33.

Foley Square — 9 de julho

Deixei a mala num hotel em Nolita que tinha escolhido pela internet e caminhei através de Chinatown até a Foley Square, procurando o número 60 da Centre Street, a sede original da Suprema Corte de Nova York. Eu nunca havia estado no edifício, embora tivesse passado mais tempo do que gostaria no tribunal federal do outro lado da rua. Lá, aquele ar de “foda-se” que pairava em Nova York tinha deixado as relações entre promotores e advogados de defesa tão amargas que eu poderia muito bem ter me apresentado aos promotores-assistentes com quem tivera que lidar como a Serpente do Jardim.

Como muitos outros tribunais construídos no século XIX e no início do século XX, o número 60 da Centre Street pretendia ser um templo da Justiça, exibindo uma imponente colunata coríntia. Dentro dele, me deparei com o que encarava como o repertório padrão de Nova York, o que significa uma construção com uma estrutura deslumbrante: pisos de mármore, arcos graciosos, grandiosos lustres beaux arts presos por imensas correntes acobreadas, desenhos delicados no gesso e um mural brilhantemente restaurado sobre a rotunda, exibindo astros da justiça como Lincoln e Hamurabi. Todos esses gloriosos detalhes eram sufocados pela luz débil, pelos anos de fuligem, pela pintura descascada e pelas décadas de reparos incompletos, evidenciadas pelo uso frequente de fita adesiva nos batentes, nas ventilações e em alguns móveis.

A Parte 51, a sala de audiências da divisão matrimonial onde o caso Jahanbani era ouvido, se encontrava no mesmo estado que o restante do edifício, com dois andares e meio de altura, painéis prensados com lambris de carvalho e um corrimão curvo adorável que separava o centro da sala dos bancos de carvalho de encosto reto destinados aos espectadores. A beleza do design parecia se perder completamente na correria do dia a dia. Havia uma lixeira azul de plástico ao lado da bancada dos jurados, enquanto décadas de justiça pareciam cobrar seu preço da bela mobília de carvalho cujo acabamento estava lascado nas bordas. Isso era bastante evidente no caso da longa mesa diante dos juízes, onde vi Esma, sentada ao lado de uma jovem que devia ser uma das advogadas juniores. Na outra ponta da mesma mesa, estavam sentados o cliente e o advogado do lado oposto, uma prática que nunca tinha visto antes e que me pareceu bastante imprudente, dada a natureza explosiva dos litígios de divórcio. Observando aquele arranjo, subitamente compreendi como o Sr. Jahanbani havia sido atingido na cabeça. Ele não parecia ter sido prejudicado pelo golpe, sentado dignamente e com as costas eretas, um homem idoso e ainda muito atraente, calvo e com uma veia pulsando claramente na têmpora.

De acordo com as minhas leituras, Jahanbani v. Jahanbani tinha um trâmite processual tão complexo e irregular quanto o padrão de desenvolvimento de alguns cânceres. Nos últimos anos, os dois foram enviados, em três ocasiões diferentes, para a resolução de questões perante oficiais chamados de “árbitros”, mas estavam outra vez diante do juiz para uma audiência de instrução, a fim de apurar se certos bens do Sr. Jahanbani — dos quais sua esposa queria uma parte — estavam submetidos à jurisdição de um tribunal americano.

Pude ouvir os principais advogados das partes discutindo perante o juiz sobre a ordem das testemunhas no dia. A essa altura da vida, eu já havia aceitado que era um nerd do direito, capaz de me sentar em praticamente qualquer sala de audiências e aproveitar o espetáculo. Eu era inevitavelmente atraído pelas nuances da atuação dos advogados e mais ainda pela maneira como os juízes, que já tinham ouvido tudo aquilo antes e, muito pior, ouviriam tudo de novo no dia seguinte, absorviam discursos e queixas. Provavelmente porque o papel de juiz era o único que eu ainda não havia desempenhado, ficava fascinado com sua atitude em relação ao silencioso dever de ouvir. Alguns pareciam entediados ou impacientes; outros permaneciam sentados, impassíveis como zumbis; outros ainda davam sinais de estar divagando; e os mais admiráveis, porque faziam o que eu nunca conseguiria fazer, pareciam avidamente interessados em cada palavra.

