23.
Quem está aí? — 4 a 9 de junho
Goos imediatamente quis informar aos seus antigos colegas no Tribunal Iugoslavo que poderíamos ter localizado o mais procurado criminoso de guerra desde Nuremberg, mas Attila nos convenceu de que seria melhor contatar a sede da OTAN em Sarajevo. Eles estavam autorizados a prender Kajevic — de fato, caçá-lo era provavelmente sua tarefa remanescente mais significativa na Bósnia — e tinham a estrutura mais segura para preservar o segredo. Attila, que demonstrava uma empolgação quase juvenil sobre prender um bandido tão famoso, fez a ligação introdutória, seguida de várias comunicações em código, a maioria por texto, entre mim e Goos e vários oficiais da OTAN. Goos estava com um humor sombrio, que atribuí à dor. Eu, em contraste, estava simplesmente confuso. Minha capacidade de me ajustar a notícias dramáticas parecia uma transmissão quebrada, na qual a engrenagem gira sem torque.
Nos intervalos, ficávamos na sala de café, sussurrando enquanto relembrávamos o que tinha acontecido na noite anterior. Algumas conclusões pareciam bastante óbvias. Quando o policial em Madovic havia descoberto que os caipiras tirando fotos dos monges e do monastério eram do Tribunal Penal Internacional de Haia, a notícia já tinha chegado aos protetores de Kajevic, que soaram o alarme. O plano provavelmente era nos capturar assim que possível, antes que pudéssemos relatar nossas descobertas. Seguindo-nos desde Madovic, era quase certo que testemunharam a visita a Ferko antes de nos sequestrarem na saída de Vo Selo. Enquanto esperavam o anoitecer antes de nos jogar no tanque, alguém deve ter descoberto que o TPI e o Tribunal Iugoslavo, pelo qual Kajevic era procurado, não eram a mesma instituição. Análises locais teriam confirmado que eu e Goos estávamos investigando Barupra, e não tentando capturar o antigo presidente. Coincidentemente, minha promessa de que Ferko não ficaria impune pelo nosso assassinato deve ter demonstrado que não sabíamos o que tínhamos descoberto. No último minuto, algum antigo comandante dos Tigres havia corrido para a mina de sal, interrompendo Nikolai e evitando a intensa caçada que se seguiria à nossa morte.
Dadas essas considerações, contudo, parecia provável que os Tigres de Arkan nos manteriam sob vigilância para se certificar de que não desconfiávamos da verdadeira razão para o sequestro. Attila ligou para sua amiga policial, que passou pelo hotel algumas vezes em seu carro particular e confirmou a presença de dois homens, cada um num veículo. A notícia me deixou aterrorizado, e Goos não pareceu muito feliz, porém concordamos em esperar por orientações da OTAN antes de fazermos qualquer coisa que demonstrasse que sabíamos que estávamos sendo vigiados.
Nas nossas comunicações anteriores com os caçadores de fugitivos da OTAN, havíamos combinado de nos encontrar na sede da empresa de Attila, no subúrbio de Tuzla, onde fingiríamos estar comparecendo a uma reunião relacionada ao nosso trabalho no TPI. Saímos do Blue Lamp às seis da tarde. Dalija, a amiga policial de Attila, ligou para informar que estávamos sendo seguidos — e por uma equipe bastante desajeitada, em apenas dois veículos muito próximos do nosso, quase como se estivéssemos num cortejo fúnebre. Ela disse que manteria um olho neles, só por garantia.
A sede da empresa de Attila ocupava uma construção térrea do tamanho de um pequeno centro comercial, decorada com o que parecia um esforço intencional de ser medíocre. O escritório tinha carpete cor de terra e venezianas verticais. Sobre a mesa, havia várias fotos da esposa que Attila dizia ter conhecido ali, uma beldade de cabelos pretos e olhos azuis. As fotos mostravam as duas juntas, ao lado de cavalos e cães em sua fazenda no norte do Kentucky. A vida pessoal de Attila, que ela raramente mencionava, parecia de algum modo incongruente, mas ela ficou satisfeita com os elogios sobre a beleza de tudo — casa, propriedade e esposa.
