30.
A caverna — 29 de junho a 2 de julho
Goos ligou da Bósnia por volta do meio-dia de segunda-feira, no que, para ele, era um estado de bastante agitação.
— Alguma notícia de Attila?
— Você quer dizer hoje?
— Hoje, ontem. Estou com a equipe toda aqui, pronta para começar a analisar a caverna, e não temos nenhum dos equipamentos que ele prometeu.
— Ela.
— Ela, ele, tanto faz. Não tem nada aqui. E nenhum dos sujeitos que contratamos.
— Você ligou para ela?
— Um milhão de vezes, parceiro. Até que eu finalmente consegui falar com o escritório. Disseram que ela está nos Estados Unidos.
— Talvez tenha havido alguma emergência.
— Eu acho que não, parceiro. Me disseram que ela estava planejando férias desde a semana passada.
Como se tornara comum nos últimos tempos, eu tinha dificuldade para discernir os motivos. Talvez Attila tivesse sido instruída a parar de nos ajudar pelas pessoas das quais dependia para seus negócios no Departamento de Defesa. Ou talvez a orientação tivesse vindo de Merriwell.
— Parece que ela não está mais do nosso lado, hein — comentei.
— Acho que ela nunca esteve, parceiro.
Eu entendia por que Goos estava dizendo isso, mas a pessoa que havia nos buscado na mina de sal parecia, dadas as limitações do nosso contato recente, uma amiga. O enorme amor de Attila pela vida parecia vir de sua sensação de estar sendo útil. Era difícil acomodar isso à noção de que tinha sido falsa conosco durante todo aquele tempo.
Goos e eu desligamos e voltamos a conversar por volta das cinco da tarde. Ele contatara uma construtora que o havia ajudado, durante seu tempo no Tribunal Iugoslavo, a exumar algumas das centenas de covas coletivas perto de Srebrenica, dezoito anos antes. A empresa ainda estava operando e poderia entregar o equipamento na tarde do dia seguinte. Seu preço era inferior ao de Attila. Quanto aos trabalhadores, com o desemprego na Bósnia chegando a vinte e cinco por cento da população, Goos não estava preocupado. Ele havia ligado para uma das recepcionistas do Blue Lamp, que dissera que teria um grupo organizado à noite. A escavação começaria tarde na terça-feira. A menos que ele ligasse antes, concordamos que eu viajaria na quarta, como originalmente planejado.
Eu havia contado a Nara que voltaria à Bósnia, mas ela ficou infeliz ao ouvir a confirmação quando estávamos nos vestindo para nossa corrida, na noite de terça.
Nossa nova vida juntos, agora no quarto dia, não parecia tão diferente da antiga. Íamos para o trabalho. Voltávamos para casa. Corríamos. Comíamos frutos do mar, tomávamos vinho e conversávamos, com a exceção de que fazíamos isso entre os momentos na cama. Qualquer cautela que eu tivesse pretendido manter tinha evaporado no calor do quarto e na crescente intimidade. Eu confiava em Nara Logan. Sabia que ela jamais me machucaria intencionalmente. Tão importante quanto, ela vira demais de mim nos meses em que havíamos dividido o mesmo espaço para que eu tentasse esconder os pontos fracos da minha personalidade, num comportamento típico do início de um novo relacionamento, quando as pessoas ainda estão esperando para ver o quanto o amor pode mudá-las. A honestidade sem malícia de Nara às vezes ultrapassava os limites da sensibilidade — como quando ela me comparou a Lewis na cama, naturalmente me concedendo o prêmio, embora, pelo visto, eu não tivesse proporções tão generosas quanto as dele —, mas, de modo geral, eu me sentia satisfeito por estar com uma pessoa tão isenta de premeditação. Com Nara, eu era tão eu mesmo quanto jamais seria com qualquer pessoa.
Com o tempo, veríamos se isso duraria e quão longe nos levaria, mas, na terça-feira, encarei o fato de que estava absolutamente louco por ela. De um modo um pouco perverso, eu estava feliz por sair da cidade para descobrir quanto da minha ânsia permaneceria quando estivéssemos separados.
No aeroporto de Sarajevo, aonde cheguei por volta de uma da tarde depois de uma parada em Munique, não tive problemas para encontrar meus dois acompanhantes da OTAN. Logo após a área de segurança, eles me esperavam na farda de combate completa do Exército dinamarquês, incluindo coletes à prova de bala, capacetes e carabinas M10. A visão de armas de assalto no aeroporto atraiu bastante atenção, mas a general Moen claramente estava fazendo uma declaração enfática a quem quer que pudesse querer se vingar pela captura de Kajevic.
