22.
Por quê? — 3 e 4 de junho
Conversando no alto do tanque, eu e Goos concordamos que a melhor ideia era descer a escada e sair correndo. Mas havia um motivo para captores do mundo inteiro usarem lacres plásticos. Depois de esfregá-las nas bordas irregulares dos apoios por pelo menos trinta minutos, não conseguimos nada além de cortar os pulsos. A corda que estivera em torno dos nossos pescoços tinha sido deixada para trás, e eu rastejei até ela — Goos estava ferido demais para se mexer. Se pudéssemos prender uma ponta ali em cima e a outra em torno da cintura, conseguiríamos descer, mas a corda se mostrou curta demais para chegar ao chão. Sem isso, descer a escada com as mãos amarradas nas costas seria suicídio. Mesmo assim, após mais de uma hora trabalhando com as costas voltadas um para o outro, ficamos surpreendentemente bons nisso e conseguimos passar a corda por um dos degraus. Amarramos as pontas nos passadores de cinto das nossas calças, transformando a corda numa espécie de arnês. Isso permitiu que eu explorasse o topo do domo, embora não conseguisse encontrar nada para cortar os lacres. Pensamos em usar a dobradiça da porta no topo, o lugar onde deveríamos ter morrido, como se fosse um cortador de arame, mas decidimos que o mais provável era que acabássemos arrancando um pedaço da mão ou caindo lá dentro. Por fim, nos sentamos ao lado da escada para esperar o amanhecer, na esperança de que os trabalhadores, que chegariam em breve, não atirassem em nós, achando que éramos intrusos.
Com o descanso, a adrenalina começou a baixar, o que nos deixou ainda mais conscientes do desconforto. Goos estava muito pior que eu. Minha boca ainda não havia parado de sangrar, e meus ombros queimavam por tanto usar as mãos com os braços nas costas. Outros lugares também doíam, mas não o suficiente para merecer atenção. De modo geral, estávamos ambos exaustos. Goos se deitou para tentar dormir e conseguiu cochilar por algum tempo.
Durante nosso sequestro, eu havia pensado ocasionalmente na razão de tudo aquilo e, mesmo agora, não conseguia compreender. Ainda não fazia a menor ideia de em que tipo de atividade Ferko estava envolvido. Sempre houvera uma máfia na Bósnia — os mafiosos lutaram ferozmente durante a guerra e foram os primeiros a cometer atrocidades contra os sérvios —, mas eu não conseguia imaginar qual seria o benefício, para o crime organizado, de promover a história de um massacre em Barupra. Talvez os mafiosos fossem os assassinos e Ferko os estivesse encobrindo ao culpar os “chetniks”?
Logo após o nascer do sol, dois sujeitos em macacões brancos entraram na área de cascalho abaixo do tanque, num caminhão com a logomarca da mina de sal nas laterais. Estacionaram a cerca de um quarteirão, perto de onde agora conseguíamos ver um pequeno escritório de madeira. Comecei a gritar. Goos acordou e se uniu a mim em servo-croata. Eles nos ouviram relativamente rápido, mas não conseguiam descobrir de onde vinham as vozes, mesmo com Goos gritando repetidamente “Ovamo”, ou seja, “Aqui em cima”.
Quando um deles nos viu, imediatamente mandou que descêssemos. Foram necessários alguns minutos para convencê-lo de que estávamos amarrados. Em vez de nos resgatar, os dois foram chamar alguém, mas o homem que trouxeram, chamado Walter, avaliou as coisas rapidamente e estava no topo da escada com um cortador de metal em questão de minutos. Ele ordenou que os dois homens no chão trouxessem cinturões de segurança, e, quando eles foram passados por nossas cinturas, descemos a escada, prendendo e soltando o mosquetão a cada degrau. Eu estava muito mais fraco do que havia imaginado e fiquei feliz por estar preso a algo.
Walter era um cara sincero e decente e, assim que ouviu a nossa história, insistiu em chamar a polícia. Goos e eu dissemos polidamente que essa não era uma boa ideia, o que ele aceitou no mesmo instante. Em vez disso, permitiu que usássemos o telefone do escritório para ligar para Attila.
