16.
O laboratório — 29 de abril
Na quarta-feira seguinte, Goos ligou do Instituto de Perícias Criminais. Vários resultados estavam disponíveis e, segundo ele, seriam mais fáceis de absorver se eu fosse até lá.
— Vou ter que olhar para ossos? — perguntei.
— Temo que sim.
Gemi, em grande parte de brincadeira.
Com o clima ameno, eu começara a usar a velha bicicleta de Lew Logan para ir ao trabalho e, àquela altura, estava preparado para o trajeto de quarenta e cinco minutos até o remoto bairro de Ypenburg. Eu já havia me acostumado com os olhos revirados e os dedos apontados das crianças locais quando viam meu capacete. Para mim, nada soava mais como a quintessência holandesa que o fato de eles zombarem de equipamentos de segurança e, ao mesmo tempo, serem os líderes mundiais em treinamento de neurocirurgiões.
Não tive problemas para encontrar o imenso Instituto Holandês de Análises Forenses, um quadrado de vidro negro sobre uma encosta verdejante que me fez pensar na máscara do Darth Vader. O lugar era uma vasta organização, com quase seiscentos profissionais. Lá dentro, senti-me imerso num mundo branco composto por jalecos, lentes de microscópio e máquinas intrigantes, visíveis através das janelas de vidro dos laboratórios enquanto eu seguia Goos pelos corredores.
Perguntei aonde estávamos indo.
— É meio difícil fazer isso na ordem certa — respondeu ele. — Mas temos resultados em cinco laboratórios diferentes: DNA, medicina legal, microinvasiva, balística e digitais.
— O que é microinvasiva?
— Você vai ver. Eles têm um microscópio especial, desenvolvido para observar minúsculas fissuras no bloco do motor de carros de corrida. — Ele balançou a cabeça ante essa escolha de prioridades. — Vamos começar com o seu favorito. — A última palavra veio com forte sotaque australiano.
No gelado laboratório de medicina legal, colocamos toucas de plástico e aventais cirúrgicos. Goos me conduziu até uma mesa de aço inoxidável na qual foram dispostos três esqueletos quase completos: de acordo com Ferko, os restos mortais de Boldo, seu irmão e seu filho. As lâmpadas especiais de tungstênio davam ao laboratório uma claridade que parecia superar a luz do dia.
— Ok — disse Goos —, vamos relembrar o que queremos fazer.
— Corroborar o depoimento de Ferko e descobrir o máximo possível sobre quem matou essas pessoas.
Pela maneira lenta como ele assentiu, percebi que não conseguira mais que uma nota seis no teste. Eu tinha deixado passar algumas questões subjacentes, especificamente a idade dos ossos e a causa das mortes.
— Quanto você sabe de medicina legal, Boom? Não quero dar explicações desnecessárias.
— Explique quanto quiser, Goos. Atuei na área de colarinho-branco durante toda a minha carreira. Crimes envolvendo ganância, não violência. Não passei muito tempo em lugares como esse. — Minha única visita ao laboratório de medicina legal como promotor ocorreu quando os Black Saints Disciples mataram um jovem que concordara em testemunhar para o governo. Os agentes do caso queriam que eu visse o que tinham feito com o garoto, o que não havia sido nada bonito.
Goos tirou uma ponteira laser de baixo do avental e me mostrou os vários pontos da pélvis empregados para determinar o gênero e a idade dos corpos. No laboratório, ele era expansivo e parecia maravilhado com os refinamentos científicos em seu campo desde que tinha saído da faculdade. O DNA estabelecera que os restos mortais pertenciam a três homens, e análises estatísticas das mudanças ocorridas ao longo do tempo na pélvis, nas pernas e nos dentes de uma ampla população (incluindo, de acordo com ele, “a densidade dos vasos sanguíneos”) haviam permitido determinar suas idades. Apesar de todos os avanços forenses, o resultado estava próximo de sua estimativa original feita a olho nu. Dois dos homens tinham cerca de 40 anos — talvez 40 e 45 — e o terceiro fora um adolescente de uns 15 anos.
Goos havia calçado luvas para manusear os esqueletos. Os ossos agora possuíam um brilho suave, resultado de uma camada plástica protetora que tinha sido aplicada para evitar degradação. Ele inclinou o topo de um crânio na minha direção.
