20.
Enterrados de novo — 2 de junho
Voei até Viena e fiz conexão para Tuzla, aterrissando no local do antigo campo Comanche. Estava esperando por Attila, mas ela enviara um dos motoristas, que me deixou em Barupra por volta das dez e meia da manhã. A primavera havia chegado desde a nossa última visita. Lá em cima, nas montanhas, ventava muito, mas o sol brilhava e a temperatura estava amena, por volta do que eu imaginava ser uns vinte graus Celsius. Goos me recebeu no topo, mas apontou para a velha mina lá embaixo, onde a geóloga francesa já trabalhava.
Considerando seu nome, eu esperava que a professora Sofia Tchitchikov tivesse a forma de uma geladeira e usasse um paletó de tweed sobre um busto considerável. Mas a mulher atlética que engatinhava no antigo local da caverna tinha uns 40 anos e cachos ruivos, vestida com um macacão azul-bebê com zíper. Ela acenou quando me viu descendo a estrada da mina ao lado de Goos.
— Olááá — cantou ela à tirolesa, enquanto pulava sobre a encosta de pedras soltas com a agilidade de uma criança.
Assim que troquei um aperto de mão com ela, a professora retirou várias pedrinhas do bolso da frente para me mostrar suas descobertas iniciais, com uma borda negra em cada uma das pedras marrons.
— Pólvora? — perguntei.
Seu inglês era muito melhor que meu francês, mas, com Goos lá para traduzir, ela permaneceu em sua língua natal.
— Talvez — disse Goos. — Certamente marcas de queimadura. Ela encontrou dezenas de pedras assim sem escavar muito, a maioria delas num raio de trezentos metros.
— O que sugere uma explosão?
Ela assentiu. Goos disse que os peritos de balística no Instituto Forense diriam com certeza e provavelmente também poderiam determinar se havia um agente explosivo presente nas pedras. Em caso positivo, talvez fossem capazes de identificar o dispositivo que havia sido detonado. Nenhum de nós sabia se a pólvora presente nas granadas americanas era diferente da pólvora nas granadas iugoslavas.
— O que Sofia pode dizer é que a explosão não é recente — continuou Goos. — A maioria dos fragmentos estava vários milímetros abaixo do material da superfície atual. Venta muito aqui. Nada fica no topo por muito tempo.
— Existe alguma maneira de dizer há quanto tempo ocorreu a explosão?
Goos e a professora tiveram uma longa conversa em francês. Rochas duram mais que seres humanos, e, por isso, o tempo geológico costuma ser medido em éons, não em anos. Ela podia dizer apenas que as marcas de queimadura nos detritos tinham menos de um século, embora a ausência de desgaste indicasse um período muito mais curto.
Ela se moveu para o lado a fim de me mostrar a linha descendente da colina. Goos traduziu, embora não parecesse estar entendendo muito mais que eu o significado do que estava repetindo.
— Lignito é o que ela chama de “rocha terciária”, que, por causa de sua maciez, normalmente se deposita num ângulo entre cinco e dez graus numa inclinação. A caverna foi formada exatamente por isso, porque o carvão afundou embaixo da rocha cretácea que o cercava. Mas a inclinação aqui, composta principalmente de lignito explodido, está num ângulo de trinta graus, o que significa que o que estamos vendo não é uma formação natural.
Enquanto Goos falava, a professora Tchitchikov fazia uma pantomina, varrendo as mãos no ar para ilustrar a explosão e os vários ângulos de depósito, os quais, em sua demonstração, envolviam deitar a cabeça sobre as mãos, como uma criança dormindo. Seu entusiasmo era encantador.
Ela era assistida por dois alunos. Antes de visitar a cova, queria que eles a ajudassem com fotos e várias medidas, empregando instrumentos portáteis, um transferidor e um compasso. Enquanto faziam isso, Goos e eu caminhamos de volta ao topo.
