18.

Acordo — 15 a 28 de maio

Cinco dias depois, na manhã de sexta-feira, eu estava lendo o New York Times no tablet enquanto tomava café na cozinha. Quando as principais notícias surgiram na tela, passei por um daqueles momentos em que sua visão oscila e seu coração parece parar quando você percebe que a vida que conhece e valoriza mudou contra a sua vontade.

Um artigo no lado inferior esquerdo da página dizia o seguinte:

EXÉRCITO BLOQUEIA TRIBUNAL INTERNACIONAL E OTAN EM INVESTIGAÇÃO DE MASSACRE DOS ROMA

Os Estados Unidos estão se recusando a cumprir uma requisição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) por registros do Exército americano que fazem parte da investigação realizada pelo Tribunal Penal Internacional sobre o suposto massacre de quatrocentos roma na Bósnia, em 2004. Soldados americanos que serviam como agentes de manutenção da paz da OTAN na área são suspeitos em potencial no caso.

Os Estados Unidos não são membros do Tribunal Penal Internacional, e suas leis proíbem cooperação americana nas investigações do tribunal, mas juristas afirmam que as obrigações americanas para com o tratado parecem exigir que o Exército entregue os registros à OTAN. Os Estados Unidos se recusaram a fazê-lo e, supostamente, protestaram veementemente contra o fato de a OTAN entregar registros de seus próprios arquivos.

A situação teria causado sérias tensões no comando central multinacional da OTAN na Bélgica e considerável consternação no Tribunal Penal Internacional, que não dispõe de recursos formais para forçar a colaboração americana.

Em março, um sobrevivente do massacre depôs no tribunal, que fica em Haia, na Holanda, dizendo que, em abril de 2004, quatrocentos roma do campo de refugiados de Barupra, na fronteira da base americana, foram levados sob a mira de armas por soldados mascarados e enterrados vivos em uma mina de carvão. A testemunha não foi capaz de identificar a afiliação militar dos soldados, mas disse que não falavam servo-croata, a língua dos soldados e paramilitares locais.

O suposto massacre ocorreu semanas depois que quatro soldados americanos foram mortos e outros oito ficaram feridos durante uma tentativa fracassada de capturar o líder dos sérvios bósnios, Laza Kajevic. De acordo com fontes da OTAN, suspeita-se que os roma de Barupra forneceram alguns dos equipamentos usados pelas forças de Kajevic.

A segunda metade do artigo citava um ex-general da Justiça Militar e dois professores de direito, que foram questionados se o Exército podia se recusar a fornecer os registros, dadas as atribuições conflitantes da Lei de Proteção aos Membros do Serviço Militar, de um lado, e o tratado da OTAN, o Acordo de Dayton e o estatuto de forças da OTAN, do outro. O ex-general a chamou de “questão difícil, mas uma na qual o Exército pode não prevalecer”, enquanto os dois professores acreditavam que as obrigações do tratado claramente prevaleciam, ainda mais em relação a registros que não estavam armazenados nos Estados Unidos.

Li o artigo várias vezes. Ele alegava ser baseado em múltiplas fontes e estava especialmente claro que alguém da OTAN tinha aproveitado a oportunidade para irritar os americanos. Mas também havia detalhes relacionados ao tribunal — que havia consternação em relação a como responder à recusa americana — que me deixaram com a nauseante sensação de que sabia de quem a repórter recebera a dica.

Meu telefone tocou enquanto eu pensava. Era um número restrito, o que nunca é um sinal encorajador.

— Ora, mas você é um filho da puta esperto. — Era Roger.

Pelos meus cálculos, passava um pouco da meia-noite em Washington, o que significava que o alarme havia soado no Departamento de Estado assim que o Times postara a notícia, havia cerca de uma hora. Tinha sido Roger quem convencera seus colegas de que eu era um sujeito correto que faria tudo nos conformes.

— Não fui eu, Roger.

— É claro que não. Você é inteligente demais para isso, Boom. Foi aquela piranha que você chama de namorada.

Duas palavras ressoaram: “piranha” e, especialmente, “namorada”. Por que eu não tinha pensado na possibilidade de a CIA estar me seguindo? Ou será que estavam seguindo Esma?

