29.

Guerra e verdade — 26 e 27 de junho

Na sexta-feira, a presidente e a secretária nos informaram que nosso orçamento para a escavação da caverna havia sido aprovado. Goos se sentia bem o bastante para planejar o retorno à Bósnia para a segunda seguinte, e concordamos que, quando a escavação inicial estivesse em andamento, eu o seguiria. Isso provavelmente seria na quarta-feira. Enquanto isso, dividimos as responsabilidades dos preparativos.

Um item que Fien, a esposa de Goos, considerava indispensável era pedir que a OTAN fornecesse proteção contínua. Falei com o ajudante de campo da general Moen, que prometeu fazer os acertos. Eu sabia que as tropas da OTAN estavam sobrecarregadas, mas pedi que nosso destacamento viesse da organização, e não do Exército bósnio, e o ajudante de campo, depois de relutar um pouco, concordou.

Também liguei para Attila algumas vezes, mas não consegui falar com ela diretamente. Em vez disso, o gabinete da secretária retornou uma cópia assinada da proposta para os equipamentos de escavação, e eu enviei um e-mail pedindo a ela que separasse algum tempo para mim e Goos na semana seguinte. Com o passar do tempo, eu havia percebido que com frequência as ações de Attila eram mais calculadas do que suas torrentes de palavras levavam a crer, mas estava inclinado a acreditar no que ela sempre insinuava — ou seja, que havia gente de cima que continuava aferrado à necessidade de manter em segredo os detalhes da prisão de Kajevic, incluindo o conteúdo do comboio que os roma haviam roubado. Ainda assim, tínhamos uma vantagem agora, porque, em algum momento, teríamos que protocolar um relatório público no tribunal, nem que fosse meramente para encerrar a investigação. Se os americanos quisessem evitar que mencionássemos as armas, teriam que explicar seus motivos, inclusive nos contando muito mais da história do que se mostraram dispostos até então.

Em casa, Narawanda continuava me evitando. Ela saía antes de eu acordar e voltava pouco antes de eu ir para a cama, quando a ouvia correndo até o quarto. Deixei um bilhete na terça-feira para dizer que havíamos nos encontrado com Kajevic e agradecer pela sua participação. Ao lado da cafeteira, encontrei uma resposta breve: “Sem problemas. Correndo como louca com as petições.”

Eu entendia que ela havia ficado bastante constrangida no nosso último jantar, com sua declaração sobre seus esforços para fazer a coisa certa. Mas eu aceitara que era melhor nos mantermos distantes. Quando voltasse da Bósnia, eu começaria a procurar um novo lugar para morar. Quaisquer fantasias sobre nós dois que ela pudesse estar alimentando — ao menos naquela noite, depois de três cervejas — precisavam ser ignoradas em benefício mútuo. Eu tinha feito algo incrivelmente idiota com Esma e escapara com menos danos emocionais — e profissionais — do que tinha o direito de esperar. Me envolver com alguém novamente, tão pouco tempo depois, e com uma mulher que ainda nem havia se separado do marido, seria ainda mais idiota. Nada disso negava os muitos desejos que Nara estimulava em mim. Sua discrição inata era uma cortina atrás da qual ela gostava de se esconder. Tinha uma mente maravilhosamente ativa e um senso de humor irônico que com frequência superava sua pose de garota estrangeira de rosto inexpressivo. E seu apelo físico havia aumentado constantemente com os meses. Mas o que mais me atraía era sua franqueza. Nara tinha um talento raro entre os seres humanos: era capaz de dizer como realmente se sentia, mesmo que fosse “Estou confusa”.