— Porra, eu devo ter ligado para vocês umas dez vezes — disse ela assim que atendeu. Attila queria saber se não precisávamos de mais trabalhadores. Expliquei rapidamente o que tinha acontecido na noite passada. — Você está brincando, não está? — questionou ela, e, em seguida, prometeu vir nos buscar imediatamente.
Walter fez café enquanto esperávamos no pequeno escritório, que tinha as dimensões de um trailer. Mais pessoas chegavam para trabalhar e se alternavam à porta para dar uma boa olhada em nós dois. Estávamos com uma aparência péssima. Grande parte da camisa de Goos estava escura por causa do sangue coagulado, e a dor que ele sentia no lado esquerdo do corpo o fazia ficar ligeiramente torto na cadeira. Meu lábio inferior estava do tamanho de uma bola de squash, e um fio marrom-avermelhado escorria do canto da minha boca até o queixo. A companhia tinha uma enfermeira de plantão. Ela levou Goos até o pequeno banheiro, lavou a ferida em sua têmpora, fez um curativo com gaze e o prendeu com uma faixa de esparadrapo que dava a volta em sua cabeça. Também enfaixou as costelas dele. Em seguida, disse que eu me encontrava em muito melhor estado. Meu queixo estava ferido e havia um calombo na lateral da minha cabeça, cortesia da coronhada. O único dano permanente era que um pedaço de um dos meus dentes da frente havia desaparecido e o do lado estava quebrado. Nossos pulsos ainda sangravam, e ela os tratou com iodo e gaze. Minha calça havia secado, mas não a minha cueca, um problema que guardei para mim mesmo.
Por meio de Goos, Walter explicou que era o vice-engenheiro-chefe e morava na propriedade, porém a mais de dois quilômetros dali, perto de onde as enormes bombas operavam. Como a pressão da água tinha que ser constante, o maquinário estava sempre fazendo barulho, e Walter não ouvia nada do que acontecia do lado de fora. Como resultado, a mina lidava com constante vandalismo desde que tinha sido aberta, havia uma década. Um segurança deveria fazer a ronda toda noite, mas não havia aparecido na noite passada. Na nossa frente, Walter ligou para o segurança, que alegou que a esposa ficara subitamente doente. Walter o demitiu na mesma hora, dizendo: “Se você trabalha para criminosos, eles que paguem o seu salário.”
— Ele é ortodoxo — explicou Walter depois de desligar —, e me disseram para não contratá-lo, mas não somos assim em Tuzla e, espero, jamais vamos ser.
Attila chegou meia hora depois.
— Meu Deus do céu — disse ela, parando de supetão ao nos ver. — Vocês precisam começar a beber em lugares melhores.
Nossa primeira parada a caminho do Blue Lamp foi uma pequena clínica, equivalente a um centro rural de emergências, para que tirassem uma radiografia de Goos. Como sempre, todo mundo parecia conhecer Attila, e o médico, um jovem que usava um jaleco branco sobre calças jeans, atendeu Goos na frente dos quatro ou cinco pacientes que aguardavam.
Recebemos boas notícias. Goos não tinha nenhuma fratura no crânio nem exibia sinais de hemorragia cerebral em decorrência do golpe com a pistola. Três das suas costelas estavam trincadas, mas nenhuma apresentava fratura, o que exigiria repouso total para que não perfurasse um pulmão. Uma enfermeira na clínica fez um curativo em sua têmpora, enfaixou novamente as costelas e nos liberou.
No carro, Attila pediu a versão integral da história, desde o momento em que havíamos saído de Barupra. Sua primeira suspeita havia sido de que os homens que nos sequestraram eram remanescentes de uma das milicija sérvias, as milícias civis, que odiavam Goos e provavelmente passaram o dia nos seguindo. Para mim, não fazia sentido. Nossos sequestradores jamais pareceram fazer distinção entre nós dois. E tiveram muitas oportunidades para nos capturar antes que chegássemos a Vo Selo. As coisas se transformaram num inferno depois de tocarmos o sino na casa de Ferko.
Para explicar, contei a Attila sobre nosso encontro com o homem a quem eu me referira como “nossa principal testemunha”. Eu tinha acabado de descrever a casa e os cães quando Attila afundou o pé no freio. Goos gritou no banco de trás quando o cinto de segurança apertou seu peito, e Attila estacionou no acostamento para ver se ele estava bem. Então se virou para mim no banco do carona.