— É espantoso quão rápido uma garota pobre se acostuma a gastar dinheiro.
Logo após o anoitecer, a delegação da OTAN chegou em duas caminhonetes com a logomarca de uma construtora internacional. Attila já havia feito dezenas de ligações com o intuito de espalhar a notícia de que estávamos nos preparando para analisar a caverna. Os soldados da OTAN usavam jeans, parcas e capacetes e carregavam pranchetas. A comandante era uma general norueguesa chamada Ragnhild Moen, acompanhada por três oficiais sêniores, um holandês, um alemão e um americano. Era magra e alta, com quase um metro e oitenta, e mãos muito longas e finas. Ela se mostrou surpreendentemente sociável, embora dotada de uma autoridade silenciosa. Tinha parentes em Minnesota, onde havia passado um ano no ensino médio, e guardava agradáveis lembranças do condado de Kindle, que visitara várias vezes. Seu grupo de estudantes de intercâmbio tinha sido apresentado à juíza federal de lá, Moria Winchell, que eu conhecia bem.
Os oficiais da OTAN se agruparam em torno do meu tablet e examinaram as fotos várias vezes. Ninguém duvidou da identificação de Attila, especialmente depois de comparar as fotos com imagens de Kajevic obtidas vários anos antes. Os quatro falavam inglês entre si, e, finalmente, pude acompanhar a conversa.
O questionamento mais persistente era se nossa presença em Madovic — ou a errônea resposta inicial dos capangas de Kajevic — havia sido suficiente para assustá-lo e forçá-lo a se mover. O monastério oferecia vantagens incomparáveis como esconderijo, especialmente nos Bálcãs, onde provavelmente já não havia mais muitos refúgios seguros. A localização impedia que qualquer grande grupo de policiais ou militares entrasse em Madovic sem ser detectado. Um único acesso levava ao complexo nas montanhas; mesmo que soldados o bloqueassem e cercassem o lugar, era quase certo, dada a história de perseguição dos monges, que a reconstrução tivesse incluído rotas de fuga subterrâneas, provavelmente atravessando as adegas. Por fim, entrar no monastério para prender Kajevic, embora não fosse exatamente proibido, do ponto de vista legal, com certeza causaria muita agitação, especialmente na Sérvia, onde a Igreja ortodoxa retrataria a invasão como uma grave violação de um lugar sagrado.
A general achou que a melhor opção seria manter uma presença discreta em Madovic e obter mais informações.
— Posso pedir que vocês permaneçam na área? Provavelmente teremos mais perguntas se o Sr. Kajevic não tiver partido.
Vi que Goos não gostou do pedido. Ele já estava cansado de Kajevic e seus Tigres, mas a general prometeu nos designar uma escolta enquanto estivéssemos na Bósnia — soldados da OTAN em trajes civis, uma vez que a simples visão de fardas militares seria suficiente para que Kajevic fugisse. Em contrapartida, ninguém se perguntaria por que havíamos contratado guarda-costas particulares após a outra noite. Em troca da nossa permanência, pedi sua ajuda para substituir nossos passaportes e celulares.
Ao fim da reunião, Attila se despediu de todos à porta. A despeito de sua empolgação inicial com a identificação de Kajevic, ela decidira que não queria desempenhar um papel público na operação.
— Eu ainda tenho que fazer negócios nesse país — argumentou ela. — Se precisarem de algo, é só dizer.
Quando voltamos ao Blue Lamp, dois soldados de jeans e coletes à prova de balas, com pistolas visíveis nos quadris, esperavam por nós. Achei que o pessoal do hotel poderia objetar, mas, para eles, aquela era apenas mais uma indicação de que estavam hospedando dignitários. Quanto às armas, a Bósnia lembrava o Velho Oeste dos Estados Unidos, onde qualquer um podia carregar uma com pouquíssima burocracia.
Goos ainda não estava feliz.
— Parceiro — disse ele, quando entramos no lounge —, esse assunto não é nosso. Não quero parecer covarde, mas Attila está certa. Temos que pensar com cuidado antes de passar o resto da vida como os caras que capturaram Laza Kajevic. Algum fanático pode colocar as nossas fotos no seu quadro de avisos de pessoas a eliminar.