— Você notou algo diferente nesse cara? — Havia um buraco quase perfeitamente redondo no centro da testa, com uma rede de finas fraturas ao redor. Na parte de trás, havia um buraco muito maior.
— Bala?
— Sim, promotor, seria minha opinião de especialista que esse pobre-diabo levou um tiro na cabeça. E bem de perto. — Ele inseriu a ponteira laser na órbita ocular para que eu pudesse ver a luz através do buraco frontal. — Temos uma superfície perfurada, pequenos fragmentos de ossos ausentes e uma chanfradura na camada externa do crânio. Temos um buraco maior aqui — disse ele, indicando duas costelas do mesmo esqueleto. — Tenho quase certeza de que ele foi atingido primeiro a distância. A oscilação da bala aumenta com a distância, criando buracos maiores.
Então ele narrou o exame dos outros dois esqueletos. O “jovenzinho”, em suas palavras, havia levado um tiro na mão e outro no peito, no qual o pequeno ferimento de entrada sugeria que a bala se fragmentara. O terceiro conjunto de ossos — aparentemente do irmão que sangrara até a morte — não exibia buracos de balas, o que seria consistente com ferimentos de entrada nos tecidos macios e órgãos.
— A última coisa relevante — avisou Goos, abrindo a mandíbula do esqueleto do meio — é que todos os três têm dentes faltando, inclusive o carinha mais jovem. Eu diria que eles tiveram poucos cuidados dentários.
— O que significa que eram pobres?
— Ou que não gostavam de dentistas. Mas digamos que eram pobres.
— Como as pessoas em Barupra?
— Como a maioria das pessoas do mundo, mas as de Barupra também.
Ele depositou o crânio novamente sobre a mesa, causando um ruído abafado.
— Acabamos aqui — disse ele, retirando a touca.
Caminhamos pelo corredor até as escadas. Goos cumprimentou várias pessoas usando jalecos. Suspeitei que, naquele local, alguém com um doutorado recebia muito mais respeito que um humilde policial. No segundo andar, entramos por uma porta com a placa LABORATÓRIO DE MARCAS DE INSTRUMENTOS E ANÁLISE MICROINVASIVA.
— Esse é o lugar com o microscópio especial?
— É chamado de microscópio de foco infinito.
Do lado de dentro, a primeira coisa que vi foi uma grande mesa de luz para exibição de radiografias e outros slides. Do teto, pendiam dutos de ventilação, sinos invertidos de plástico usados para aspirar vapores indesejados. Um osso longo, cuja ausência eu notara no primeiro esqueleto, estava sob o microscópio todo-poderoso.
— Aqui é meu domaine royal. — Goos se virou para mim com as mãos erguidas num gesto grandioso. — Tafonomia, o estudo da degradação corporal. Sem embalsamamento, um corpo se reduz a ossos em aproximadamente seis semanas. Descobrir se os ossos estiveram sob a terra por cinco ou quinhentos anos exige que examinemos outros fatores. Os ossos se decompõem mais lentamente que a carne, mas também se decompõem. O problema é que, como você sabe, há muito sal no terreno perto de Tuzla. Isso faz com que a superfície dos ossos se degrade mais rapidamente, o que significa que podemos concluir que os restos mortais são mais velhos do que realmente são. E é aí que entra o nosso amigo microscópio. Quando serramos os ossos, o interior apresenta decomposição independente do contato com a terra. Eu diria que esses ossos estavam enterrados há mais ou menos dez anos, e o Dr. Gerber, o maioral dessa área, concorda.
Refleti sobre o que ele havia me mostrado até então.
— De modo geral, eu diria que Ferko está se saindo muito bem.
Na segunda-feira após nosso retorno de Tuzla, eu contara a Goos sobre a súbita lembrança de Ferko em relação às ameaças de Kajevic. Ele reagira basicamente da mesma maneira que eu. Não era um grande problema em si, mas significava que tínhamos que analisar a história com ainda mais cautela. Assim, era reconfortante saber que os resultados laboratoriais pareciam corroborá-la.
— Até aqui, sim — declarou Goos. — Mas as coisas estão prestes a ficar um pouco mais complicadas. Vamos falar sobre a análise de DNA, porque é aí que surgem os problemas. Posso acessar o relatório desse computador. — Ele começou a digitar algo.