A despeito disso, sempre que tentava considerar cuidadosamente a situação, eu me via como a parte em risco. Para ela, eu poderia ser um local conveniente para um pouso de emergência no caminho de saída do relacionamento com Lewis, mas era provável que eu fosse a primeira parada dessa jornada, e não a última. Eu estimava ser dezessete anos mais velho que ela, o que pareceria pouco atraente quando Nara pensasse no longo prazo. Eu, ao contrário, especialmente depois de sentir o círculo frio do cano de um rifle, estava cada vez mais pronto para criar raízes. Eu podia me apaixonar perdidamente por Nara e, alguns meses depois, acabar com o coração partido — e sem um lugar para morar.

Isso tudo poderia ser explicado quando tomássemos uma bebida dali a alguns anos, após ela se ajeitar com seu novo namorado — ou marido. Por enquanto, o assunto permanecia no abismo das coisas não ditas que existem na maior parte dos relacionamentos incipientes entre meninos e meninas.

Esses pensamentos sobre Nara, intermitentes e gentis, contrastavam com a raiva que eu sentia sempre que pensava em Esma. Por algum motivo que não conseguia compreender, parecia haver um insulto fundamental na maneira como eu tinha sido enganado. Essa raiva caminhava ao lado da importância, aguçada pelo iminente retorno à Bósnia, de descobrir o que diabos havia acontecido com Ferko e se qualquer fragmento do que ele dissera era verdade.

Uma coisa impressionante sobre Esma — Emira — era sua profunda dedicação à mentira sobre as raízes roma, o que havia exigido a criação de todos aqueles sites falsos na internet sobre ela mesma e sua organização fictícia e o enorme esforço envolvido para aprender romani. Na manhã de quarta-feira, percebi que poderia haver uma maneira de forçá-la a abandonar seu esconderijo.

Enviei a seguinte mensagem de texto: Tentei falar com você na Bank Street e fiquei confuso. Não tem nenhuma Esma Czarni!!!! Vou retornar à Bósnia e ainda preciso falar com Ferko desesperadamente.

Mesmo assim, fiquei surpreso, na tarde de sexta, quando meu celular se iluminou com a breve resposta: Vou ficar afastada da Bank Street enquanto o caso estiver se arrastando em Nova York. Meus esforços para falar com Ferko foram inúteis. Sinto muito. Desejo sorte. E.

A arte — e a mentira — dessa simples resposta após semanas de silêncio me levaram a outra espiral de raiva. Fui correr sozinho e comprei algo para jantar, bebendo mais vinho do que deveria enquanto me esforçava para compreender Esma. Eu entendia que a causa roma era muito mais íntegra e atraente que o legado de uma expatriada persa cuja história familiar estava inevitavelmente ligada ao trabalho sujo dos xás. Mas como era possível acordar toda manhã recapitulando a longa lista de mentiras que seria preciso contar novamente naquele dia?

Eu ainda estava furioso, lavando meu prato, quando a represa cedeu e pensei no meu pai. Eu me afundei no velho banquinho da cozinha, devastado demais para sequer fechar a torneira. É claro. Era exatamente como naqueles sonhos em que alguém se vira e tem o rosto de outra pessoa. Meu pai. Aquela fúria incessante que fervilhava no meu coração esfriou e se transformou numa massa de tristeza. Desde aquele momento no alto do tanque, ocasionalmente eu me perguntava por que estava mais irritado com ele que com a minha mãe. Mas, conhecendo a natureza antiquada do relacionamento dos dois, tinha certeza de que ele havia tomado todas as grandes decisões. De fato, minha mãe contara a Marla que meu pai tinha ignorado seu desejo de voltar a Roterdã.

Ao compará-los a Esma, naturalmente havia diferenças, distinções. Advogados adoram distinções. Meus pais mentiram para sobreviver. No início. Mas, no fim, assim como Esma, eles escolheram o que parecia ser uma vida melhor.

Depois de algum tempo, fui para o andar de cima. Todos os dias, desde que tinha voltado de Leiden, eu havia pensado brevemente numa pergunta que, num jogo de fuga inconsciente, jamais tentara responder. A família ten Boom ainda tinha negócios em Leiden. E quanto à família real do meu pai, os Bergman?