No banco traseiro do carro alugado de Goos, mostrei a ele os documentos que Merry me entregara. As fotos, especialmente as aéreas, naturalmente chamaram sua atenção. No voo até ali, eu revisara os cartões de registro da enfermaria e descobrira que dois soldados procuraram ajuda médica no dia seguinte, um por causa de uma mordida humana e o outro em função de uma “fratura no maxilar causada pela coronha de um rifle”. Seus nomes e números haviam sido riscados, mas não a sua unidade: ambos pertenciam à 205ª Brigada de Inteligência, Companhia Charlie, 2º Pelotão, a unidade que estava inteira de licença no dia 28 de abril de 2004.
— O que o general disse de tudo isso?
— Ele está basicamente em negação. Você já viu caras assim antes, Goos. Ele se diz agnóstico, para não parecer idiota, mas, quando chegar a hora, vai pedir a extrema-unção. Ele acredita nos seus soldados.
Goos pensou a respeito, coçando o queixo barbudo.
— Ele pode saber mais do que disse.
— Tenho certeza de que sabe. Mas ele pareceu atônito com as fotos.
— Estou bastante surpreso por ele ter entregado esse material. Eu achava que, quando dessem uma olhada nisso, simplesmente nos mandariam à merda.
— Acho que concordaram em entregar os registros sem saber o que havia neles. Não esqueça que grande parte disso estava em Bruxelas.
Após outra meia hora, a professora e seus estudantes estavam prontos para ir até a cova. Desde que Goos havia exumado os restos mortais no mês anterior, a polícia guardara o local, e havia um único oficial de serviço naquele dia. Goos havia colocado estacas de aço no chão para segurar pesados lençóis de plástico sobre a abertura, e a polícia cercara o conjunto todo com fita amarela. A primeira coisa que a professora pediu foi a remoção de toda aquela parafernália.
Quando isso foi feito, ela se deitou de bruços e enfiou a cabeça na trincheira. Após colocar luvas de plástico, recolheu um pouco de terra e deixou que corresse pelos seus dedos. Então cutucou a lateral da abertura no chão com a ponta de um lápis.
Ainda deitada lá, assentiu decididamente com a cabeça e disse a Goos:
— Ce n’est pas authentique.
Meu francês era suficiente para entender isso.
— Como assim? — perguntei a Goos, mas ele ergueu a mão e continuou ouvindo o que ela dizia. Assentiu com a cabeça por bastante tempo antes de voltar sua atenção para mim.
— Eis o que Sofia disse: normalmente, ao exumar uma cova com mais de uma década, espera-se a estratificação do solo. Mas o que encontramos aqui e enviamos para análise foi uma mistura de subsolo e solo superficial que a fez concluir que a cova foi escavada mais recentemente.
— Você já tinha dito isso, Goos.
Ele assentiu.
— Você lembra que mandei para Sofia parte dos restos mortais, para que ela pudesse examiná-los. Conforme os ossos se decompõem, certos elementos do solo em torno começam a se misturar a eles. E o que ela encontrou entranhado nesses ossos possui uma composição mineral completamente diferente do grés e do arenito dessa cova. Se os ossos tivessem permanecido aqui, teríamos encontrado magnésio e ferro em concentrações mais elevadas.
— E o que isso significa?
— Bem, eu acho que isso é o que chamamos de “cova secundária”. Vimos muito disso no Tribunal Iugoslavo, quando os exércitos tentavam limpar as valas comuns antes que as encontrássemos. A mesma coisa aconteceu aqui, mas no sentido contrário. Aqueles ossos no laboratório, que eu retirei daqui, foram removidos de algum outro lugar. Você se lembra das balas estranhas e da contaminação de DNA? Eis a explicação: essa cova foi fabricada para nós.
Tentei entender e, sem conseguir, argumentei com ele.
— Os três homens partilham o cromossomo Y. Há buracos de bala nos ossos que são consistentes com Zastavas. E acabamos de ver evidências dessas pessoas sendo embarcadas em caminhões.
— Sim. Tudo verdade. Mas esses ossos não estavam enterrados aqui, Boom. Simples assim. Lembra que eu perguntei a Ferko como ele tinha arrastado os três corpos até aqui? Lá embaixo, tem muito lignito solto. Ele poderia ter coberto os corpos onde estavam para manter os animais afastados, se essa fosse realmente sua intenção.