— Ferko? Ferko é a sua grande testemunha?!
Olhei para Goos. Ele parecia estar descansando com uma das pernas estendida no banco, mas seus olhos estavam fechados, e o rosto, contraído. Tive a sensação de que sua careta expressava mais que apenas costelas trincadas.
— Como você conhece Ferko? — perguntei.
— Aquele filho da puta vagabundo trabalhava para mim.
— Fazendo o quê?
— Eu te disse. Lembra que contei como contratei ciganos? Ferko era motorista. Até que ele começou a roubar os caminhões. Aquele desgraçado ingrato. O babaca basicamente desapareceu, mas eu o vi se esgueirando por Tuzla há alguns anos, e ele correu como se estivesse nas Olimpíadas. Aquele merdinha sabe o que vai acontecer se eu o pegar.
— Mas por que ele tem uma casa enorme?
— Ferko? Porque é uma merda de um ladrão de carros. Pode-se dizer que eu o ajudei a começar a carreira, com o roubo dos meus caminhões. Agora ele rouba carros por toda a Bósnia, Croácia, Sérvia, Montenegro, a maioria por encomenda. Ele consegue arrombar um carro em dez segundos.
— Ele trabalha para as gangues? — Eu permanecia focado na razão pela qual ele tinha sido capaz de mobilizar os capangas que nos capturaram.
Attila deu uma risada.
— Ferko vende carros principalmente para a máfia russa. Todo mundo na Rússia quer um carro. Você já viu o trânsito em Moscou? Eles podem ter sete famílias dividindo um apartamento, mas cada um deles precisa de um Buick. É por isso que sabem que Putin é melhor que Stalin. Mas Ferko é apenas um mordomo para esses caras. Ele é um zé-ninguém. Pode pagar os policiais locais, mas ninguém aceita ordens dele. Nem sequestraria alguém porque ele mandou.
— Ele realmente morava em Barupra? — perguntou Goos do banco de trás do carro.
— Quando o contratei, sim.
— Existe alguma razão para um homem com dinheiro inventar uma história sobre um massacre?
— Como eu vou saber? — respondeu Attila. — Para alguns ciganos, a trapaça é um modo de vida. Tudo o que sei é que, se Ferko me dissesse que era dia, eu correria até a janela para conferir.
Goos ficou em silêncio. Achei que estava pensando no assunto, mas a medicação para dor começava a fazer efeito, e, quando olhei para trás, ele estava adormecido, com a boca tão aberta que eu podia ver as escuras evidências de várias obturações.
— Ferko... — continuou Attila, ainda tentando acreditar. — Você não vai me dizer que toda essa merda é por causa de Ferko, vai?
Eu não dormia havia dois dias, considerando meus cochilos esporádicos no voo transatlântico, e me sentia incapaz de me mover. Na minha memória, certas sensações, como o vento e a visão do alto do tanque, estavam em alta definição, mas já havia trechos vagos e alguma confusão sobre a ordem dos acontecimentos. Enquanto isso, Goos começou a roncar.
— Aliás, você me deve alguns documentos — lembrei a Attila.
— Eu vou dar os documentos para você, mas, francamente, não sei por quê. Se Ferko é sua grande testemunha, meu amigo, seu caso está encerrado.
Eu estava cansado demais para me importar com isso. Após me desculpar, baixei o banco do A8 e segui Goos até um sono sem sonhos.
Quando chegamos ao Blue Lamp, Attila me acordou para ajudá-la com Goos. Agora que seus músculos haviam se enrijecido, a dor piorara, e ele se sentia tonto por causa dos medicamentos. Nós o seguramos pela calçada, um de cada lado, com os braços sobre nossos ombros como um jogador machucado deixando o campo. Depois de deixá-lo na cama, desci para me registrar. Com minha bagagem perdida, pensei em comprar alguns itens de higiene, mas não tinha energia para isso. Attila prometeu voltar no dia seguinte. Quando o recepcionista me entregou a chave do quarto, sorri. Era o mesmo quarto onde eu tinha ficado com Esma. Isso já parecia longe no passado.