Buscando na internet no meu tablet, não encontrei nenhuma loja com esse nome, mas havia algumas ocorrências para Bergman em Roterdã. Navegando pelo Google, encontrei um artigo, basicamente um anúncio de joalheiros locais, que se referia a um “Meester Horlogemaker — mestre relojoeiro — na loja de Roterdã de uma elegante rede internacional de joalherias. A loja abria aos sábados e ficava a menos de quarenta e cinco minutos de trem. Senti todo o peso do destino sobre os ombros ao decidir que iria até lá no dia seguinte.

Acordei tarde e estava pronto para sair quando Narawanda entrou pela porta, carregando uma pequena sacola em cada mão. Nós nos entreolhamos na sala.

— Eu achei que você estivesse no trabalho — eu disse. Era o tipo de observação obviamente idiota que se faz quando não se consegue pensar em mais nada.

— Eu estava. Tinha que terminar uma petição. Mas, quando mandei o esboço para Bozic, ele ligou e me mandou vir para casa. Ele disse que vou ficar com estafa se continuar trabalhando nesse ritmo.

— Ele tem razão.

— Verdade.

Nenhum de nós deu o passo seguinte.

— Você está saindo? — perguntou ela por fim.

— Tem uma exposição num museu em Roterdã com um nome que eu não consigo pronunciar. — Eu tentei falar ainda assim. Não era exatamente uma mentira, porque eu tinha pensado em passar lá para obter qualquer refúgio que precisasse depois de procurar pelos parentes do meu pai.

— Boijmans Van Beuningen. A exposição Bosch? Eu adoraria visitá-la. — Nara ficou subitamente animada, mas isso refletia sua vulnerabilidade ao impulso, que, naquele caso, surgira do seu amor pela arte. Também imaginei que, após vários dias, seu constrangimento começava a arrefecer. — Tudo bem se eu for com você?

— É claro. — Não parecia haver mais nada a dizer.

Caminhamos até a estação de trem. No dia em que cheguei, pensei que estava alucinando quando vi o imenso bicicletário ao lado da Den Haag Centraal, uma malha de aço de dois andares que se estendia por quase um quarteirão e abrigava milhares de bicicletas. A visão agora era familiar.

O dia estava maravilhoso, claro, cálido e com uma brisa mais leve que o normal, parte da breve temporada durante a qual Haia realmente se tornava uma cidade de praia. Nara disse que a gente devia caminhar até a beira-mar se houvesse tempo na volta. Goos e eu pretendíamos ir até lá depois do interrogatório de Kajevic, mas havíamos pegado o caminho errado. Concordei com Nara, tentando não pensar nas pressuposições dela.

A bordo do Intercity, eu me virei para ela.

— Eu preciso dizer algo.

— Claro. — Seus olhos se acenderam de antecipação.

— É sobre o motivo da minha ida a Roterdã.

— Ah.

Mas Nara apoiou o queixo na mão enquanto me ouvia, com os grandes olhos repletos de compreensão.

— Isso é bem complicado — comentou ela depois de ouvir toda a história. — Deve estar sendo extremamente difícil para você. — Essa era uma verdade profunda que eu jamais havia estado disposto a admitir para mim mesmo.

— Tem sido difícil de processar, muito pior do que eu havia imaginado. É difícil descobrir, aos 40 anos, quando você acha que finalmente se encontrou na vida, que tudo abaixo de você, sua fundação como pessoa, não está realmente lá nem nunca esteve. Fiquei chocado ao descobrir quão furioso estou com os meus pais. Não pela escolha deles, que não me cabe julgar. Mas por não dizerem a verdade aos filhos e nos darem a chance de crescer com ela.

Nara estendeu o braço e segurou minha mão por um momento.