— Então por que eles estão aqui?
— Acho que porque é mais perto da estrada. Quando recuperaram os restos mortais, não quiseram ter o trabalho de escavar a rocha. Mas esses esqueletos não ficaram aqui por muito tempo, porque os solos locais não lixiviaram os ossos.
— Ferko mentiu?
— Parceiro, de acordo com a história dele, Ferko era a única pessoa que sabia onde os corpos estavam enterrados. Então, a menos que ele os tenha enterrado, desenterrado, armazenado em outro local durante uma década e então enterrado os ossos aqui novamente nos últimos seis meses, sim, ele mentiu.
— Merda.
Eu já estava pesando as implicações para o caso. Isso era muito mais sério que não mencionar as ameaças de Kajevic para Esma. Eu havia perdido a conta do número de julgamentos nos quais estivera envolvido como promotor e a principal testemunha contara mentiras substanciais, mas com suficiente apoio das provas para vencermos. Os membros do júri raramente ficavam surpresos quando uma testemunha canalha agia como canalha. Mas eu havia sido avisado de que, no TPI, a atmosfera de pureza moral também prevalecia nas audiências. Perguntei a Goos quão danoso isso poderia ser.
— Muito — respondeu ele, e falou, num estado de amargura revisitada, de um caso do Tribunal Iugoslavo. Com enorme esforço, eles se aproximaram de uma testemunha que havia trabalhado como guarda num campo de concentração dirigido pelos croatas. Por alguma razão, o homem mantivera um diário, e o registro escrito tinha sido corroborado nos mínimos detalhes. — Mesmo quando o desgraçado tinha escrito que estava chovendo, os registros climáticos confirmavam. Mas, depois da guerra, ele se tornou traficante, e tivemos que apresentar relatórios que diziam que tinha usado a filha de 13 anos para entregar cocaína. Quando os juízes ouviram isso, eles sequer permitiram que ele terminasse o depoimento. Você se lembra da parte da Bíblia em que a Virgem Maria ajudou a cometer assassinato em massa? — Ele estava voltando para perto da professora e fez a última pergunta se virando para mim. Então respondeu com um resmungo: — Porque é assim que esses malditos juízes esperam que as nossas testemunhas sejam.
Fiquei sentado no carro alugado enquanto Goos ajudava Tchitchikov com o restante das amostras de solo em torno da cova. Quando ele voltou, meia hora depois, eu disse:
— Vamos encontrar Ferko. Precisamos saber o que ele acha que está fazendo.
Goos me olhou esfregando a mão no queixo. Não estava inclinado a concordar. Ferko era uma testemunha protegida, e, pelas regras do tribunal, os investigadores não podiam contatá-lo diretamente; isso cabia à Unidade de Vítimas e Testemunhas.
— Não vou passar três meses fazendo a dança dos sete véus com a Unidade de Vítimas e Testemunhas só para ver se Ferko vai atender quando eles ligarem— continuei. — Estamos aqui. Vamos encontrá-lo.
— E onde seria isso, Boom?
— Sabemos que ele vive a uma hora daqui, porque Esma só o chamou quando partimos de Tuzla. Lembra?
— Talvez fosse um local temporário.
Era possível, mas não tínhamos muito a perder, à exceção de tempo. No dia em que tínhamos ido a Lijce, Attila dissera que havia outra cidade roma na vizinhança. Eu não conseguia imaginar Ferko vivendo longe do seu povo. Um dos trabalhadores disse que a segunda cidade, Vo Selo, ficava uns quarenta quilômetros a leste, dentro do enclave sérvio, Republika Srpska, perto do rio Drina. A viagem levaria cerca de uma hora.
— Você é o advogado — disse Goos, dando de ombros.
Partimos no carro alugado, outro pequeno Ford, navegando com a ajuda do GPS do celular. Era uma da tarde. As estradas principais eram surpreendentemente trafegáveis, considerando-se que eu ouvira que dirigir no inverno às vezes era impossível, em virtude de buracos e deslizamentos. Com o sol da primavera iluminando as nuvens altas, ambos relaxamos. Para mim, burlar as regras rígidas do tribunal fazia com que a viagem parecesse uma aventura dos tempos de colégio.