Roger havia trabalhado um bocado durante aquela hora e cobrara alguns favores. Ninguém no Times lhe entregara o nome de Esma, mas ele arrancara o suficiente de alguém — provavelmente três ou quatro pessoas — para deduzir a resposta. Tive uma reação de litigante ao seu tom ríspido e não me mostrei disposto a admitir nada.

— Leia o artigo de novo — falei. — Eu não tenho a menor ideia do que está acontecendo na OTAN em Bruxelas. Vá acordar outra pessoa.

— Vai se foder. Não me venha com essa. Você sabe como isso funciona. Uma pessoa fala, e então outra cospe tudo para fazer as coisas se virarem ao seu favor. Mas a corrente começou com a Srta. Cigana Gostosa. Eu sei disso. E sei como ela trabalha. Estou certo de que toda a rede ativista está pronta para começar a gritar: a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, junto com vários congressistas de esquerda que odeiam ter que fingir que respeitam os militares. Mas vou dizer uma coisa, Boom: isso não vai dar certo. Eu não achava que você fosse tão baixo.

Uma coisa a que advogados se acostumam é ter brigas sérias com os próprios amigos. Quando era procurador, eu havia observado incontáveis ex-colegas entrarem pela porta do meu gabinete, furiosos e indignados com as minhas decisões sobre seus clientes. Fazia parte do trabalho.

— Pare de bancar o nobre ofendido, Roger. Não fui eu. E não seria nada comparado ao que você fez comigo. Você me mandou para cá com um por cento da informação que possuía. Você realmente achou que eu não perceberia todas as evidências apontando para os soldados americanos?

Ele hesitou por um instante.

— E por que você acha isso?

— Rog, você não está me pedindo para quebrar as regras de confidencialidade da investigação, está?

— Ah, vai se foder!

— Eu quero perguntar uma coisa. Essa é a primeira vez que você ouve dizer que os roma de Barupra forneceram parte do equipamento usado por Kajevic quando ele matou aqueles quatro soldados?

Ele permaneceu em silêncio.

— Alguém contou a você, Rog, que os roma traíram os americanos?

— Você é um babaca — falou antes de desligar.

Liguei para Esma logo em seguida.

— Como você ousa? — perguntei assim que ouvi a sua voz. — Depois de tudo que me disse sobre escolher a mim, e não ao caso?

— Bill? — perguntou ela. Eu claramente a havia acordado.

— Você tirou vantagem da minha confiança e do que dividimos na cama.

Eu conseguia ouvir a respiração dela, analisando suas opções. Presumindo que estivera dormindo, ela ainda não havia lido o artigo e não podia saber quanto seu papel fora revelado.

— Eu fiz o que você queria, mas não podia fazer por si mesmo — declarou ela, por fim.

Desliguei o telefone sem dizer mais nada.

Fui para o trabalho pedalando com a sensação de que estava indo para a forca. A única coisa positiva foi descobrir que não queria perder aquele emprego, especialmente não em desgraça.

Eu estava no meu pequeno escritório havia não mais que dez minutos quando Goos entrou e fechou a porta. Ele apertou os lábios, tentando não sorrir. Estava feliz, mas parecia de ressaca. Concluí que quinta-feira era noite de farra em Haia.

— Eu diria que foi uma excelente ideia, Boom. Brilhante.

— Pode até ter sido, Goos. Mas não fui eu.

— É claro que não — disse ele prontamente.

— Estou falando sério. Pode ter sido minha culpa, mas não foi proposital.

Ele apoiou o peso do corpo num dos pés, depois no outro. Estava acostumado ao mundo do tribunal, no qual havia tão pouco poder formal que todos tiravam vantagem do que quer que obtivessem. No caso do Sudão que eu estivera revisando, o investigador havia atraído testemunhas com um falso vazamento, que os jornais engoliram, de que um informante cooperava conosco. Mas a tática tinha sido aprovada pelos chefes.

— Bom, eu acho que vai funcionar, a despeito disso — comentou Goos.

— Se eu não for mandado embora.

— Mandado embora? Parceiro, você não faz a menor ideia de como esse lugar funciona.