Eu entendia o que ele queria dizer, mas enfrentávamos certas questões limitantes. Os sacolejos durante o curto trajeto até o escritório de Attila foram agonizantes para Goos. Uma viagem de oito horas até Haia, envolvendo dois voos e arrastando um saco de pedras de Barupra, só seria possível na semana seguinte, a menos que conseguíssemos uma evacuação médica, uma ideia que ele prontamente dispensou por ser grandiosa e humilhante demais.
Passamos o dia seguinte, sexta-feira, tentando voltar ao trabalho e analisar as informações que havíamos obtido ao longo da semana. Muitas peças não se encaixavam. Mas as prioridades continuavam praticamente as mesmas: a) fazer planos para a escavação da caverna; b) falar com Ferko; e c) ver se buscas na internet poderiam ajudar a identificar os soldados designados para a unidade de inteligência militar em abril de 2004 e descobrir se haviam postado algo que pudesse lançar alguma luz sobre o que havia ocorrido em Barupra.
Goos voltou ao Facebook e ao YouTube. Minha tarefa, que não me agradava, era criar algum tipo de relatório para os nossos chefes em Haia. A ideia era atualizar os supervisores do tribunal sem revelar muito sobre o sequestro ou sobre quem tínhamos encontrado, pois, sem dúvida, ambas as notícias gerariam respostas que sairiam do nosso controle.
No fim do dia, não muito depois de recebermos os nossos celulares substitutos, recebi uma ligação de Attila. Ela encarregara uma das suas funcionárias roma, que, segundo ela, vivia “como uma pessoa normal”, de conseguir informações sobre Ferko. A funcionária se dera ao trabalho de visitar Vo Selo.
— Ferko su-miu — avisou Attila.
Segundo os moradores locais, algumas horas após a nossa visita, quatro policiais apareceram na casa e causaram uma bela impressão ao atirar em todos os cães. De acordo com um dos vizinhos, que conversara com Ferko, os policiais o espancaram até ele confessar que era testemunha num caso no qual éramos advogados. Ferko havia jurado ter nos dito que não queria mais nada conosco, o que corroborara novamente a versão de que eu e Goos não estávamos atrás de Kajevic. Presumivelmente tinha sido isso que levara o comandante de Nikolai a correr até o tanque de água salgada para impedir nosso assassinato. Em Vo Selo, logo depois da partida dos policiais, Ferko e a família encheram seus quatro carros com tudo o que podiam carregar. O vizinho acreditava que não voltariam.
— Alguma ideia de para onde foram? — perguntei.
— Nenhuma — respondeu Attila. — Aparentemente, ele pegou um martelo e destruiu o celular na mesma hora, para que ninguém pudesse rastreá-lo. Eu tenho o número, caso você queira tentar, mesmo assim.
Desci para relatar tudo isso a Goos, que trabalhava no salão onde o café da manhã era servido. Sentado diante dele, à mesinha branca, liguei para o número que Attila tinha me dado, recebendo como resposta uma longa mensagem no dialeto bósnio do servo-croata. Entreguei o aparelho a Goos.
— Fora de serviço? — perguntei quando ele desligou.
— Desconectado.
— Merda.
O fato de Ferko ter fugido para salvar a própria vida depois de encontrar o chefe de Nikolai e outros membros da gangue de Arkan não exigia explicação, especialmente para nós. Mas Goos permanecia confuso.
— O que eu não entendo é: por que Ferko resolveu contar essa história, sem mencionar o fato de ter movido os ossos e plantado balas para que acreditássemos nela? — disse ele.
Não consegui decidir se era uma pergunta retórica.
— Você acha que Esma o convenceu a fazer tudo isso?
— Por que ele faria isso, parceiro, mesmo que Esma ou qualquer outra pessoa tivesse pedido? É isso que eu quero saber.
— Talvez porque tenha acontecido de fato? Talvez ele tenha perdido alguém que amava e queira justiça?