Quando chegamos a Roterdã, eu estava nervoso, tomado pelo pior tipo de ansiedade, que sempre parece maior do que se pode imaginar. Saímos da estação, um triunfo de ângulos elegantes, e nos deparamos com o movimentado centro da cidade, que era uma verdadeira exposição de arquitetura. Ainda havia alguns edifícios antigos, mas os arranha-céus dominavam o ambiente, e muitos deles pareciam ter sido construídos com um espírito experimental. Admirei a coragem de uma comunidade comercial disposta a apoiar esse tipo de inovação, embora vários dos resultados convidassem ao riso. Havia um prédio com uma fachada de folhas de metal unidas por enormes rebites, como se o arquiteto tivesse se inspirado num duto de aquecimento.

Eu estava com o endereço da joalheira onde Bergman trabalhava na mão. Me sentindo como um recém-chegado ao país, segui o aplicativo de navegação e conduzi Nara até uma rua antiga e elegante, repleta de árvores verdejantes e edifícios seculares com fachadas de calcário. Era fácil localizar a loja, porque havia um Rolex redondo com borda dourada pendurado sobre a porta.

Atrás do balcão, estava um jovem de camisa de manga curta de raiom e gravata. Pedi para falar com Meneer Johannes Bergman.

O rapaz refletiu sobre isso, olhou para cima e estendeu a palma da mão. Levei alguns segundos até perceber que ele estava pedindo meu relógio. Em vez de explicar, retirei-o do pulso. Era um Patek Philippe que meu pai tinha me dado no meu aniversário de 21 anos, um modelo vintage chamado Calatrava. Na época, eu gostava dele por causa da aparência sem afetação, com caixa redonda e pulseira de couro preto. Anos depois, quando havia mandado limpá-lo, descobrira que era bastante valioso, um modelo de 1932. Para mim, contudo, seu significado residia inteiramente no fato de que tinha visto meu pai usá-lo quase diariamente durante a minha infância. Ele me dissera um milhão de vezes que Patek Philippe havia sido o primeiro fabricante de relógios do mundo. Por isso, quando ele abriu a pulseira e prendeu o relógio no meu pulso, parecia que estava passando adiante algo essencial.

Alguns segundos depois de o jovem ir até os fundos com meu relógio, um homem de pelo menos 80 anos abriu as cortinas que separavam a oficina da loja. Minha primeira impressão foi de que era alto demais para ser membro da minha família. Ele devia ter um metro e oitenta, com a careca emoldurada por um musgo macio de longos cabelos brancos. Não havia removido seus acessórios de relojoeiro. As lentes monoculares com múltiplos anéis estavam encaixadas num tapa-olho de couro que ficava preso em torno da cabeça por uma tira arranhada, o que indicava gerações de uso. Meu pai usara um instrumento similar, o que, quando eu era muito jovem, o tornava tão assustador quanto um ciclope. O relógio estava na mão do homem, e parecia haver incredulidade tanto em sua expressão quanto na maneira apressada como saiu da oficina.

— Esse relógio é seu, senhor? — Ele falava inglês com um sotaque holandês pesado.

Mesmo com metade do rosto oculto, subitamente pude ver a semelhança: o nariz longo e o queixo comprido do meu pai, além do mesmo azul-claro no único olho visível, embora o homem fosse muito mais bonito do que meu pai jamais havia sido.

— Esse número de referência é muito raro — comentou ele, referindo-se ao modelo. — Mas parece que está funcionando muito bem. Tem algum problema?

— O relógio pertenceu ao meu pai. Acredito que ele era seu irmão mais velho. Daan Bergmann? — Quando eu havia acordado naquela manhã, sequer conseguia me lembrar do nome de nascimento do meu pai e tivera que enviar uma mensagem para minha irmã.

— Daan Bergmann?

— Sim.

O homem repetiu as palavras, olhou para trás e se jogou numa cadeira alta atrás do balcão. Então removeu o aparelho da cabeça. Estava boquiaberto e olhou para o vazio por algum tempo, sem parecer focar em nada. Ainda segurava o relógio delicadamente numa das mãos. Ele acordou do devaneio e olhou para baixo, a fim de se assegurar de que ainda estava lá. Então falou comigo outra vez, começando em holandês, antes de se repetir em inglês.