Uma hora depois, fui convocado para uma reunião com o comitê executivo do TPI. Sentamos ao redor da mesa de canto do escritório de Badu, em frente às amplas janelas. Enquanto nos cumprimentávamos, o velho lia o que parecia ser uma impressão da versão on-line do artigo. Ele o colocou sobre a mesa quando todos se sentaram.

— Sabemos como isso aconteceu? — perguntou ele.

Octavia Bonfurts, uma ex-diplomata que parecia a avó de alguém e representava a Seção de Complementaridade na reunião, falou antes que eu pudesse sequer pigarrear.

— Essa gracinha tem o DNA de Gautam — comentou ela. — Eu conferi os arquivos. Essa repórter traçou o perfil de Gautam quando ela foi nomeada. Olhe para o cenário pesado de evidências contra os americanos.

Badu assentiu. Conforme a discussão prosseguia, descobri que ele se sentira obrigado a informar a presidente do tribunal, que atuava como chefe-executiva do TPI, sobre a solicitação de documentos à OTAN. Ela, por sua vez, provavelmente havia informado os dois outros juízes do comitê administrativo, e uma delas era a juíza Gautam. Além disso, ao considerar a observação de Octavia, o breve resumo do depoimento de Ferko soava muito como Gautam. Como dissera Roger, os vazamentos tinham um efeito de adesão: uma vez que a história se tornava conhecida, todos queriam contar sua versão.

Akemi, com seu corte de cabelo assustador, que mais parecia uma peruca, e seus óculos pesados, estava inclinada sobre a página, quase tocando-a com o nariz. Como sempre, focava nos detalhes.

— Esses ciganos forneceram equipamento a Kajevic? Que tipo de equipamento?

Expliquei o que sabíamos sobre os caminhões e os motivos pelos quais tanto os americanos quanto Kajevic poderiam ter desejado se vingar após o ataque. Em torno da mesa, meus colegas fizeram gestos de aprovação, intrigados e até mesmo impressionados com o que tínhamos descoberto. Eu estava tão aliviado pela maneira como as coisas haviam transcorrido que queria abraçar todo mundo.

Discutimos possíveis respostas americanas ao artigo. Parecia não haver nenhuma boa alternativa, exceto empinarem o nariz e ignorarem todo mundo, o que provavelmente não valeria a pena, uma vez que, na perspectiva global, tratava-se de uma questão menor.

Badu colocou suas grandes mãos sobre o papel, dando sua característica risadinha abafada.

— Acho que isso funcionou muito bem.

Quando nos retiramos, suspeitei que uma votação secreta revelaria que ao menos metade das pessoas na sala acreditava que Badu era a fonte do vazamento.

Eu não tinha visto Narawanda desde o incidente com Esma, na madrugada de sábado, e percebi que sua ausência não era acidental. Quando cheguei do trabalho na sexta-feira, ela estava usando seu traje preto de lycra e uma touca de tricô para combater o feroz vento marinho que soprava aquela tarde. Eu a pegara novamente com uma das pernas esticada sobre o encosto do sofá. Todas as vezes que a via pronta para se exercitar, ela parecia outra pessoa. Hoje, com o cabelo completamente coberto, isolando o rosto redondo e ocre, parecia uma monja budista. Ela baixou os olhos assim que me viu.

De costas para mim, perguntou, com o tom artificial que adotava quando se sentia muito desconfortável, se deveria esperar por mim.

— Por favor — respondi.

Eu me troquei e voltei em um minuto. Ela havia colocado luvas nesse intervalo.

— Nara, eu preciso me desculpar novamente.

— Não, não. — Ela balançou a cabeça com força, mas ainda estava constrangida demais para me encarar. — Essa casa é sua também. Você deve agir como quiser aqui dentro. Se a minha cabeça não estivesse nas nuvens, eu teria ligado.

Poderíamos continuar nos culpando por muito tempo. Ergui as mãos para indicar o empate e comecei a me alongar.

— Ela é a advogada roma? — perguntou Nara. — Quando você disse o nome dela, eu o reconheci dos artigos sobre o caso que li on-line.

Eu me endireitei. Havia muita coisa resumida naquela frase. Em primeiro lugar, eu estava surpreso por Nara ter ficado suficientemente curiosa a meu respeito para fazer uma pesquisa. O mais importante, porém, era minha preocupação de que ela compreendesse o papel de Esma no caso.