No andar de cima, descobri que o breve cochilo no carro havia me reanimado um pouco. Sentei na cama, ao mesmo tempo reconfortado e aterrorizado por estar sozinho. Olhei para minhas mãos por alguma razão, ergui-as diante do rosto e analisei os dedos e as palmas. Estar vivo parecia um mistério muito profundo.
Eu também me sentia um pouco perdido, não apenas sobre o que acontecera mas também sobre o que viria em seguida. Grande parte de mim queria comprar uma passagem de volta para os Estados Unidos e ficar por lá, uma sensação a que resisti, parcialmente porque percebi, mais uma vez, que sequer tinha uma casa para onde voltar. As coisas mais domésticas que havia feito recentemente foram pescar com meus filhos e comer arenque num café de Haia com Narawanda.
Decidi verificar meu e-mail em algum computador do hotel. Isso parecia ridiculamente mundano, mas é aí que está grande parte do conforto da vida, na rotina. Pensei em escrever para os meninos, mas sabia que os deixaria alarmados se fizesse mesmo que uma referência passageira a estar em segurança. Em vez disso, desci para o bar, bebi a maior parte de uma dose dupla de uísque às duas da tarde e mal consegui subir de volta as escadas. Finalmente tirei minha cueca e dormi até o meio-dia do dia seguinte.
Quando acordei, fiquei surpreso em encontrar Goos já no andar de baixo. Ele havia feito café para si mesmo na máquina do lobby e estava sentado a uma das mesinhas na área de café da manhã, segurando a xícara com a mão esquerda. O efeito da segunda dose de hidrocodona já passara, e ele tinha decidido descer para comer alguma coisa.
Trocamos um longo olhar por sobre a mesinha branca.
— Foi uma noite e tanto — comentei.
— Foi uma noite e tanto — concordou ele. — Achei que estávamos acabados, parceiro.
Goos me contou sobre o mais próximo que havia chegado da morte antes. Quando era policial em treinamento em Bruxelas, ele respondeu a uma ocorrência doméstica — o agressor era russo, o que não o surpreendeu, uma vez que eles tinham um histórico de erguer a mão contra suas mulheres —, mas, quando a esposa o deixou entrar, o cara o agarrou por trás e colocou uma faca no seu pescoço. O cômodo inteiro fedia a álcool. Felizmente, a mulher começou a atacar o homem novamente, e ele largou Goos para poder revidar. Goos o derrubou com o cassetete.
— Eu me mijei quando nos obrigaram a ficar de joelhos — contei a Goos. Eu sabia que ele havia notado, então não era uma grande confissão. — Mas acabou sendo uma coisa boa, porque recuperei a consciência.
— No que você pensou? — perguntou ele.
Expliquei sobre o meu pai. A parte mais surpreendente para mim foi quanto eu estava furioso com ele.
Perguntei no que Goos tinha pensado.
— Ah, na minha mulher — respondeu ele. — Um pouco nos meus filhos. Na maior parte do tempo, eu não conseguia acreditar que tinha sido idiota o bastante para voltar à Bósnia.
— Você vai pedir demissão? — Vinda de outra pessoa, a pergunta poderia ter sugerido covardia, mas nós dois sabíamos que se tratava apenas de uma questão de lógica.
— Ainda não sei — respondeu ele. — Preciso voltar e pensar com cuidado. Mas uma coisa é certa, parceiro: não podemos andar por aqui sem proteção de verdade. Vamos precisar do Exército se voltarmos. Badu vai ter que ficar pendurado no telefone e fazer isso acontecer.
— Vamos voltar?
— Bom, precisamos escavar a caverna, não precisamos? A palavra de Ferko não vale nada. E saiu na primeira página do New York Times que suspeitamos de um massacre. A única maneira de saber se isso é verdade é procurar os corpos.
Ele estava certo.
Ainda estávamos na mesma mesa por volta de uma e meia, quando Attila entrou arrastando a minha mala. Ela havia mandado dois funcionários a Vo Selo, onde recolheram o carro alugado, que agora estava estacionado do lado de fora. Nenhum de nós tinha pensado no veículo, e agradecemos profusamente. Ela pegou o envelope que estava carregando debaixo do braço e o atirou sobre a mesa antes de buscar um café. Usava o costumeiro jeans amarrotado e a velha camisa listrada de mangas curtas. Sua aparência melhoraria consideravelmente se ela fosse a uma das lojas do Exército de Salvação.