Seu pai? — perguntou ele.

Ja — respondi. Depois disso, ele falou apenas holandês, com Nara uma ou duas vezes sussurrando a tradução ao meu lado. — E qual é o seu nome?

Eu respondi.

— Sim, ten Boom — concordou ele. Anos se passaram pelos seus olhos. — Eles convidaram o meu pai primeiro. Para ir a Leiden. Mas ele não quis abandonar a família. Então enviou o seu pai no lugar. Ele desapareceu sem dizer uma palavra a ninguém. E os nazistas nos pegaram. Todo mundo da família.

Ele pensou por um momento sobre o que mais dizer e então transferiu o relógio para os dedos da mão esquerda. Com a direita, retirou a abotoadura do punho esquerdo e dobrou a manga. Eu sabia o que ele estava prestes a me mostrar, mas meu coração ainda ficou partido quando vi os números que os nazistas tatuavam no antebraço dos prisioneiros de Auschwitz.

Assenti para indicar que havia compreendido.

— Minha mãe sobreviveu, e eu sobrevivi — disse ele. — Mais ninguém. Ninguém. Eu me lembro deles todos os dias. Vinte e duas pessoas, cinco crianças. Mas tento não pensar no seu pai.

Ele tinha conseguido reunir a força da convicção. Levantou-se e se empertigou antes de estender o braço sobre o balcão e me entregar o relógio.

— Foi bom conhecê-lo — continuou. — Mas, por favor, nunca mais volte aqui.

Fomos para o museu, conforme o planejado, mas eu não estava em condições de olhar para nada. Nara e eu nos sentamos num banco estofado ao lado da entrada, logo depois do quiosque de venda de ingressos, ao pé de uma escadaria contemporânea que levava à exposição. Apoiei a cabeça na parede, e Narawanda segurou a minha mão.

Como eu tinha contado a ela havia apenas algumas horas, eu sempre me esforçara para não julgar meus pais pelo que eles fizeram. No entanto, como os filhos costumam fazer, eu tinha visto tudo apenas da minha perspectiva, ávido por compreender qual havia sido a deles. Eu havia sofrido imaginando como devia ser para meu pai e para minha mãe quando alguma coisa — uma nota musical, um sabor proustiano, uma pintura, um fragmento de conversa em holandês — trazia a pungente lembrança de Roterdã. Isso devia acontecer vez ou outra, por mais que eles se esforçassem. Será que sentiam pesar por não poderem partilhar comigo e com Marla o que em alguns momentos do passado haviam valorizado? Ou vergonha por esconderem suas verdadeiras identidades? Eu tinha certeza de que eles afastavam essa angústia momentânea sempre com o mesmo mantra: foi o melhor a fazer.

Mas minha compaixão não havia se estendido a mais ninguém. Eu jamais me perguntara o que essa escolha havia significado para os parentes deles. Assim, havia aprendido algo excruciante naquele dia. Meus pais se agarraram com tanta força à sua identidade como ten Boom não apenas pelas razões que eu tinha entendido havia muito — para que a imigração americana não descobrisse que entraram no país com um nome falso ou para se assegurar de que seriam vistos como gentios quando a próxima inquisição começasse — mas também porque era a final e incontrita renúncia a suas famílias, uma forma de dizerem a si mesmos que aprenderam a lição com a mulher de Ló e não olhariam para trás. Eles já não eram Bergman e não aceitariam nenhuma culpa. Finalmente, compreendi por que rejeitaram tudo que fosse holandês.

Eu estava grato pelo meu tempo na Terra, embora a vida, como a morte, fosse tão elementar que era difícil ponderar sobre o estado alternativo. Mas jamais me ocorrera que havia toda uma comunidade fragmentada na Holanda que via meu pai e minha mãe com desdém.