— Você sente que deveria me reportar?

— Por transar? — perguntou ela, boquiaberta.

Sua escolha de palavras era frequentemente divertida, mas, dessa vez, não consegui conter o riso.

— Por transar com alguém envolvido no caso.

Nara balançou a cabeça para indicar que não entendia a pergunta.

— Não conheço bem as regras do tribunal, mas, no nosso, ela não teria nenhuma função oficial. Além disso, você não compreende como Haia funciona. Tantas pessoas longe de casa por tanto tempo. Sempre há romances e segredos. Você ficaria surpreso com o que é voluntariamente ignorado por aqui.

Eu não tinha certeza de que as infrações de outras pessoas poderiam minimizar a minha, mas achei a análise gentil. Também notei como era instintivo para ela se tornar advogada de defesa.

— Ela é muito bonita — continuou Nara. — Com um corpo impressionante. — Dessa vez, seu levíssimo sorriso irônico se esgueirou para fora das sombras por um momento. — Ela enfeitiçou você?

— Com certeza. Mas eu estou bastante irritado com ela... E comigo mesmo, por não ter me mantido afastado.

— O sexo exerce um grande poder sobre os homens — comentou ela. — Disposição também. Uma mulher que irradia experiência e confiança é muito sexy, não é?

— Sim.

A expressão de seu rosto se fechou um pouco.

— Eu era virgem quando me casei. Prometi à minha mãe e não consegui quebrar a promessa. Agora me arrependo disso. — Seus olhos estavam voltados para o chão outra vez. Então ela se recuperou e disse que deveríamos correr.

A observação sobre a sua virgindade não havia sido uma completa surpresa, uma vez que eu nunca sabia o que ela diria. Mesmo assim, quando começamos a correr, fiquei intrigado com a nota de arrependimento sobre sua vida sexual.

Fiquei feliz por ter seguido seu exemplo e estar usando touca e luvas. O vento do mar do Norte era como um furador de gelo. Mesmo assim, mantivemos um bom ritmo no parque por quase uma hora. Em seguida, por causa do tempo, encontramos um canto no interior de um café na Plein.

— Como foi em Londres? — perguntei.

— Claramente não foi bem, já que voltei um dia antes.

Eu não sabia se Nara estava irritada comigo por me fazer de desentendido ou simplesmente aborrecida com a lembrança, mas expliquei, arrependido, que não fazia ideia de por que ela voltara antes e achava que pudesse ter sido uma mudança nos planos de Lew. A observação causou um sorriso amargo.

— Os planos dele mudaram, de certa forma. Lewis me pediu para arrumar um emprego em Nova York.

— Ah — foi só o que eu disse.

— Nós falamos sobre isso antes de nos casarmos. Agora ele age como se todas aquelas discussões não contassem.

— Tenho certeza de que ele foi sincero quando vocês conversaram, mas é difícil ficar longe de casa. Eu gosto de Haia, mas precisaria pensar muito antes de me comprometer a ficar aqui para sempre.

— Ele também pensou muito. E como eu vou conseguir um emprego nos Estados Unidos? O mercado de trabalho para advogados não está muito bom. E eu adoro meu trabalho aqui. Quando Kajevic for capturado, e algum dia ele vai ser, vou fazer parte do time de defesa. O Sr. Bozic já me informou a respeito.

— Não acho que você deva contar com a captura de Kajevic, Nara. Faz o quê, quinze anos?

— Sim, eu sei. O que quero dizer é que tenho cada vez mais responsabilidades no tribunal, e gosto disso.

Tendo falhado no meu próprio casamento, eu não me via como um bom conselheiro, mas ela claramente buscava algum tipo de conforto.

— Algumas pessoas se casam e moram em cidades diferentes.

— Separadas por um oceano? Decidimos que não queríamos viver separados.

— Então vocês podem alternar: cinco anos em Nova York, cinco aqui. Também conheço casais que fazem isso.

Ela balançou a cabeça com um ar infeliz. Normalmente estoica, Nara estava quase chorando. A despeito da franqueza da nossa conversa, ainda havia assuntos que não podiam ser abordados e provavelmente eram dolorosos para ela, especialmente a questão dos filhos.