— Qual o relatório médico? — perguntou Attila.
Com exceção de precisar de um dentista e ter que beber café apenas do lado esquerdo, por causa dos dentes, eu estava bem. Goos precisaria de alguns dias para se recuperar.
Attila havia nos dito no dia anterior que tinha uma amiga na força policial, uma tenente em quem confiava, e, com a nossa permissão, tinha ido até a delegacia conversar com ela. Dalija fizera algumas ligações na presença dela. Numa cidade próxima a Vo Selo, dois oficiais relataram que seu carro e seus uniformes tinham sido roubados um dia antes.
— Aqueles filhos da puta — disse Goos. — Roubar uma viatura da polícia numa cidade pequena, onde todo mundo sabe de tudo? É um ótimo jeito de ser espancado com o cano de uma arma. Sem chance de isso ter acontecido.
— Na noite passada, você disse que achava que Ferko tinha algum arranjo financeiro com os policiais locais, não achou? — perguntei.
Attila sorriu da ideia.
— Tenho certeza de que eles o depenam. Mas ninguém aceitaria ordens de Ferko. Você teria que conhecer esses idiotas para entender.
— Ele foi esperto o bastante para roubar os seus caminhões, não foi? — questionou Goos.
— Ele estava imitando o chefe. Outro cigano de Barupra, uma espécie de prefeito por lá, Boldo Mirga. Ele era o único com colhões para fazer isso.
Olhei para Goos, que se fez de desentendido e evitou meu olhar.
— Ok — concedi. — Me conte como foi o roubo. Nenhum de nós conhece a história inteira.
Attila hesitou.
— Cara, eu preciso tomar cuidado.
— Attila, eram veículos da OTAN. Se você quiser, posso mandar outra carta para Bruxelas amanhã pedindo os registros e as anotações do seu depoimento. Isso tudo foi antes do incidente com Kajevic. Não pode ser informação privilegiada.
Ela ponderou mais um pouco.
— Não tem muito para contar. Os Estados Unidos estavam dando o fora, e Merry queria mandar um pouco mais do equipamento militar que a OTAN tinha coletado para o Iraque. Então enviei caminhões e motoristas para Mostar para recolher algumas coisas.
— Quando foi isso, exatamente?
Ela ergueu o queixo para pensar.
— Fim de março de 2004? — Isso seria umas duas semanas antes do incidente com Kajevic em Doboj e um mês antes de os habitantes de Barupra desaparecerem. — Naquela época, as estradas ainda eram uma merda. Você estava dirigindo, chegava numa cratera de bomba e precisava construir sua própria ponte com dormentes de estrada de ferro que carregava na carreta. Era uma longa viagem, que devia durar o dia inteiro, e, com aquelas estradas, não fiquei surpresa por eles não quererem voltar à noite. Mas não houve sinal deles até o meio-dia seguinte. No fim da tarde, Boldo, Ferko e o os outros chegaram, dizendo que, enquanto estavam acampados, alguma gangue tinha feito ligação direta em seis caminhões e fugido com eles. Os motoristas eram todos ciganos e sequer combinaram direito a história. Eu os demiti na mesma hora.
— E o que aconteceu quando Kajevic usou alguns desses caminhões para fugir, os que Boldo e Ferko roubaram?
— Bom, no começo, ninguém tinha certeza disso. Os caminhões foram encontrados quase uma semana depois em Doboj.
— E o que os caras argumentaram para se defender?
— Boldo? Ele tinha colhões de titânio. Apenas repetiu sua história: a gangue devia ter vendido os caminhões para Kajevic.
— E para quem eles contaram essa historinha? Para a polícia bósnia? Para a OTAN?
— Policiais militares da OTAN e bósnios.
— E eles acreditaram?
— Boom, eu vivo dizendo para você: ninguém acredita nos ciganos. Mas a única maneira de desmentir completamente o que eles estavam dizendo seria interrogar Kajevic. Ninguém pode dizer que Boldo era idiota.
— E existe alguma chance de a história de Boldo ser verdadeira? De alguém ter roubado os caminhões e os vendido para Kajevic e seus Tigres?