— Aquele homem, com seus cães e seus anéis de ouro, parecia um bom cidadão para você? Ele está contando essa história, verdadeira ou não, porque pretende ganhar alguma coisa com isso, mas não consigo imaginar o quê.
Nossa conversa e os enigmas a respeito de Ferko me levaram novamente a uma posição na qual eu não queria estar: a de precisar ligar para Esma. Ela era a única pessoa que conhecíamos que tinha algum tipo de conexão com Ferko, e também éramos obrigados a confrontá-la, em termos de investigação, sobre quem seu momentâneo cliente provara ser. Eu queria ouvi-la dizer que tudo aquilo era uma surpresa, somente para sentir se realmente era verdade.
As complicações de abordar Esma mostravam mais uma vez por que devíamos ter mantido nossas partes privadas realmente privadas. Minha falta de sucesso em manter relacionamentos me fornecera prática em terminá-los, e eu havia aprendido que o afastamento total era a única solução confiável. “Ser amigos” apenas prolongava a dor da parte mais ferida, que via nisso um sinal para manter as esperanças.
Assim, era injusto ligar para Esma. E seria compreensível se ela não atendesse. Eu me senti obrigado a explicar tudo isso a Goos e pedir desculpa. Ele fez um gesto de desprezo com a mão.
— Não vou passar um sermão por causa disso, parceiro. Eu não conheço muitos caras solteiros que não teriam corrido atrás dela.
Ou seja: eu havia me comportado de forma previsível para qualquer ser do sexo masculino com um pênis sem posse registrada.
Para agir de maneira totalmente ética, Goos deveria ligar para Esma. Mas ambos sabíamos que era muito mais provável que eu conseguisse a verdade, se ela estivesse disposta a falar.
Comecei com a abordagem mais antisséptica: uma mensagem de texto. Preciso falar com você rapidamente. Questão profissional. Sinto muito por incomodá-la com isso.
Ela não respondeu. No sábado, tentei um e-mail. No domingo, finalmente liguei duas vezes, deixando a mesma mensagem em ambas as ocasiões. Depois disso, Goos assumiu, mas não fiquei surpreso quando ela não respondeu. Eu mesmo tinha feito essa bagunça.
Goos e eu passamos a maior parte do fim de semana dormindo. Respondi a mais alguns e-mails, li mais Fowles — A mulher do tenente francês, dessa vez — e dei algumas voltas por Tuzla. Por educação, enviei um e-mail para Narawanda falando do meu cronograma, que provavelmente nos faria voltar para Haia no início da semana seguinte. Após refletir um pouco, acrescentei: “Espero que sua viagem a Nova York tenha sido boa e que você se sinta melhor.” Recebi uma resposta monossilábica: “Não.”
No domingo, decidi arriscar uma corrida. De modo geral, eu parecia pior do que me sentia. Com exceção da sensibilidade à temperatura dos dentes da frente, que lançavam inesperadas faíscas de dor para o nariz e para a testa, eu não sentia muito desconforto. Ainda havia um calombo no meu lábio, com a linha negra de uma cicatriz bem no meio, e um hematoma colorido tinha surgido na minha mandíbula, no ponto onde havia levado uma coronhada. Além disso, havia um vergão na minha testa, de quando colidira com o degrau superior da escada de ferro. O dente quebrado fazia com que eu parecesse um adolescente que gostava de uma briga. Mas, como acontece quando se acostuma a correr, eu sentia necessidade física de endorfina. Um dos policiais militares da OTAN concordou em me acompanhar.
Tuzla era bonitinha, com o centro antigo formado principalmente por edifícios baixos de estuque reluzente e detalhes arquitetônicos brancos, como medalhões de gesso. A população não era maior que a de Peoria, mas a cidade tinha um ar mais urbano, com arranha-céus e minaretes visíveis ao sul.
A praça central, que atravessei correndo, era marcada por um arranjo geométrico de azulejos multicoloridos e um poço otomano de vários séculos de onde água fresca ainda jorrava através de uma bica de cobre. Fui em direção ao lago Pannonica, a praia artificial no centro da cidade, circulando-o diversas vezes.