— Não é só uma questão de aqui ou lá — explicou ela. — É a ideia de que ele acha que pode simplesmente fazer um anúncio. Lewis sempre foi muito autossuficiente. Mas ele me ameaça com isso.

Nara descrevia o marido como “insular”. Minha impressão era de que, na época do casamento, ela havia achado a distância entre os dois confortável para sua própria reticência, mas isso e o distanciamento emocional começavam a incomodá-la.

Eu sentia empatia pelo problema de ter um cônjuge que parecia inatingível. Em alguns momentos, Nara falava do casamento como eu poderia ter falado do meu próprio no mesmo estágio, presumindo que estivesse disposto a discuti-lo com a mesma abertura destituída de malícia dela. No longo prazo, o relacionamento dos dois provavelmente não era uma boa aposta. Mas eu teria ficado petrificado se alguém me dissesse isso e considerado o presságio ofensivo. Talvez, como eu e Ellen, Lew e Nara tivessem filhos e essa satisfação pudesse solucionar grande parte da distância entre eles.

— O casamento é algo difícil, Nara. É parecido com o comentário de Churchill sobre a democracia. É uma ideia terrível, mas melhor que suas alternativas. Pelo menos para a maioria das pessoas.

Ela havia bebido mais cerveja que o normal durante a conversa e, enquanto caminhávamos de volta para casa, me deu um tapinha camarada nas costas.

— Você é um bom amigo, Boom. Muito obrigada.

A cobertura do conflito entre o Departamento de Estado americano e a OTAN continuou durante a semana seguinte. Como a Bósnia era a primeira operação real de combate na qual a OTAN havia se envolvido, muitas questões que deveriam estar solucionadas havia muito tiveram que ser decididas pela primeira vez. A maior parte dos registros da SFOR — como a operação bósnia era conhecida na OTAN — ou de suas cópias digitais estava guardada nos arquivos da OTAN na Bélgica. Embora isso me parecesse uma das maneiras idiotas que a justiça encontra para resolver questões difíceis, a localização física dos arquivos era central na análise legal, porque a Lei de Proteção aos Membros do Serviço Militar só se aplicava em território americano.

A competição política também estava a toda. A Casa Branca e o Departamento de Estado assumiram um tom diferente do Departamento de Defesa, uma vez que a história não estava sendo favorável aos Estados Unidos. Surgiram referências on-line a “um novo My Lai”, o massacre de quinhentos vietnamitas por forças americanas mais de quatro décadas antes, que Merriwell citara como um evento marcante dos seus primeiros dias como oficial. Num mundo de notícias superficiais, os relatos só mostravam os Estados Unidos ignorando perguntas para as quais nossos aliados queriam respostas. Os jornalistas, que por preconceito profissional desprezavam os segredos burocráticos, faziam a festa. Badu e Goos estavam corretos: a estratégia havia funcionado muito bem. A propaganda pareceu animar até mesmo os bósnios, que aprovaram nossa segunda viagem, agora dependendo apenas de quando fosse conveniente para a professora Tchitchikov.

Esma ligava várias vezes ao dia, mas eu me recusava a atender. Por fim, ela deve ter pegado emprestado o telefone de outra pessoa.

— A gente pode se encontrar para discutir isso? — perguntou ela.

A estratégia era risivelmente transparente. Entrar comigo num quarto e deixar a cabeça de baixo pensar pela de cima.

— Não acho uma boa ideia, Esma. Gato escaldado...

— Ah, por favor, Bill. Não seja tão melodramático. Foi um erro de cálculo da minha parte. Eu achei que você ia adorar.

— Esma, claramente eu me importo mais com princípios do que você.

— Bill, não seja condescendente. Não podemos resolver isso pelo telefone. Posso estar em Haia no próximo fim de semana.

— Não faça isso, Esma. Você vai perder o seu tempo.

Desliguei, embora com bastante pesar. Uma parte de mim não queria aceitar que tudo chegara ao fim, particularmente o elemento tônico que ela havia acrescentado na minha vida.

Na sexta-feira, uma semana após a nossa conversa na Plein, Nara avisou que tiraria alguns dias de folga e iria para Nova York.

— Parece uma boa ideia — comentei.