Eu era melhor em DNA que em medicina legal, pois essa ciência se provara reveladora em todo o universo criminal. Era possível extrair DNA de uma digital borrada num cheque, como acontecera com um desafortunado cliente meu que havia subornado um oficial de zoneamento do condado pagando a faculdade do filho dele.
— A análise de DNA de ossos enterrados é complicada. Sempre aparecem pequenas criaturas no solo que corroem os ossos e deixam seu próprio DNA para trás.
A descrição dos métodos de extração desenvolvidos para reduzir a contaminação do solo foi profunda, mas eu consegui acompanhar. A comparação entre amostras do interior dos ossos e da superfície ajudava a isolar os efeitos microbianos.
— Fizemos análise do DNA mitocondrial e do STR-Y — disse Goos.
— O mitocondrial vem do lado materno e está menos sujeito à contaminação, certo?
— Muito bem, Boom. O lado materno mostra que mais de setenta por cento do genoma de cada um dos homens é consistente com origens indo-arábicas.
— Era isso que esperaríamos se fossem roma, certo?
— É o que dizem os especialistas. O STR-Y foi muito mais complicado. A boa notícia é que todos os três exibem um cromossomo Y em comum, o que seria de se esperar se fossem pai, filho e tio. Mas mesmo esse resultado foi difícil de obter por causa dos problemas de contaminação.
O problema clássico de contaminação, mesmo num cenário laboratorial, vinha do fato de que não havia como afirmar a origem do DNA que estava sendo examinado. Poderia ser sangue, osso ou pele de um indivíduo ou uma partícula de caspa de um dos investigadores.
— Mesmo depois que isolamos os efeitos microbianos, as células de cristal ósseo da superfície apresentaram muito mais contaminação humana que as do interior. E, se esses ossos permaneceram debaixo da terra durante dez anos, esse não deveria ser o caso, a menos que eu e meus escavadores tenhamos sido muito mais descuidados com a exumação do que eu imaginava.
“Esse resultado se alinha ao que eu disse a você em Barupra, ou seja, que detectei solo superficial dentro da cova. A professora Tchitchikov, nossa geóloga, confirmou isso. A conclusão, Boom, é que alguém escavou aquele local muito recentemente. E é provável que tenha tocado nos ossos.”
— E o que isso significa?
— Vamos ver os outros resultados.
Caminhamos alguns passos até o laboratório de balística. Através de uma janela nos fundos da sala, eu podia ver dois homens em trajes de proteção brancos prontos para disparar espingardas contra a porta de um carro. Goos, que tinha ido conversar com um técnico assim que entramos, voltou com um envelope do qual retirou dois objetos: uma bala intacta de cerca de cinco centímetros e um fragmento destroçado com o interior reluzente. O brilho intenso, como uma joia polida, num objeto que fora letal para outro ser humano me lembrou da curiosa beleza de um slide de células cancerígenas que o oncologista da minha mãe nos mostrara.
— A primeira coisa que notei — começou Goos — foi que não havia nada nos supostos ferimentos de bala que observamos no laboratório de medicina legal que se mostrasse inconsistente com esses projéteis. Eles são remanescentes do que às vezes se chama munição Yugo M67, comumente usada em Zastavas, com revestimento metálico, ponta arredondada afilada e 7,62 por 39 milímetros. Essa foi uma das grandes contribuições do marechal Tito para a humanidade: a criação de um projétil para rifles no estilo Kalashnikov que cria um ferimento de entrada maior quando é desestabilizado pelo corpo. Mas é aí que os nossos resultados começam a ficar confusos.
Goos foi até o computador e abriu uma série de fotos dos fragmentos, ampliadas para cerca de quatro vezes o que o olho humano é capaz de observar. As fotos mostravam as estrias criadas pelas saliências existentes no interior do cano das armas, a fim de aumentar a rotação das balas.
— Primeiro, pode-se dizer, pelas ranhuras, que os projéteis foram disparados por duas Zastavas diferentes. Mas é a bala intacta — ele levantou a peça de metal — que apresenta problemas. Os caras daqui não conseguiram combinar nenhum dos ferimentos que vimos nos restos mortais no laboratório de medicina legal com o fato de uma bala desse calibre e poder de fogo ter permanecido intacta no interior do corpo. Se o projétil tivesse atingido um osso, apresentaria alguma compressão. Se tivesse passado apenas pela carne, considerando-se onde Ferko disse que os chetniks estavam posicionados, teria atravessado os corpos e, consequentemente, não teria sido enterrado com eles. Está acompanhando?