Como a tenente da polícia local, o pessoal da OTAN também acreditava que estávamos sendo vigiados. Um cara tinha passado doze horas no restaurante de cevapi do outro lado da rua, fingindo ler o jornal a uma mesa na varanda, apenas para ser substituído, no sábado e no domingo, por outro mais jovem fazendo a mesma coisa num pequeno café na esquina, onde bebia incontáveis xícaras enquanto mantinha a porta do hotel em seu campo de visão. Meus guarda-costas foram instruídos a procurar por um Yugo vermelho, e, olhando para trás ao correr, eu conseguia vê-lo ocasionalmente. Enquanto continuássemos dando a impressão de que acreditávamos ter sido Ferko, e não Kajevic, a ordenar a vigilância, os Tigres de Arkan não teriam razões para serem discretos. Uma presença ameaçadora poderia apressar nossa partida.
De toda forma, consegui aproveitar o momento. O sol brilhava forte, e parecia que todos os habitantes de Tuzla estavam na praia em suas minúsculas roupas de banho europeias, com criancinhas de chapéu correndo de um lado para o outro enquanto carregavam água em baldes. Peguei um folheto informativo sobre o lago e fiquei chocado ao descobrir que a água do mar artificial na rede de lagos era bombeada dos mesmos tanques onde Goos e eu deveríamos ter morrido, apesar de muitas vezes diluída. Lutei para não pensar que, caso as coisas tivessem acontecido de forma diferente, aquelas pessoas poderiam estar se divertindo em meio a moléculas indistinguíveis dos nossos restos mortais, mas era quase como dirigir pensando em ser atingido por um carro vindo da pista contrária: era melhor não se apegar a essa ideia.
Meu terror começava a retroceder, deixando para trás alguns pesadelos sufocantes. Correndo, era agradável me sentir no controle outra vez, menos dominado pela sombra do trauma e do medo. Percebi, entretanto, que dessa vez visitara a verdadeira Bósnia, partilhando um pouquinho da duradoura experiência nacional.
Na manhã de segunda-feira, Goos disse:
— Se você não se importar, gostaria de começar a viagem de volta a Haia amanhã. Vai ser difícil, mas acho que aguento. Vou saber com certeza pela manhã. Talvez você possa conversar com a general e informar que o dever nos chama.
Quando voltei ao hotel no fim da tarde, depois de outra corrida, havia uma mensagem da general Moen no meu celular. Falei com seu ajudante de campo, que perguntou se poderíamos encontrar a general em Sarajevo às duas da tarde do dia seguinte. Os guarda-costas seriam nossos motoristas.
Assim que repassei a mensagem para Goos, pude ver que estava prestes a recusar. Ele queria ir para casa.
— Alguma ideia do assunto? — perguntou ele.
— O ajudante disse apenas que a general achava importante falar conosco mais uma vez.
— Importante? Deus do céu, eu não quero ser importante. — Ele pareceu pensar por um momento nessa afirmação. — Muito bem, vamos lá.
— Vamos nos encontrar com ela?
Ele fez que sim com a cabeça.
Na aparência, Sarajevo, que tinha ido de cidade olímpica a local de um cerco penoso, parecia ter retornado, como grande parte da Bósnia, à sua antiga essência. Nosso motorista militar, um jovem norueguês chamado Andersen, desenvolvera profunda afeição pela cidade durante sua estada por lá e parou num mirante de onde podíamos ver, como num cartão-postal, Sarajevo repousando ao lado do reluzente rio Miljacka, com os Alpes sulinos surgindo majestosamente a distância. Observei os minaretes, os arranha-céus, os telhados e, mais impressionante, as fileiras de lápides brancas que ocupavam mais espaço que em qualquer outro centro urbano que eu já visitara. Andersen apontou para uma grande construção no centro da cidade, um velho palácio que havia sido destelhado pelos bombardeios, mas que, segundo ele, era muito bonito quando visto do chão. Ele não era o tipo de jovem capaz de dizer que a situação do palácio era uma metáfora, mas acho que era por isso que considerava o edifício tão significativo.