Entre os advogados, sempre há um grupo que não considera o divórcio um litígio legítimo. Eu nunca tinha visto as coisas dessa maneira, embora quase sempre fosse verdade que a angústia das partes dominava os processos. Independentemente da arte dos advogados, sempre se ouvia o mesmo lamento agonizante sendo tocado entre as palavras como os guinchos abafados de um violino: “Ele/Ela não me ama mais.” Essa era uma injustiça para a qual a lei não tinha nenhuma resposta reconfortante.

A juíza, chamada Kelly, uma mulher negra de meia-idade, seguia a idiossincrática prática local, às vezes adotada como uma vênia à democracia, e não usava toga. Sentada à mesa dos juízes usando um terninho cor de malva, claramente era a encarregada, agindo de forma agradável mas eficiente. Sem muita elaboração, decidiu em favor de Esma na última disputa. Com isso, anunciou o recesso e saiu da sala. Todos se levantaram, e Esma, conversando com a advogada principal, que havia retornado à mesa, olhou para onde eu estava enquanto elas caminhavam para o corredor. Esperei ao lado do corrimão.

Quando me viu, Esma parou. Embora seus olhos jamais se desviassem de mim, ela tocou o ombro da advogada e lhe disse que seguisse sozinha. Alguns segundos depois, passou pelo vão do corrimão para me abordar.

— Bill — disse ela. Parecia ofegante com a surpresa. Estava novamente vestida para o tribunal: um vestido cinza simples, poucas joias e o imenso cabelo domado por uma fita. Parecia bem e, como sempre, bela. — Que surpresa!

— Preciso falar com você.

— Bill, sinto muito por não ter retornado suas ligações. Mas não preciso explicar, preciso?

— Isso, não. Talvez algumas outras coisas.

Ela fez um gesto com a mão, indicando o caminho, e seguimos pelo corredor escuro de paredes revestidas de mármore. De modo geral, Esma parecia bem mais composta do que eu estaria se tivesse sido flagrado numa mentira daquela magnitude.

— Como você me encontrou aqui?

— Fiz algumas pesquisas. Você descreveu o caso para mim.

— Ah, sim. Como você pode ver, é exatamente como eu disse: amargo e interminável. — Ela caminhava ao meu lado pelo corredor, longe dos ouvidos de qualquer outra pessoa. — Aliás, sua última mensagem mencionava Bank Street?

— Eles afirmaram que não têm nenhuma informação sobre você, Esma.

— Kayla, a recepcionista, é assim mesmo — explicou ela com leveza. — Ela protege a privacidade de todo mundo. — Fiquei surpreso por um momento, até que compreendi sua estratégia. Presumindo que eu não sabia de nada, ela continuava fingindo que era a advogada, e não a cliente, do caso Jahanbani. — O que você precisa saber, Bill?

Eu estava furioso, mas observações pessoais certamente poriam fim à conversa. Minha prioridade era descobrir o que pudesse sobre Ferko e os acordos que ela havia feito com ele.

— Você tem alguma ideia de onde Ferko pode estar agora?

— Não. E acho que eu não diria, se soubesse. Nós dois sabemos que essa é uma informação que ele não quer partilhada. E está bastante aborrecido com você no momento; assim como eu, devo acrescentar.

— Você falou com ele?

— Uma vez, há algumas semanas. Depois de uma das suas mensagens perguntando por ele, eu liguei. Ou tentei ligar. Quando descobri que o celular de Ferko estava fora de serviço, usei o número do filho. Ferko estava furioso, achando que você levou os Tigres de Laza Kajevic até ele. Ferko disse que o algemaram e fizeram perguntas sobre você e Goos. Isso é possível?

— Não foi intencional — falei, embora as respostas de Ferko provavelmente tivessem salvado as nossas vidas.

— Mas vocês foram atrás de Ferko na casa dele?

— Sim.

— Isso é contra as regras do seu tribunal, Bill. Não estou surpresa por ele não querer falar com você. Prometeram a ele que isso nunca aconteceria.

Não falei nada. Eu não ouviria lições de ética de Esma.

— Você está dizendo que nunca viu a casa dele?

Ela inclinou a cabeça para trás e riu.