Quando chegamos ao rio, viramos para o norte. Enquanto Goos tentava encontrar um retorno, uma estrutura imensa surgiu subitamente à nossa frente. Ela apareceu tão de repente que parecia um castelo mágico, com proporções correspondentes. Erigida sobre uma montanha de rocha cinzenta com talvez trezentos metros de altura, à primeira vista parecia um forte construído para vigiar o rio. Foi então que notei os domos bizantinos no telhado, encimados por cruzes ortodoxas.
— O que é isso?! — perguntei a Goos.
— Se tiver sinal no celular, procura na internet.
— É um monastério — anunciei alguns minutos depois —, construído com a permissão dos otomanos em 1566, sobre os escombros de uma velha igreja da família Hrabren.
Com suas gigantescas paredes de pedra, o monastério havia sido um mundo à parte durante séculos, com vinícolas, alojamentos para hóspedes, biblioteca e um seminário. Como tantos outros lugares, era também uma relíquia da deprimente história da região. Em 1942, os croatas invadiram o monastério, torturaram os monges e os jogaram num buraco onde morreram lentamente de infecção e fome, enquanto os ustase, a versão croata dos chetniks, queimavam a maior parte das construções. O monastério tinha sido reconstruído, somente para ser queimado novamente pelos croatas em 1992, enquanto a Iugoslávia desmoronava. Dessa vez, os croatas assaltaram os cofres e queimaram todos os livros, incluindo manuscritos insubstituíveis dos séculos XVI e XVII. O monastério havia se erguido novamente após a Guerra da Bósnia, como um teimoso testemunho da dedicação dos sérvios à sua fé.
— Vamos dar uma olhada? — perguntei a Goos. Era hora do almoço, de qualquer forma.
A cidade aos pés do monastério, Madovic, era pequena, com ruas de paralelepípedos construídas para cavalos, mas não tinha o ar empoeirado e pobre das outras cidadezinhas por onde havíamos passado. Os comerciantes pareciam ter prosperado fornecendo os muitos bens que os monges não produziam. Enquanto aguardávamos por uma mesa no restaurante mais movimentado, percebemos que Madovic também era um centro médico regional. Havia um hospital de três andares do outro lado da longa rua principal, e enfermeiras e médicos, com seus longos jalecos brancos, constituíam pelo menos metade da clientela do estabelecimento.
Pouco depois de nos sentarmos, três monges passaram em longos rassas marrons, como são chamadas as batinas ortodoxas. Barbas que pareciam ninhos de passarinho caíam sobre seus peitos, quase chegando às cruzes de madeira na ponta dos cordões de oração pendurados em seus pescoços. Cada monge carregava um longo cajado de pastor e usava o mesmo exótico chapéu cilíndrico, que parecia uma cartola sem abas. Eles se moviam em passos lentos e combinados, enquanto faziam a silenciosa peregrinação de volta do hospital, onde presumivelmente rezaram pelos doentes. Escondido, tirei algumas fotos e fiz um vídeo para enviar aos meninos, que insinuaram, no fim de semana anterior, que eu vivia num estado de degradação moral porque tinha ido a um lugar tão exótico quanto a Bósnia sem encher o Instagram e o Facebook com dezenas de imagens. Eu tentara explicar que investigadores criminais geralmente não fazem registros visuais do trabalho, por mais curtidas que eles possam atrair. Mas, para aquela cena, eu estava disposto a fazer uma breve exceção. Baixei o telefone quando pensei ter visto os olhos do monge mais próximo se voltarem para mim.
Quando terminamos de comer — eu ainda não fizera uma refeição ruim na Bósnia —, caminhamos pela rua principal para olhar as vitrines e tirar algumas fotos do monastério colossal. Eram quase duas e meia quando voltamos ao carro.