— Não tenho tanta certeza assim. Lewis é inteligentíssimo e sabe usar muitas palavras diferentes para dizer a mesma coisa. Ele raramente muda de ideia.

— Então você devia tentar mudar, ao menos um pouco. Você jamais vai se arrepender de dar o seu melhor pelo seu casamento.

Ela ficou na ponta dos pés e me deu um breve abraço antes de partir.

— Muito bem, seu babaca, é assim que as coisas vão ser. — Eu estava no meu escritório no tribunal, por volta das três da quarta-feira seguinte, quando meu celular pessoal tocou.

— Bom dia para você também, Rog.

— Eu quero que você saiba que, se dependesse de mim, eu mandaria tudo isso à merda. Ninguém mais vai se lembrar dessa história de registros na semana que vem.

Escolhi não fazer nenhum comentário.

— Os registros — continuou ele —, todos os registros, vão ser fornecidos para revisão do comandante supremo aliado da OTAN na época do suposto incidente.

Levei um instante para entender.

— Layton Merriwell?

Roger pigarreou.

— Acho que esse é o cara.

— Ok, então o comandante supremo, qualquer que seja seu nome, vai receber os registros. E aí?

— Se ele assim decidir, pode se encontrar com você em solo americano. E, se entregar quaisquer registros, isso vai ser decisão dele, embora seja uma clara violação da Lei de Proteção aos Membros do Serviço Militar.

Eu não conseguia entender.

— Eu e Merry vamos dividir uma cela na prisão?

— Não existem provisões criminais nessa lei, espertinho. E, como você sabe muito bem, Merriwell é a favor de liberar todos os documentos. Mas, se algum americano for acusado no futuro com base em qualquer um deles, essa pessoa vai poder alegar que os registros foram gerados em clara violação à lei e que não são evidências aceitáveis em nenhum tribunal.

Era um plano esperto, com o objetivo de reduzir o risco de que qualquer soldado americano pudesse ser acusado com base nos documentos. Eu disse a Roger que precisava vender a ideia aos mandachuvas do tribunal.

— É melhor você dizer sim agora mesmo. Porque não vai ser melhor que isso. Você tem vinte e quatro horas antes que a oferta seja retirada. Os generais vão convencer alguém do Congresso até lá. Se você aceitar, o Departamento de Estado, a OTAN e o tribunal vão publicar declarações dizendo que a questão foi resolvida e nem uma palavra a mais.

Badu e Akemi concordaram que era um acordo muito bom, partindo do pressuposto de que Merriwell revelaria todos os documentos. Mas, como tinha sido ele quem sugerira ir até a OTAN, isso parecia garantido.

Liguei para Roger para revisar algumas nuances e então concordei.

— Trato feito — falei.

— Que conste nos registros que eu discordo completamente dessa merda — declarou ele.

— Registrado.

Merriwell ligou no dia seguinte.

— Então nos encontraremos novamente — disse ele.

— Será um prazer. De volta à embaixada?

— Não, não. Precisamos nos encontrar em solo americano para preservar qualquer futura alegação de que a Lei de Proteção aos Membros do Serviço Militar foi violada. Mas a imprensa voltou a se interessar por mim de novo essa semana. Tem alguma chance de nos reunirmos na sua casa?

— No condado de Kindle?

Eu estava prestes a dizer que não tinha casa, mas percebi imediatamente quanto Ellen gostaria de disponibilizar a casa de hóspedes para solucionar uma questão que havia sido mencionada na primeira página do New York Times. E era pouco provável que até mesmo o mais intrépido repórter seguisse Merry até as Tri-Cities.

Como eu esperava, Ellen ficou animada ao ouvir o nome de Merriwell, embora eu tivesse que me desculpar por não poder explicar as razões do nosso encontro. Após comparar agendas, concordamos que eu e Merry nos reuniríamos na casa de Ellen e Howard na segunda-feira. Para complicar ainda mais a situação, a geóloga francesa avisou que estaria disponível na semana seguinte; sua agenda estava lotada nos próximos meses. Assim, fiz planos para um bate e volta entre os continentes, indo primeiro para os Estados Unidos e então para a Bósnia, a fim de me encontrar com Goos e a professora.