— Uma chance? Claro. A parte que nunca fez sentido foi Boldo negociar com Kajevic. Você ouviu Tobar em Lijce. Eles são como um mangusto e uma serpente. Os ciganos odeiam Kajevic, e Kajevic iria preferir jantar com uma cobra e um rato a negociar com os roma.
— E quando você viu Boldo e Ferko de novo? — perguntei.
Goos olhou para mim de relance. Ele aprovava minha maneira de testar se Attila estava dizendo a verdade.
— Nunca mais. Eu preferia cagar tijolos a falar com eles outra vez, e os dois sabiam bem disso. Roubar a merda dos meus caminhões? Eu já disse: foi só em agosto ou setembro que ouvi essa merda sobre todos os roma terem desaparecido.
Havia muita informação nessa história, e a maioria era confusa. Mas uma coisa estava clara: se pudéssemos extrair a verdade de Ferko, estaríamos numa posição muito melhor, embora eu fosse precisar de um veículo blindado e de pílulas contra incontinência para o interrogatório.
— Você acha que conseguiria o telefone de Ferko? — perguntei a Attila.
— Não se ele souber que sou eu que estou pedindo — respondeu ela. — Mas posso tentar.
Por fim, peguei o envelope que ela havia jogado sobre a mesa e perguntei sobre o conteúdo.
— Registros dos caminhões entre 26 e 28 de abril de 2004.
— E o que eles revelam?
— Nada. Nenhum comboio em nenhuma das duas frotas.
Eu estava prestes a dizer que ela estava errada, que seus caminhões apareciam nas fotos, mas os olhos azuis de Goos se estreitaram em advertência. Estava claro que Merriwell não tinha dito nada sobre o material da OTAN para Attila. Como havia prometido, ele estava se mantendo distante e permitindo que fizéssemos o nosso trabalho.
— Quem fazia os registros dos veículos? — perguntou Goos.
— O meu pessoal.
Goos fez que sim com a cabeça e pareceu refletir. Ele não disse nada, mas Attila leu algo em sua resposta.
— Ninguém pegava meus caminhões sem a minha autorização — reforçou ela.
— Eu achei que Boldo os tivesse roubado — retruquei.
— É por isso que eu tenho tanta certeza. Depois do roubo, coloquei três caras em cada depósito. Nós praticamente colocávamos cada veículo na cama e os cobríamos para dormir. E isso foi antes mesmo de percebermos que Kajevic tinha ficado com os nossos caminhões.
Algo em sua última observação a fez parar de súbito. Ela inclinou o rosto redondo, e pude ver em seus olhos que havia pensado em algo.
— Você disse que tirou fotos em Madovic — disse ela. — Posso ver?
Lembrei a ela que o Clube da Amizade bósnio havia roubado os nossos celulares.
— E quanto à nuvem?
Peguei o tablet da minha pasta, que ainda estava na mala ao nosso lado no lobby. Até então, nem eu nem Goos havíamos pensado em usar um aplicativo para localizar os nossos telefones. Tentamos, mas não havia sinal registrado, o que significava que estavam desligados ou, o que era mais provável, destruídos. Mas as fotos e o vídeo curto que eu tinha feito em Madovic foram transferidos com sucesso.
Attila olhou para as fotos durante bastante tempo e repassou o vídeo três vezes, finalmente fazendo um movimento de pinça com os dedos — com unhas bastante roídas — para ampliar a foto dos três monges. Eu não havia percebido no momento, mas o monge no centro tinha voltado seus intensos olhos pretos em nossa direção por um momento, enquanto os observávamos da nossa mesa. Na verdade, ele nos encarara por mais tempo que o monge mais próximo, cujos olhos eu vira de relance mais tarde.
— Foi por isso que eles foram atrás de vocês — avisou Attila.
Fiquei atônito.
— Eu não fazia a menor ideia de que era proibido tirar fotos dos monges.
Attila riu e se virou para nós parecendo muito uma lanterna de Halloween, com o mesmo sorriso diabólico e alguma espécie de luz interior.
— Está vendo esse cara aqui? — Ela colocou o dedo na tela, indicando o monge do meio. — Eu tenho quase certeza de que vocês acabaram de encontrar Laza Kajevic.