Ao chegarmos, um policial surgiu da esquina atrás de nós. Parecia estar à nossa espera. Ficou claro para mim, enquanto ele dava um sermão em Goos, que havíamos estacionado em um local proibido. Dei alguns passos, mas não vi nada parecido com uma placa. De acordo com Goos, a extorsão por infrações de trânsito cometidas por turistas era comum na Bósnia e, de costas, peguei uma nota de vinte marcos convertíveis — pouco mais de dez dólares —, que achei ser o valor adequado.
O policial era muito jovem, ainda com acne no rosto, e talvez fosse apenas um daqueles novatos ansiosos, presentes nas forças policiais do mundo inteiro. Usava farda de verão: calça azul, blusa branca com dragonas e um cinto branco que incluía coldre. Assim, a pistola também estava envolvida em couro branco, o que a deixava ainda mais proeminente. Goos parecia estar agindo com uma humildade adequada à situação, desculpando-se pelo nosso erro inocente, mas o policial mantinha um tom grave, submetendo-o a perguntas mal-humoradas. Por fim, Goos pegou a nossa carta de apresentação do governo bósnio, explicando que éramos emissários do tribunal. O policial a leu várias vezes, parecendo pouco convencido, e então instruiu Goos a mantê-la aberta, segurando-a com as duas mãos, enquanto ele pegava seu velho e enorme celular e tirava uma foto. Com isso, foi embora sem o nosso dinheiro.
— O que você acha que aconteceu? — perguntei a Goos quando estávamos novamente a caminho de Vo Selo, a cidade roma.
— Não faço ideia. Suspeito que ele vá ligar para alguém para se assegurar de que a carta é verdadeira.
— Eu achei que ele queria dinheiro.
— Eu também. Fiquei esperando que começasse com o papinho usual de que pagaria a multa para nós para não nos atrasarmos.
Vo Selo estava a menos de quinze minutos de distância. Quando chegamos aos limites da cidade, Goos baixou o vidro e perguntou a um cara moreno, de aparência roma, se ele conhecia Ferko Rincic.
O homem respondeu com uma risada. Ele apontou por sobre o ombro para uma colina e, de acordo com Goos, disse que seria impossível não encontrá-lo. Então gritou alguma coisa enquanto nos afastávamos.
— Cuidado com os cães — disse Goos quando pedi que traduzisse.
— Cães?
— Ele disse “cães”.
Fazia sentido. Se Ferko temesse alguma retaliação das pessoas que massacraram todo mundo em Barupra, iria querer algum tipo de segurança.
Do outro lado da colina, ficava a cidade, que parecia ainda mais pobre que Lijce. A maior parte das habitações era como o barraco da velha mal-humorada com quem eu tinha falado: um ou dois cômodos com uma miscelânea de materiais servindo como paredes: metal corrugado ou estuque, porém, com mais frequência, lama com gravetos. Também vi pelo menos uma família na parte abandonada de um velho viaduto de concreto e várias vivendo sob lonas esticadas entre as árvores. A única exceção à pobreza predominante era uma casa que se erguia sobre Vo Selo com um efeito quase tão dramático quanto o monastério que havíamos acabado de ver. Lembrava um pouco um castelo, construída não apenas com grandiosidade palaciana mas também com monumental mau gosto. Havia nove torreões distintos, cada qual com seu balcão contendo roupa para secar. Mesmo a distância, era possível ver as cenas pintadas nas paredes de estuque e o telhado decorado com esculturas de animais — cães e sapos — sobre um gradil dourado.
— A casa do prefeito? — perguntou Goos.
— Baro Rom — respondi, repetindo as palavras que Esma havia usado para se referir a Tobar, o assim chamado Grande Homem que se estabelecera na liderança do clã.
Na rua estreita que atravessava Vo Selo, paramos novamente para perguntar sobre Ferko a uma senhora. Ela respondeu com movimentos enfáticos em direção à colina.
— Aquela lá — disse Goos depois de voltar para o volante — é a casa de Ferko. — Ele estava apontando para o palacete.
Processei a informação.
— Não pode ser o mesmo cara.
— Eu perguntei por Ferko Rincic. Você ouviu. Ela disse que a gente deve ser muito especial, porque ele trata todo mundo como se fosse imprestável, sem nem dar bom-dia.