Estava. Eu e Goos sabíamos que todo caso apresentava suas anomalias, coisas que os especialistas achavam inescrutáveis e que eram atribuídas a um princípio universal: merdas acontecem. O mais famoso exemplo no mundo da balística era a teoria da “bala mágica” do assassinato de JFK, em que um único disparo parecia ter atingido o governador Connally e então se desviado, acertando o presidente Kennedy em dois lugares diferentes. Eu disse isso a Goos, mas ele meneou a cabeça.
— Ainda tem mais, parceiro. Vamos olhar as digitais.
Entre as ciências forenses que estivéramos discutindo, digitais era a que eu conhecia melhor. Eu não era especialista, mas estava familiarizado com o jargão de sulcos, espirais e pontos de comparação. O laboratório era menos dramático que os outros: apenas microscópios e computadores com monitores enormes, protegidos por uma cobertura preta de metal para evitar reflexos. Mesmo assim, segundo Goos, era um dos mais avançados laboratórios de digitais do planeta. Ao realizar análises computadorizadas de centenas de milhares de digitais recolhidas em todo o mundo nos últimos vinte anos, o instituto tinha sido capaz de atribuir probabilidades estatísticas aos padrões de sulcos, podendo dizer quão frequentemente determinada característica surgia na população humana, assim como era feito havia anos com o DNA. Em função de disputas científicas recentes sobre a unicidade das digitais, a técnica do instituto parecia destinada a se tornar o novo padrão. Mas o antigo método, no qual vapores de supercola eram usados para revelar os detalhes, ainda era bom o bastante para nossos objetivos.
— Eles encontraram duas digitais intactas, uma em cada bala. A parte preocupante é que ambas vieram do mesmo dedo.
Ele esperou que eu registrasse a importância do que tinha dito. A balística já estabelecera que as balas recuperadas haviam sido disparadas por duas armas diferentes. Parecia improvável que a mesma pessoa tivesse carregado ambos os rifles. Mas essa parecia ser a única explicação inocente.
— E aqui está a digital da bala intacta. — Depois de um minuto de pesquisa, Goos exibiu a imagem no imenso monitor à sua frente. Era a imagem negativa padrão obtida com vapores de supercola, mas fora colorida de amarelo contra um fundo anil. Goos deu um zoom para que a digital sobre a bala ficasse clara. — Notou algo?
Eu não havia notado. Era uma bela digital intacta.
Ele usou o lado sem laser da ponteira para me mostrar.
— Está vendo aqui?
Finalmente consegui ver. A digital se estendia para além da linha da cápsula. Isso significava que a bala havia sido manuseada depois de ser disparada.
— Talvez crianças brincando pela área?
— Acho que não, Boom. O fato é que a cova foi adulterada. A partir da contaminação de DNA, já era possível dizer que alguém havia manuseado os ossos e, considerando-se as digitais e o fato de que a bala intacta não combina com os ferimentos nos restos mortais, é provável que essas balas tenham sido plantadas, não apenas tocadas por algum garoto se metendo onde não devia. Alguém está brincando com a gente, Boom. Pode ser que quem quer que tenha retirado coisas da cova também tenha deixado outras para trás. Mas alguém adulterou as nossas evidências. Esse é ponto principal.
Não era uma conclusão agradável.
— Estavam tentando nos enganar? — perguntei.
— Não consigo pensar em outra razão para se plantarem balas, mas isso não significa que elas não existam.
Fiquei ruminando sobre isso em silêncio.
— O passo seguinte — continuou Goos — envolve a professora Tchitchikov. Vou enviar a ela um pedaço de cada um dos esqueletos para que ela possa combinar os minerais que os ossos absorveram com as amostras de solo das covas. A professora precisa fazer a análise química antes de analisar o local na Bósnia.
— E quanto a examinar a caverna?
— Ela vai fazer isso também. — Goos, impassível e com os usuais olhos lacrimejantes, me encarou por um instante. — Tem um número suficiente de coisas estranhas aqui para você querer ir junto.
Gemi em sinal de protesto. Eu não pretendia voltar para a Bósnia tão cedo, especialmente para receber notícias ruins.