— Por isso eles não queriam que soubéssemos — falei a Nara.

— Como?

— Meus pais. Não era o fato de serem judeus, não era isso que eles queriam esconder de nós.

— E o que era?

— Eles não queriam que soubéssemos que haviam abandonado suas famílias. — Olhei para Narawanda ao dizer isso. — Eu nunca pensei neles como covardes.

— Nem deveria — retrucou ela, sem hesitação.

— Ele pensa. Johannes.

— Ele está amargurado. Porque ele sofreu, porque aqueles que ele amava sofreram e porque seus pais, não. Mas, se Johannes conversasse com você mais um pouco, suspeito que você também descobriria que parte da raiva dele, quer ele perceba ou não, é do próprio pai por ter feito a escolha que infligiu tanta dor a ele e ao restante da família. E os seus pais compreendiam isso. De que adiantaria seus pais terem recusado aquela chance, Boom? Teria ajudado em alguma coisa se os nazistas tivessem feito mais duas vítimas?

O que ela dizia fazia sentido. Mas também havia razão na indignação de Johannes. Não há regras, não há ordem, não há civilização se for cada um por si. Eu disse isso a Nara.

— Essa é a mesma conversa que tivemos há algumas semanas — comentou ela.

Tenho certeza de que reagi com uma expressão completamente vazia.

— Quando eu disse que não sabia o que faria em tempos de guerra? — perguntou ela. — As pessoas fazem coisas horríveis, mas frequentemente porque enfrentam escolhas terríveis. Podemos admirar os heróis que colocam os princípios acima do perigo para si mesmos. Mas esse tipo de comportamento não é o normal. Ele, Johannes, pode desejar acreditar que, se seus pais tivessem ficado, poderiam ter ajudado a evitar o que aconteceu, mas nós dois sabemos que isso é como desejar um milagre. A vontade de milhões não foi suficiente para impedir os nazistas. Para mim, salvar duas vidas foi o melhor que seus pais puderam fazer. E muitas pessoas, a começar pelos seus filhos e até mesmo eu, são gratas por eles terem tomado essa decisão e por você estar vivo.

Ela olhou para mim sem medo ao fazer essa última observação, com o queixo erguido e os olhos claros. Não havia flerte em suas palavras, apenas fatos.

Caminhamos de volta à estação, sem falar muito. Quando embarcamos no Intercity, estendi o braço e segurei a mão de Nara durante a mais de meia hora que levamos para voltar a Haia. A bordo do trem, concordamos em pegar o bonde para Scheveningen e para o mar, uma viagem de não mais de dez minutos. A praia me parecia um bom lugar para refletir.

Durante o inverno, a vida em Haia transcorre como se Scheveningen estivesse muito longe, mas, com a chegada do verão, a imensa praia fica lotada, com mesas do lado de fora dos cafés e famílias brincando à beira da água gelada. O mar do Norte, normalmente de um verde plúmbeo, fica azul sob o sol e se encrespa ligeiramente sob a brisa suave.

Nós nos sentamos na areia. Nara usava um vestido longo e enrolou a saia, estendendo as belas pernas morenas na areia. Em algum momento, tiramos os sapatos e andamos pela orla, novamente de mãos dadas.

O que está acontecendo? O que você está fazendo? Eu não sabia. Mas estava preso nos desdobramentos do tempo. Dada a experiência que tinha vivido em Roterdã e o conforto sem hesitação oferecido por Nara, eu me sentia impelido por um impulso que não queria controlar.

Ainda descalços, caminhamos até as mesas amarelas de um dos cafés para uma refeição simples. Tomamos vinho, o que aumentou minha apreciação pela luz emanada do mar e pelo puro prazer de estar respirando.