Ele nos levou para a parte antiga da cidade, Bascarsija, onde velhas trilhas e muros de pedra cercavam os locais reconstruídos com o familiar estuque branco e telhados de terracota marrom. O hotel para onde nos dirigíamos ficava a algumas centenas de metros do memorial nacional de guerra, dedicado aos mortos da Segunda Guerra Mundial. Caminhando pela passagem para pedestres, eu e Goos paramos para observar as guirlandas de sempre-vivas com laços de fita, empilhadas ao lado da flama eterna. Naquele país, o massacre ainda não havia acabado. Ali, onde a população fora acossada por sua fé, havia mais mulheres usando hijab do que eu notara em Tuzla.
Enquanto os soldados se posicionavam ao lado da porta, eu e Goos fomos até o balcão da recepção. Nosso disfarce era uma reunião de negócios com a mesma construtora cuja logomarca o pessoal da OTAN exibira nas caminhonetes na semana anterior. O recepcionista, um jovem discreto que falava inglês fluentemente, entregou nossas chaves e recitou as regras do hotel, que incluíam não servir álcool. Ao ouvir isso, senti Goos se retesar instintivamente, embora não tivéssemos planos de passar a noite.
No terceiro andar, as chaves abriram as portas de uma sala de reuniões onde a general e seis outros soldados nos esperavam, todos em roupas civis. Um mapa havia sido pendurado num mural. Eles se levantaram quando entramos, numa demonstração de respeito que imediatamente registrei como ameaçadora.
— Você parece melhor — comentou a general com Goos.
Ele falou que estava bem, o que obviamente não era verdade. Ainda mancava para proteger o lado direito, e a viagem tinha sido dolorosa.
— Me deixe mostrar o que descobrimos — disse a general Moen. — A boa notícia é que o alvo não parece ter ido embora.
Ela passou a palavra a um oficial da inteligência, um húngaro intenso, alto e de cabelo à escovinha, que era capitão e se chamava Ferenc. Ele se referia repetidamente aos seus “ativos”, o que me fez pensar que grande parte do aparato aliado de inteligência havia sido colocado em funcionamento, embora algumas das informações tivessem sido obtidas por meio de dois oficiais que foram para Madovic se passando por turistas alemães.
Há aproximadamente um ano e meio, disse Ferenc, os três monges chegaram à cidade ao meio-dia, caminhando em lenta procissão em direção ao hospital, onde rezavam pelos enfermos. Durante séculos, havia sido raríssimo encontrar monges fora do monastério, e a mudança inicialmente dera origem a muito falatório local. O abade, em suas negociações casuais com o povo da cidade, havia explicado que os três foram deslocados pela guerra e chegaram a Madovic procurando abrigo e a oportunidade de ajudar os doentes. Embora tivessem uma vocação diferente do regime recluso de oração e contemplação do mosteiro, o abade lhes dera refúgio indefinidamente.
— Eu sei que Kajevic não está indo à cidade para rezar — disse Goos.
Ferenc assentiu com a cabeça. O objetivo real das visitas era se comunicar com um radiologista sérvio. Ele entregava mensagens de e para Kajevic, que ainda se via como líder de uma nação e permanecia no controle de uma vasta rede de apoiadores. Para a OTAN, as visitas ao hospital forneciam a oportunidade ideal para capturá-lo fora dos muros do monastério.
— Eis o problema tático — acrescentou o capitão Ferenc. Sua gramática era perfeita, mas seu sotaque era muito forte. Ele explicou que os dois homens que acompanhavam Kajevic todos os dias tampouco eram monges, mas guarda-costas com armas automáticas escondidas sob o hábito. Fiquei intrigado com a tecnologia que permitia que a OTAN identificasse armas ocultas a distância, mas, mesmo nos meus tempos como procurador federal, já existiam escâneres de infravermelho que detectavam metal, embora usá-los em solo americano para buscas aleatórias entre a população fosse proibido pela Quarta Emenda. — Sabemos que no hospital há um homem, talvez mais, que lutaria pela liberdade do nosso alvo.
Um silêncio de expectativa recaiu sobre a sala, o que parecia um sinal para a general falar novamente.