— Nunca. Eu sequer sei o endereço dele. Prometi, desde o início, que não manteria nenhum registro que permitisse que alguém o localizasse e o punisse por ter testemunhado. Quando nos encontrávamos, eu sempre ligava antes e o recebia quase sempre no meu hotel.

Foi assim que Ferko conseguiu perpetuar sua mentira. Como eu já havia percebido, o próprio fato de ser uma testemunha protegida significava que ninguém investigaria as alegações básicas que tinha feito sobre si mesmo.

— Você quer saber o que a gente descobriu, Esma?

Considerando que a persona de Esma era uma composição estudada, sua surpresa, quando descrevi o que eu e Goos havíamos descoberto em Vo Selo, pareceu sincera. Enquanto ouvia, Esma baixou o queixo e olhou para trás, indicando um banco de pedra encostado na parede.

— Isso tudo é muito estranho — comentou ela. — Você está sugerindo que ele estava interpretando um papel?

— Mais ou menos.

— Isso é horrível. — Então Esma balançou ligeiramente a cabeça, para mostrar que não aceitava o que eu estava dizendo. — Mas você corroborou o depoimento. Eu estava lá quando os ossos de Boldo foram descobertos.

Sentado na outra ponta do banco, ofereci um resumo do que a professora Tchitchikov concluíra a respeito do solo e do que a perícia relatara sobre as balas que Goos havia recuperado.

— Mas com que objetivo? — perguntou Esma. — O que Ferko ganharia plantando balas ou afirmando que a esposa está morta? — Eram as perguntas certas, embora as respostas lógicas parecessem envolvê-la. — Não consigo entender nada disso. Sabemos que houve uma explosão. Sabemos que quatrocentas pessoas de Barupra desapareceram sem deixar vestígios.

— Nós escavamos a caverna na semana passada, Esma.

— E o que encontraram?

— Nenhum corpo.

Sua feição foi tomada pela incompreensão.

— Eles foram enterrados em outro lugar?

— Não, Esma. Que outra prova existe sobre a morte de quatrocentas pessoas além da palavra de Ferko? Nada do que ele disse é verdade. De fato, acreditamos que alguns roma que viviam em Barupra naquela época estão em Kosovo.

Kosovo? — Ela colocou um dedo no queixo. A Esma que eu havia conhecido não parecia confusa com frequência. Ela normalmente tinha em mente seus próprios objetivos e a estratégia para conquistá-los. — O que levaria Ferko a inventar algo assim?

Essa permanecia a questão central. Ofereci a ela meu melhor palpite.

— A única alternativa que realmente faz sentido para mim é que você o mandou fazer isso. Talvez tenha pago a ele por isso. Tudo pelo bem da causa roma.

Eu? — Esma recuou tão rápido que quase caiu do banco. Raiva também não era algo que eu tinha testemunhado nela com frequência. O papel que havia criado exigia um talento inacreditável como atriz, mas, mesmo assim, Esma fizera um magnífico trabalho ao parecer surpresa, confusa e agora indignada. — Eu? Que bem faria à causa roma, como você a chama, inventar uma mentira tão elaborada que cedo ou tarde seria exposta? Francamente, Bill. Eu sei que desapontei você, mas não sou uma completa idiota. Nem mesmo tão pouco confiável.

Passei a mão no rosto. Eu estava pronto.

— Mas você não ficaria surpresa, não é, Esma, se alguém contasse mentiras elaboradas e as personificasse durante anos, apenas pela gratificação que isso oferece?

— Eu ficaria muito surpresa. Até mais que você, Bill. Eu acreditei em Ferko durante quase uma década.

Esperei um momento.

— Você já ouviu falar de uma mulher, vinda de uma família persa no exílio, cujo nome de solteira é Emira Zandi?

Mais uma vez, Esma pareceu abalada. Seus olhos estavam arregalados e imóveis, e ela encolheu os ombros, numa postura protetora. A despeito da maquiagem, achei que sua cor mudara. Ainda mais revelador, todo seu maravilhoso brio havia desaparecido, substituído pela bruxuleante chegada de uma expressão que era a mais rara de todas que passaram pelo seu rosto nos últimos minutos. Ela estava com medo.

— Não, nunca ouvi falar dela. E o que isso tem a ver com Ferko?

— Bem, Emira Zandi é incrivelmente parecida com você, Sra. Jahanbani.