Por volta das quatro, quando começou a esfriar, pegamos o bonde de volta para a Fred e caminhamos até em casa, nos comunicando com palavras isoladas. Entrei na claridade débil do apartamento sentindo o peso de tudo que acontecera desde que havíamos partido, algumas horas antes. Desabei no sofá, e Nara se sentou numa das mesinhas quadradas de centro, ficando diretamente na minha frente, com os joelhos encostados nos meus. Ela estendeu as mãos e segurou as minhas, me observando com imensos olhos negros.

— Por favor, será que podemos acabar logo com isso? — perguntou ela.

Ri pela primeira vez em horas. Eu não tinha certeza absoluta se Nara havia segurado minha mão apenas para oferecer consolo, como uma boa amiga. Mas estava grato e me sentia muito mais próximo dela do que quando havíamos saído pela porta, sete horas antes. Mesmo assim, na minha imaginação, voltaríamos para casa e nos afastaríamos. Para ficarmos juntos, se isso chegasse a acontecer, seria necessário haver mais reflexão e tempo. Mas Nara era Nara, docemente sujeita aos seus impulsos e completamente direta, e fiquei feliz por ela desejar tornar tudo mais fácil para nós dois.

Então nosso momento chegou, e, outra vez, como em Tuzla, experimentei o drama e a definição que era o primeiro beijo. Mais da metade do que quer que vá acontecer entre um homem e uma mulher é determinado pelo primeiro toque ávido dos seus lábios. O muro que nos separa de todos os outros se dissolve, e, desse momento em diante, os dois entram num terreno diferente. E foi o que fizemos.

Por volta das dez da noite, acordei com Nara aconchegada ao meu lado na minha cama. Cansados, havíamos dormido por uma hora. A cortina estava aberta, e eu via o céu negro salpicado de estrelas, uma visão rara em Haia, onde a noite frequentemente era nublada. Pelo ritmo de sua respiração em meu pescoço, eu sabia que ela também estava acordada.

— Nós só estamos solitários? — perguntou ela com uma voz bem baixa.

Refleti por um momento.

— Não. Não parece ser o caso para mim. Parece para você?

— Esse foi um passo tão grande que ainda estou em choque, especialmente comigo mesma. Eu não tenho certeza de nada, exceto que, depois dessa noite, minha vida jamais vai voltar a ser a mesma. Mas, nas últimas semanas, quando ousava ser honesta, eu achava que estava me apaixonando por você.

— Mas agora não tem mais certeza? Esse é um grande elogio às minhas habilidades como amante.

Ela me deu uma cotovelada nas costelas como represália. Contra as minhas expectativas, nós dois tínhamos nos divertido. Apesar de sua ocasional timidez, essa era uma área na qual Nara havia provado não ter problemas para se soltar.

— Você está mudando de assunto — disse ela. — Você me ama, Boom? Pelo menos um pouquinho?

— Nesse momento, sim. Bem mais que um pouquinho.

Eu temia que a minha resposta soasse evasiva, mas ela deu uma risadinha.

— Uma amiga minha, uma mulher mais velha, disse uma vez que todo homem permanece apaixonado por uma hora antes e depois de cada orgasmo.

Eu também ri.

— Isso significa mais que apenas orgasmos, Nara. Para nós dois. Disso eu tenho certeza.

Ela ficou de lado, apoiada num cotovelo, e me encarou com sua habitual sinceridade no olhar.

— E o que vai acontecer? Com a gente. — Ela confiava em mim, como pessoa mais velha e mais sábia, para fornecer a resposta. — Você sabe?

— Não. Ainda não. Mas não estou preparado para me preocupar com isso agora. Vamos respirar. Vamos viver.

— Mas eu não sei nem mesmo o que vai acontecer em seguida. — Ela queria dizer na segunda ou na terça-feira, quando retomássemos o bom senso.

Assumi a mesma posição sobre o cotovelo para poder olhá-la de frente.

— Isso eu sei — respondi.

— Mesmo?

— Eu vou mostrar o que acontece em seguida — declarei, e gentilmente a fiz se deitar de novo.