— Para evitar que o que aconteceu em Doboj onze anos atrás se repita, precisamos de uma força substancial no hospital. Continuamos a acreditar que o motivo pelo qual o alvo permanece no monastério são as vantagens que o local oferece, possibilitando a detecção de qualquer movimento em larga escala na cidade. Podemos infiltrar alguns soldados disfarçados de turistas, com mochilas e guias de viagem, mas Madovic recebe apenas alguns visitantes por semana e uma grande presença, como um ônibus, algo que pensamos originalmente, chamaria a atenção. Além disso, soldados disfarçados só podem carregar pistolas. Para levar uma força pronta para combate até a cidade, precisamos da sua ajuda.
— Merde — disse Goos.
Com a má notícia dada, o capitão assumiu outra vez.
— Fomos capazes de monitorar as comunicações. Eles estão vigiando vocês. Isso é muito útil.
— Para nós ou para vocês? — perguntou Goos sem sorrir. Ele estava irritado.
A general, de qualquer forma, sorriu educadamente.
— Para ambos, na verdade. Como esperávamos, as pessoas que vigiamos não estão surpresas por vocês agora terem proteção, o que veem como uma consequência infeliz da reação exagerada na terça. Mas ainda temem que, mais cedo ou mais tarde, vocês descubram sua verdadeira motivação. Concluímos, a partir dessas conversas, que eles tiveram sucesso em encorajar o cavalheiro que vocês visitaram em Vo Selo a deixar a área.
— Foi o que ouvimos também — falei.
— E esperam que vocês partam quando souberem que ele foi embora.
— O desejo deles é uma ordem — disse Goos.
A general sorriu de novo ante essa demonstração de mau humor.
— Nós gostaríamos de usar a situação que eles criaram na terça para atraí-los — continuou ela. — Levando em consideração o que aconteceu depois da sua última visita a Vo Selo e da resposta da testemunha, seria compreensível, especialmente para aqueles que sabem pouco sobre o tribunal, se vocês retornassem a Vo Selo acompanhados por um esquadrão completo em traje de combate, como forma de expressar sua repugnância pela tentativa de intimidação.
— E por que Kajevic não sairia correndo ao primeiro sinal de soldados da OTAN? — questionou Goos.
A general Moen assentiu com a cabeça.
— Temos acesso às fardas do Exército bósnio. Eu descreveria isso como um acordo de ajuda mútua. De qualquer modo, esses soldados “bósnios” estariam lá para ajudá-los a entrar na propriedade e garantir que a testemunha relutante não use as mesmas medidas da última vez.
— Mas ele foi embora — interrompi.
— Exatamente — disse a general. — Vocês vão encontrar a casa vazia. Quando estiverem prontos para ir embora, um de vocês vai ficar seriamente ferido.
— Que tipo de ferimento? — perguntou Goos.
— Encenado, é claro. Embora deva parecer convincente. Por causa desse infortúnio, vocês e sua escolta militar vão ter que correr para o hospital mais próximo... em Madovic.
Compreendi as intenções dela, naturalmente.
— Esse ferimento em Vo Selo — continuou a general — vai ocorrer no momento em que os três monges saírem do hospital, por volta de uma e meia da tarde. Viajando em alta velocidade, vocês vão chegar a Madovic em uns dez minutos. A procissão de volta ao monastério geralmente leva meia hora, embora fosse melhor pegá-los nos primeiros quinze minutos, quando ainda estão longe e existe menos probabilidade de receberem ajuda do alto da montanha. Quatro “turistas” vão bloquear a retirada. Se tudo correr bem, o alvo poderá ser extraído em questão de segundos.
“Ele vai ser levado a Haia, mas presumo que vocês gostariam de viajar de forma independente, o que podem fazer sozinhos ou com uma escolta, como preferirem.”
O rosto de Goos estava impassível.
— Por que um dos soldados não pode ser ferido?
— Ele iria para o hospital militar — argumentou o oficial de inteligência.
Goos ainda tinha um olhar feroz.
— Eles vão saber. Os homens de Kajevic. Eles vão saber que não foi coincidência o fato de estarmos lá quando ele foi capturado.