Subimos o restante da colina e estacionamos na beira da estrada, em frente ao casarão. Agora que estava mais perto, conseguia ver que a construção ainda estava incompleta. Fios elétricos brotavam das paredes dos torreões. Ainda mais revelador, uma vala aberta perto da estrada mostrava uma canaleta sem conexões. Apesar de toda a sua grandeza, a casa parecia não ter esgoto.
O perímetro era guardado por um muro branco de estuque com cerca de dois metros e meio de altura, coberto com cacos de vidro cimentados no lugar. Havia um portão duplo de madeira da mesma altura no centro com uma tranca de ferro. Um pedaço de pau teria facilmente permitido a entrada, mas ninguém ousaria fazer isso por causa dos três cães que avançaram furiosamente, latindo e rosnando, atirando-se na fresta entre os portões e revelando gengivas rosadas e grandes dentes cobertos de saliva. Eram todos da mesma raça, malhados, mas com os rostos pontudos dos dobermanns.
Goos olhou ao redor por um tempo e então, de repente, ergueu um dedo e foi até o carro. Voltou com a quentinha na qual havia guardado parte do almoço para mais tarde e um pequeno galho que pegou na estrada. Então tirou da quentinha três cevapis, que segurou na altura do portão. Os cães subitamente se aquietaram, empurrando uns aos outros pela chance de sentir o cheiro.
— Prepare-se para correr — avisou ele.
Goos me empurrou para trás de si e ergueu a tranca com o galho de árvore. Então abriu o portão e jogou os cevapis a uns bons quinze metros na direção da estrada. Quando os cães saíram correndo atrás da comida, Goos me empurrou para dentro e trancou o portão.
Estávamos no pátio. Vimos uma fogueira, cercada por alguns potes de granito manchados, e vários tapetes e um colchão em frente à porta, o que me levou a pensar que alguns dos residentes dormiam ali. Havia um sino com uma cordinha pendendo dele perto da porta, e Goos deu um puxão. Em resposta, ouvimos vozes e movimento do outro lado.
Em alguns sentidos, a pessoa que abriu a porta era Ferko. Sem dúvida era o mesmo homem, com o mesmo nariz quebrado e os dentes estragados visíveis na boca aberta de surpresa. Mas ele usava roupas reluzentes, como se estivesse arrumado para sair com alguém nos anos noventa. Vestia uma camisa quadriculada verde-limão e turquesa de colarinho largo, aberta até quase a cintura, revelando uma corrente de ouro pesada com um relógio do tamanho de uma bandeja pendurado nela. Quando ergueu a mão, vi que todos os dedos tinham anéis de ouro grossos.
Com a porta aberta, uma mulher corpulenta, que imediatamente reconheci como a esposa que tinha visto na foto amassada que Ferko levara ao tribunal, espiou por trás dele. Agarrado à sua saia havia um menininho de uns 4 anos. Ao fundo do corredor, vislumbrei uma caravana desenhada no estuque, no decadente estilo das pinturas em veludo negro.
Ferko nos encarou por um instante, disse algo a Goos em servo-croata e bateu a porta.
— Ele disse que não devíamos estar aqui — traduziu Goos.
Tocamos o sino diversas vezes. Goos gritou em servo-croata, dizendo que Ferko tinha a obrigação de falar conosco e, como última cartada, declarou que, se não nos recebesse, não receberia sua parte nas indenizações que o tribunal poderia pagar. Depois de tudo isso, Ferko respondeu com uma frase do outro lado da porta, que Goos traduziu.
— Ele disse que ligou para um vizinho e pediu que trouxesse os cães. Vai atiçá-los contra nós se não formos embora agora.
Descobrimos quase imediatamente que não havia sido uma ameaça vazia. Um sujeito brutamontes, com a barba por fazer, de cabelo preto e oleoso e ar hostil, chegou com os cães, puxando as guias que prendera às suas coleiras. Vestia uma jaqueta de couro preta, um traje estranho para o clima, e concluí que poderia estar escondendo uma arma.
Mas estávamos em melhor posição com os cães. Eles pareciam ainda não ter se esquecido dos cevapis, e só um rosnou um pouco enquanto recuávamos.