Havia um SUV no meio-fio com a bandeira azul da OTAN, a estrela de quatro pontas sobre cada farol dianteiro. Avançamos pelas colinas da Bósnia que eu vira antes cobertas de neve e que agora exibiam o verde animador do verão. No meio da jornada, tive um breve acesso de terror quando algo nas montanhas, uma forma ou mesmo o ângulo da luz, reacendeu a memória da minha última viagem pelo país. Durante a maior parte do tempo, contudo, permaneci calmo e estranhamente satisfeito por estar de volta.
Pedi ao motorista que me levasse diretamente para Barupra, pois queria chegar lá antes que o trabalho fosse interrompido. Chegamos pouco antes das quatro da tarde.
Da beirada do antigo campo de refugiados, olhando para baixo, vi que a mina Rejka agora parecia uma colmeia. O maquinário pesado tinha se aproximado, arriscando-se pela estreita rua de terra. Duas escavadeiras amarelas haviam escalado a face da caverna com suas esteiras e abriam buracos na terra. Goos me dissera na noite anterior que a professora Tchitchikov estava confiante de que o vão original na formação rochosa, resultado da exploração do veio de carvão, não desabaria enquanto os detritos eram retirados. Depois de remover a pilha de pedras, as escavadeiras esvaziavam as pás nas caçambas de dois caminhões basculantes vermelhos, que então desciam até o vale, depositando seu conteúdo sobre grandes lonas verdes. Lá, uma equipe de trabalhadores em trajes de segurança alaranjados separava cada pedra individualmente. Muito mais distante, eu conseguia ver os objetos enegrecidos — ossos, pelo que imaginei — que foram separados sobre lonas azuis menores. Outros trabalhadores de uniforme laranja tiravam fotos do material.
Como sempre, evitei focar nos restos mortais. Não era fácil enxergar tão longe, de qualquer forma. A poeira erguida pela escavação era uma fumaça amarronzada de odor acre e gosto amargo. Todo mundo usava máscaras brancas, incluindo os soldados da OTAN, que estavam posicionados nos cantos, com rifles atravessados sobre o peito.
Meu motorista da OTAN teve uma conversa complicada pelo rádio. Aparentemente, a estrada da mina estava bloqueada por uma grande grua cujo operador ninguém conseguia localizar. Assegurei a todos que não havia problema em caminhar até lá. Eu usava jeans e botas de escalada e fui cambaleando até o local da escavação, enquanto meus dois guarda-costas observavam de cima. Mais da metade da caverna parecia já ter sido escavada, deixando visível a borda da saliência original, de um marrom mais escuro que as rochas ao redor.
A motorista de um dos caminhões se inclinou para fora da cabine quando me aproximei.
— Beel? — perguntou ela.
Ela fez um gesto para o banco do passageiro e me levou até o vale, onde Goos me esperava com sua máscara branca. Ele a levantou até a testa e tomou um gole d’água da garrafa que segurava. A parte do seu rosto que a máscara cobria estava muito mais clara que o restante.
Perguntei como ele se sentia, mas Goos dispensou a pergunta como se espantasse uma mosca.
— E a escavação?
— Eu diria que já percorremos uns dois terços do caminho. Venha dar uma olhada.
Fui com ele até as lonas azuis, uma caminhada de vários metros. Lutei contra a fobia, mas, quando finalmente tive coragem de olhar, vi que o que havia lá não eram ossos.
Parei de súbito e agarrei o braço de Goos.
— Armas? — questionei.
— Sim, armas. E pedaços de caminhão.
Sobre cada lona estavam depositadas lado a lado umas duzentas armas leves, num arsenal que cobria uma área pouco menor que um campo de futebol. Lá estavam os tubos verdes das armas antitanques, mísseis portáteis e seus lançadores, granadas, carabinas, rifles de precisão, metralhadoras e pistolas, morteiros com tripés e, mais frequentemente, Zastavas. Aqui e ali os trabalhadores também alinharam capacetes e trajes blindados. As lonas mais distantes continham caixas de munição e tiras de projéteis de metralhadora.
— Eu diria que são umas cinco mil armas — comentou Goos. — Hoje, conforme nos aproximávamos do fundo da caverna, encontramos partes de caminhões, de para-lamas a blocos de motor. Parece que eles tinham um pequeno armazém por aqui.
— E quantos corpos?
— Até agora, nenhum — respondeu Goos. Seus olhos azuis se estreitaram por causa da poeira, mas permaneceram fixos em mim, aguardando a minha reação. — Ontem à noite, encontramos alguns ossos e ficamos meio animados, não que encontrá-los fosse algo a ser celebrado. Mas eles pertenciam a uma raposa. Até agora, esses foram os únicos vestígios biológicos.
— Você tem certeza?
— Temos dois caras analisando cada partícula de poeira. É o mesmo protocolo que usamos perto de Srebrenica, Boom. Encontramos o lixo normal de crianças: embalagens, garrafas, uma bola de praia furada. Mas nenhuma roupa e nenhum osso. Borrifamos Luminol aqui e ali mas também não encontramos sangue. A única descoberta decente está ali.