— Se quiser — disse a general Moen —, você pode ir até o hospital e solicitar atendimento médico. Vamos ter alguém esperando. Ou podemos fazer com que um médico o enfaixe no local, como cortina de fumaça.
Goos ainda estava negando com a cabeça quando interrompi.
— General, precisamos pensar a respeito disso. Tenho certeza de que vocês entendem. E, mesmo que optássemos participar, provavelmente precisaríamos informar aos nossos superiores.
— Por favor, me informem quando decidirem. Podemos ajudar com seus superiores.
— E quando tudo isso ocorreria?
— Dadas as circunstâncias, quanto mais cedo, melhor. Estamos nos preparando para uma operação amanhã.
Novamente, ninguém disse nada por alguns segundos.
— Vocês precisam entender quanto ficamos relutantes em pedir a assistência de civis em questões dessa natureza, especialmente considerando suas experiências recentes. Infelizmente, vocês são essenciais.
Goos saiu da sala sem dizer uma palavra. Andersen e um soldado chamado Greer estavam à porta e nos escoltaram até o carro.
— Olhe, Goos — eu disse em voz baixa quando estávamos novamente no banco de trás do veículo —, existe apenas uma pergunta que vou fazer a mim mesmo: eles realmente precisam de nós?
Ele respondeu com um rosnado baixo:
— Você não precisa me convencer disso, parceiro.
— Não estou tentando. — Inclinei a cabeça para os dois soldados na frente, mas Goos não parecia preocupado em falar ali. — Só quero pensar a respeito.
— Eles já pensaram a respeito — retrucou Goos. — É como ela disse: eles não querem usar civis numa operação militar mais do que queremos ser usados. Mas precisam de gente suficiente para fazer isso de forma rápida e sem que ninguém seja morto.
Como sempre, ele havia me surpreendido.
— Ainda preciso pensar — concluí.
— Precisa mesmo, parceiro. Porque um monte de coisas pode dar errado. — Após outro minuto em silêncio, ele disse: — Você pode escapar dessa, Boom. Eles só precisam de um de nós, e eu me candidatei a esse tipo de coisa há muito tempo.
Para ser preciso, nenhum de nós realmente havia se candidatado. Mas ele queria dizer que, ao fazer seu juramento na polícia, sabia que estava aceitando certos riscos. Para advogados, isso não estava na descrição do cargo. No início da minha carreira como procurador, por causa da empolgação da coisa toda, eu acompanhara o DEA durante a prisão de Gaucho Hinjosa, um chefão local das drogas. Meu chefe, Stan Sennett, me dera uma bronca depois da operação: “Se você quer um distintivo e uma arma, deve entrar para a polícia. Você deixaria um agente encarregado das considerações finais? Cada um de nós tem um trabalho a fazer e a obrigação de não interferir no trabalho do outro.”
Talvez, se Goos estivesse melhor, eu o tivesse deixado ir sozinho. Mas ele não parecia estar em condições de se atirar no chão ou fazer o que quer que fosse necessário para fingir estar seriamente ferido.
Eu disse novamente que precisava de tempo para pensar.
— E, o que quer que aconteça — disse ele —, eu não contaria nada ao pessoal de casa. Você sabe o que dizem: é melhor pedir perdão que permissão. Se precisar cobrir as bases, envie um e-mail a Badu dizendo que precisa consultá-lo sobre um problema urgente.
Eu ri. Badu era famoso por jamais responder a e-mails. De modo geral, respondia apenas aos de Akemi.
De volta ao Blue Lamp, fui para meu quarto e me sentei sozinho na cama para discutir comigo mesmo, mas percebi rapidamente que minha decisão havia sido tomada em janeiro. Meus dois filhos estavam criados. Eu não tinha uma companheira com a qual me preocupar. Ainda mais importante, como descobrira com uma Zastava pressionada na minha têmpora no alto daquele tanque, eu tinha ido para Haia com a obrigação familiar de conter os predadores tóxicos que eram o câncer da civilização. Eu estava morrendo de medo. Mas minha vida não teria o significado desejado se eu não ajudasse a levar justiça para os milhões, em várias nações, que foram assassinados, torturados, estuprados, privados de comida e selvagemente enganados por Laza Kajevic.