Ela fez uma pausa. Sua boca se retorceu em busca de palavras.

— Sra. quem?

— Você é uma mentirosa. E uma completa maluca. Você poderia evitar alguns problemas para mim, não que fosse se importar com isso, se contasse por que você e Ferko inventaram tudo isso.

De repente, eu lhe dera uma saída, algo relativamente genuíno no que se apoiar: uma negação ferrenha.

— Eu não inventei nada com Ferko. Eu o persuadi a testemunhar no seu tribunal, Bill, o que exigiu algum convencimento. Mas fiz isso porque acreditei completamente nele.

— E se debulhar em lágrimas sobre a foto da família, Esma? — Eu ainda não conseguia chamá-la de outra coisa. — De quem foi a ideia?

Ela meneou a cabeça várias vezes, como se estivesse ganhando inércia para fazer uma concessão.

— Sim, eu sugeri que ele levasse uma foto para o tribunal, Bill. E certamente disse a ele que não valeria a pena passar pela ansiedade e pelo esforço de subir ao banco de testemunhas se não fosse para ser completamente sincero. Mas não o instruí a chorar lágrimas de crocodilo. Eu o preparei, Bill, como você preparou centenas de clientes durante anos, antes de eles prestarem juramento.

Parte essencial do trabalho de um advogado era preparar a testemunha para que ela fosse efetiva na audiência. Mas havia limites, às vezes admitidamente sutis. Todavia, eu nunca dissera a alguém de olhos secos que seria uma boa ideia chorar no tribunal.

— Novamente, Bill, eu nada tinha a ganhar com nenhuma das mentiras que Ferko contou.

— Exceto chamar a atenção para o sofrimento dos roma.

— O sofrimento dos roma é dolorosamente evidente por si só. Esse sofrimento, que se prolonga há séculos, não é fingimento. E eu tampouco estou fingindo.

— Não tenho dúvidas sobre as dificuldades dos roma. Mas jamais vou acreditar em nada do que você disser.

Esma me encarou, calculando suas chances e fazendo seu melhor para não parecer calculista.

— Levaria tempo demais para explicar, Bill. Mas Emira Zandi é a criação. Eu sou quem eu disse que sou.

— Ah, como eu gostaria que isso fosse verdade. Porque eu gostava muito de Esma. Ela não era a mulher certa para mim, mas era alguém que eu admirava e de quem gostava. De certa maneira, era um sonho que se tornou realidade. — Um sonho pornográfico, meu eu interior teria acrescentado, mas não para diminuir a profundidade ou a importância do meu desejo. — Mas não existe nenhuma advogada na Bank Street, ou em todo o Reino Unido, chamada Esma Czarni.

— Me chamavam pelo meu nome de solteira.

— Você disse que nunca havia se casado. E agora encontro você e Jahanbani envolvidos num longo divórcio aqui em Nova York.

— Eu sabia que você era respeitável demais para se envolver com uma mulher casada, Bill, ainda que meu casamento estivesse acabado há uma década.

Ela havia se reconectado com suas habilidades como mentirosa, erguendo o queixo e firmando os olhos para a última declaração sobre Esma. Podíamos continuar falando sobre suas mentiras para sempre, comigo as expondo e ela retrucando com outra mentira, trocando de identidade sempre que precisasse. Esma era bastante descarada. E igualmente talentosa. Não havia por que passar por tudo isso.

— Você me atraiu para a cama, Emira, para que eu acreditasse em toda essa merda. E eu acreditei. Foi muito excitante.

Ela declarou severamente:

— Você queria ser “atraído”, Bill.

— Verdade, queria.

— Mas eu nunca seria nada além de um brinquedinho de seios grandes para você. Você jamais me amaria.

A natureza cáustica da acusação inicialmente me atingiu como outro truque usado por uma inteligente fraudadora para colocar o outro lado na defensiva. Ela havia tentado fazer isso antes, colocando-se na posição de vítima. Eu estava pronto para lembrá-la de que tinha sido ela quem me avisara para não me apaixonar.

Mas, outra vez, nada disso era racional. Não é preciso dizer que alguém que vive uma realidade fabricada faz isso para experimentar coisas que não experimentaria de outro modo. Levando isso em consideração, Esma me alertara para o que, de certa maneira, era o que mais queria. Quem, afinal, sente que recebe amor suficiente?

