Ok, alguns ciganos — insisti.

— Quatrocentos. Todos assassinados.

— Ao mesmo tempo?

— É o que dizem.

— Por quem?

Roger se recostou na cadeira.

— Bom, é aí que as coisas ficam meio obscuras.

— Ok. E 2004... a Guerra da Bósnia já tinha acabado?

— Ah, sim. Há anos. O Acordo de Dayton pôs fim à guerra em 1995. Nove anos depois, sérvios, croatas e bósnios, ou seja, muçulmanos, praticamente haviam parado de se matar. A OTAN estava lá impondo o acordo, o que significava recolher toneladas de armas e caçar criminosos de guerra para serem julgados em Haia. Suas forças incluíam cerca de mil e oitocentos soldados americanos em um perímetro de campos perto de Tuzla.

— Ou seja, perto dos ciganos.

— Muito perto. Alguns quilômetros.

— E por que alguns garotos americanos, que estavam lá para manter a paz, matariam quatrocentos ciganos?

— Não mataram. Eu aposto a minha vida nisso.

— Quem matou?

— Exterminar quatrocentas pessoas ao mesmo tempo exige bastante poder de fogo. Por isso, a lista de suspeitos não é muito longa. O mais provável é que tenham sido paramilitares sérvios. Talvez policiais agindo por conta própria. Ou o crime organizado. Havia muito disso naquela época. Além de alguns jihadistas, que originalmente foram para a Bósnia defender os muçulmanos bósnios dos sérvios.

— Bem, não me parece que os militares americanos tenham muito com que se preocupar.

— Não é tão simples assim. Agora entramos no domínio da diplomacia e da política.

Meu reflexo foi dar um gemido. Política e processos judiciais não eram uma boa mistura.

— O TPI — disse Roger — foi estabelecido por um tratado negociado entre a maioria dos países-membros da ONU, incluindo os Estados Unidos. Clinton assinou em 2000, mas o pessoal do Bush odiou a ideia, principalmente Dick Cheney, que parece que tinha medo de ser julgado por ter autorizado o afogamento simulado. Em 2002, Bush anunciou que renunciaria ao tratado do TPI.

— É possível fazer isso? Renunciar?

— Você acha que isso importa? Em vez disso, os republicanos, que controlavam o Congresso, aprovaram uma coisa chamada Lei de Proteção aos Membros do Serviço Militar, que basicamente diz que, se você tentar levar os nossos soldados a julgamento, vamos invadir a merda do seu país e os traremos para casa.

— Literalmente?

— Não acho que eles tenham usado a palavra “merda”. Fora isso, é um resumo legislativo bastante preciso. Na Europa Ocidental, era chamada de “Lei de Invasão de Haia”.

— Você está dizendo que, se o TPI acusar soldados americanos, vamos começar uma guerra contra a Holanda?

— Digamos que correremos o risco de criar sérios conflitos com nossos aliados mais próximos. E essa simples ideia causa angina em andares inteiros dos departamentos de Estado e de Defesa.

— Por isso o caso está pendente há onze anos? Porque gente como você está tentando obstruí-lo?

— Primeiro, quero que conste nos registros — disse Roger, com um sorriso travesso — minha objeção à palavra “obstruir”. Nós simplesmente expressamos nosso ponto de vista a várias autoridades. E grande parte do atraso não tem nada a ver com a gente. Mesmo as organizações roma só começaram a investigar o caso depois de muitos anos, porque o único sobrevivente estava escondido debaixo da cama, se cagando de medo. E, sendo sincero, eu não fui muito bom nas minhas tentativas de obstrução. Há várias semanas, a procuradoria do TPI solicitou uma investigação formal, principalmente porque os malditos ativistas roma não param de gritar: “Como quatrocentas pessoas podem ser exterminadas sem que ninguém se dê ao trabalho de investigar?”

— Me desculpa, Rog, mas essa me parece uma boa pergunta.

Roger deu de ombros. Ele não discordava. Mas tinha um trabalho a fazer.

— E o que você quer dizer com “ativistas roma”? — indaguei.

— O que você sabe sobre os roma? — rebateu ele.

Ergui os olhos para os painéis fluorescentes no teto do escritório e concluí que a resposta honesta era:

— Quase nada.

— Esse não é o tipo de competição que alguém queira vencer, mas, mesmo levando-se em conta os genocídios de armênios, curdos e, é claro, judeus, talvez não exista um grupo de pessoas brancas no mundo que tenha sido massacrado com mais frequência que os roma no último milênio. — Roger se inclinou para a frente e baixou a voz. — Basicamente, eles foram os crioulos da Europa. — Ele se referia ao tratamento que eles receberam. — Os roma foram escravos na Romênia durante quatrocentos anos, sabia?