Goos me conduziu até outra lona azul, na qual fragmentos de equipamentos eletrônicos haviam sido isolados. Eles estavam cobertos de poeira e, no geral, não eram mais que pedacinhos de arame, semicondutores e metal, mas, no canto, foram separados cerca de dez celulares quadrados, de modelo antigo, cada um deles do tamanho de um brioche e praticamente intacto.
— É um trabalho infernal tentar acessar uma dessas coisas, mas, no laboratório, eles podem conseguir. Pode haver fotos, mensagens, algo que ajude a identificar as pessoas que estiveram aqui. A tarefa mais difícil vai ser encontrar carregadores.
— E isso é o melhor que temos?
— Pelo que posso dizer, Boom, a caverna era algum tipo de depósito de armas. Elas são na maioria iugoslavas, com alguns velhos itens soviéticos aqui e ali. Há marcas entalhadas nos componentes. Vamos precisar conferir com os militares, mas acho que isso significa que essas coisas estiveram sob a custódia da OTAN em algum momento.
— E você acha que a OTAN as enterrou aqui?
— Para dizer a verdade, Boom, eu nem comecei a pensar por que essas armas estão aqui. Ainda estou lidando com o fato de não haver restos mortais.
— Os corpos ainda podem aparecer?
Goos inclinou o rosto para cima, na minha direção.
— Como eu disse, ainda temos um terço do caminho a percorrer, mas, se quatrocentas pessoas tivessem sido obrigadas a entrar num espaço desse tamanho, já teríamos visto alguma coisa. Na minha opinião, a chance de ainda encontrarmos algo é nula.
Como Goos, olhei para a caverna, onde o poderoso motor de uma escavadeira tinha acabado de ser ligado, peidando fumaça preta. A poeira amarga no ar já se acumulava no fundo da minha garganta, e havia alguma irritação nos meus pulmões. Mas minha principal reação foi emocional, uma espécie de tontura por aquele ser o resultado de tantos meses de trabalho.
— Então Ferko era um completo mentiroso? — perguntei. — Era tudo invenção?
Mesmo agora, eu esperava descobrir alguns elementos de verdade no depoimento dele, mas Goos assentiu solenemente.
— Tudo um monte de merda — falou ele.
A general Moen e o coronel Ruehl jantaram em Tuzla naquela noite. O braço de Ruehl permanecia no gesso que ele ainda usaria por várias semanas, de modo que um assistente intervinha sempre que ele precisava cortar algo no prato.
O jantar deveria ser uma celebração. Goos e eu não estávamos realmente no clima e, como descobrimos, nem o pessoal da OTAN. Era bom para o mundo que Laza Kajevic tivesse sido capturado e uma realização para os soldados que o caçaram, mas mesmo a ideia de Kajevic e seus crimes era suficiente para arrefecer a animação.
Goos trouxe várias das armas que havíamos recuperado numa sacola de lona, e tanto Ruehl quanto a general Moen as examinaram, sendo discretos o bastante para que apenas alguns dos presentes notassem. Nenhum dos dois reconhecia as marcas, mas o assistente de Moen havia estado lá em 2004 e confirmou que as gravações a laser se pareciam com as que a OTAN, especialmente as forças americanas, fazia na época em que apreendia armas na Bósnia.
Enquanto comíamos a sobremesa, a general Moen perguntou se tínhamos ouvido algum relato, em Haia, sobre como Kajevic estava se adaptando ao confinamento. Falei apenas que tinha ouvido dizer que ele não gostava da comida holandesa.
Na manhã de quinta, tomei o café da manhã com Goos antes de voltar para Haia. Ele ficaria na Bósnia até que a escavação terminasse e todas as armas e peças de caminhão fossem fotografadas. Ele preferiria transportar tudo que havia descoberto de volta para Haia, mas transportar armas exigiria permissão. Planejava ir para Bruxelas no domingo, a fim de ajudar Fien a fazer as malas. Com o neto mais jovem agora em idade escolar, ela decidira ficar em Haia pelo menos até o fim do verão, mas talvez permanentemente.
— Eu disse a ela que tentaria o programa mais uma vez — comentou Goos. Ele evitou meus olhos ao dizer isso.
Eu havia notado que ele não bebera durante o jantar da noite anterior e temera que não se sentisse bem, talvez em função de toda a poeira causada pela escavação. Fiz que sim com a cabeça, apenas para demonstrar que ouvira. Havia muita informação naquela frase.
— Se der certo — continuou ele —, vou ter que dar crédito a Kajevic.
Eu não tinha certeza se Goos se referia ao insulto de que parecia um bêbado ou ao momento de reflexão que os Tigres nos forneceram no alto do tanque. De qualquer modo, não fazia muita diferença.
Trocamos um aperto de mão, o que não era costumeiro nos nossos encontros, antes que eu me levantasse para ir embora do Blue Lamp. Tínhamos vivido eventos memoráveis naquele lugar.