— Os ciganos?

— Eles nunca têm descanso. Hitler tentou exterminá-los. Noventa mil fugiram de Kosovo. E Sarkozy chutou alguns milhares da França há alguns anos. Todo mundo, de Atenas a Oslo, odeia os caras.

— Eles são ladrões, não são?

— Você quer dizer todos eles?

— Não, só um número suficiente para que sejam odiados.

— Sim, um número suficiente. Batedores de carteira, trapaceiros, fraudadores de cartões de crédito, crianças que fazem parte de gangues, ladrões de carros, falsos mendigos. A caravana cigana entra na cidade e muita coisa desaparece. A mesma velha história de sempre. Em contrapartida, eles raramente conseguem empregos ou são admitidos nas escolas, então eu não sei o que mais poderiam fazer.

— Ok, agora eu estou com pena dos ciganos, mas ainda não vejo o meu papel nesse drama.

— Estou chegando lá — respondeu ele. — Os membros do TPI são ambivalentes quanto aos Estados Unidos. Eles nos odeiam por não sermos signatários do tratado. Mas precisam de nós no longo prazo. Uma operação como a deles não tem como acontecer sem o apoio da nação mais poderosa do mundo. Assim, eles evitam nos irritar de forma irreparável. O que significa que tem muita coisa acontecendo nos bastidores.

— E “bastidores” significa você e Olivier?

— Significa que temos sido garotos de recado dos nossos chefes. Mas, depois de semanas de discussão, todo mundo parece acreditar que a melhor opção seria que a investigação do TPI fosse comandada por um promotor americano sênior.

— Uma espécie de promotor especial?

— Algo assim. Mas sem nenhum título formal. E tem que ser a pessoa certa. Não um babaca. Alguém que seja respeitado por eles e por nós. Para nós, isso significa um cara com qualidade que tenha uma reputação à prova de balas se algum caipira do Congresso quiser fomentar uma crise mundial só porque existe uma inquirição em curso no TPI.

— E esse cara sou eu? — questionei, com genuína incredulidade. — O cara blindado?

— Você ainda tem muitos fãs de ambos os lados do corredor em Washington, Boom.

Isso era um exagero com o intuito de me bajular. Eu tivera um bom relacionamento com a procuradora-geral durante seu mandato anterior como vice e tinha um colega de faculdade que agora era senador republicano pelo Kentucky.

— Rog, eu já li alguma coisa sobre esse caso?

— Não. Os principais jornais não falaram dele. Existem alguns detalhes nuns blogs. Os advogados roma tentaram agitar as coisas, mas o massacre é notícia velha e, como tem sido impossível nomear um culpado, não dá boas manchetes. E achamos isso ótimo.

— E quanto tempo vai durar a investigação?

Ele fez um gesto com a mão como quem diz que é impossível prever, mas reconheceu que essas questões costumavam andar lentamente.

— Mas, por causa disso, os casos por lá parecem ônibus — acrescentou. — As pessoas entram e saem o tempo todo. Quando encher o saco, você pode ir embora.

Coloquei um dedo sobre os lábios para pensar.

— Espera — disse Roger. — Eu ainda não vendi a parte holandesa. Achei que você ia adorar essa coisa de raízes. Você nunca passou muito tempo na Holanda, não é?

— Não, os meus pais nunca quiseram voltar.

Eu ainda não havia contado a Roger a versão estendida do passado da minha família. E aquele não era o momento adequado. Em vez disso, eu me recostei na minha grande cadeira de couro, fazendo meu melhor para agir como um advogado, analisando todos os ângulos da situação e escrutinando Roger. O lado competitivo do nosso relacionamento significava que ele jamais revelaria suas intenções por completo. Mas, como um amigo de décadas, Roger sabia que eu ia achar o trabalho intrigante. Mesmo depois de anunciar minha saída do escritório, eu sentia que ainda não havia desistido do direito. Eu ainda achava que a prática jurídica não casava bem com o capitalismo, mas gostava do que os advogados faziam e me senti imediatamente atraído pela ideia de desempenhar meu ofício no exterior.

— Olha, Rog. Vamos ignorar o fato de que você está vendendo um cargo que não tem o direito de oferecer. Olivier e as pessoas que trabalham com ele vão ter que dar explicações. Mas é óbvio que você quer substituir um amigo por outro. Por isso eu só vou ligar para Haia se você olhar nos meus olhos e me disser que vou poder conduzir o caso sem interferências, doa a quem doer.

Roger se inclinou para a frente outra vez e me deixou ver seus olhos suaves afundados nas tristes bolsas de carne que a idade havia colocado em seu rosto.

— Doa a quem doer — concordou ele.