— Sempre suspeitei que você estava apaixonado por outra pessoa — continuou ela. — E posso ver que estava certa: você está exibindo todos os sinais, sentado aí tão desafiadoramente longe de mim. Foi por isso que você voltou para os Estados Unidos, não foi? Isso está acontecendo há meses. Você voltou para a sua ex-mulher, não voltou?

Coloquei a mão na testa instintivamente.

— Eu esperava, Esma, Emira, quem quer que você seja... — Eu me interrompi no meio. — Eu esperava que, por mais que todo o restante tivesse dado errado, você ao menos tivesse aprendido alguma coisa sobre mim. Aparentemente, estava enganado.

— Você está disfarçando. Eu sei o que sei, Bill. Você agora tem certeza de que está apaixonado, e não é por mim. Vai em frente, Bill. Volte para sua mulher e para sua vidinha no condado de Kindle.

Eu me levantei.

— Você vai me dizer por que fez tudo isso? Por que iniciou essa longa farsa?

— O povo roma merece justiça, Bill. O que quer que pense ou deseje acreditar a meu respeito, os roma jamais tiveram justiça. Quero que eles recebam alguma. E, nesse meu fervor, fui enganada por Ferko, assim como você e Goos.

Concluí que era o melhor que conseguiria dela, o máximo que conseguiria espiar por debaixo da máscara.

— Adeus, Esma.

Comecei a me afastar pelo corredor, e ela tocou meu braço. Falou em voz baixa, com os olhos novamente irradiando parte daquele poder familiar.

— Eu nunca menti para você na cama, Bill.

Do lado de fora, o dia havia se transformado numa selva úmida. Procurei um lugar para me recuperar. Após dobrar a esquina errada, acabei numa avenida atrás de uma prisão coberta de placas de néon anunciando fiadores, e lá encontrei uma bodega. Havia duas mesas de linóleo lascadas debaixo de um ar-condicionado barulhento, e eu me sentei a uma delas, bebendo metade de um refrigerante de um gole só num copo de papel. O chão não era limpo desde a virada do milênio, e o lugar tinha um fedor débil de fuligem e encanamento malfeito. Vários vigaristas indo ou voltando de compromissos no tribunal entravam e saíam, falando alto demais com o paquistanês atrás da máquina registradora enquanto compravam cigarros ou bilhetes de loteria. O homem, presumivelmente o dono, não fazia nenhum esforço para ser amigável. Uma das suas mãos jamais saía de sob o riscado balcão de vidro temperado ao seu lado, uma vitrine de balas e chicletes com um cadeado improvisado. Eu tinha quase certeza de que segurava algum tipo de arma, provavelmente um bastão ou um pé de cabra, fora do campo de visão.

Refletindo, a alguns quarteirões e alguns minutos de distância de Esma, percebi que estava menos irritado do que esperava. Meus pais, especialmente o meu pai, nunca estava longe sempre que eu começava a condená-la por sua vida inventada. Na verdade, muitos de nós praticamos versões menores da mesma mentira, às vezes nos acomodando em novos eus. Somente seis meses antes, eu jogara para o alto a vida que havia passado um quarto de século construindo no condado de Kindle, apenas porque o chamado de Haia me parecera mais autêntico.

A única coisa que continuava me deixando confuso era por que ela queria tanto ser roma. No entanto, durante a minha desordenada pesquisa antes de ir para Nova York, eu havia notado que provavelmente a pessoa de ascendência roma mais famosa do mundo acadêmico, o professor Bavel Wilson, declarado defensor dos direitos civis dos ciganos, lecionara durante décadas na Caius College, em Cambridge, onde Esma tinha estudado. Ele exibia uma figura atraente e inspiradora em seus vídeos no YouTube, e não era difícil imaginar seu efeito sobre a jovem Emira. Mas, sem as excursões psicológicas de um biógrafo, eu jamais compreenderia inteiramente suas motivações. Será que ela se sentia profundamente ferida ou violada de alguma maneira? Era provável. Por que mais iria se apresentar como membro do que Roger apropriadamente chamara de o grupo de pessoas brancas mais massacrado do mundo?

Mas isso era apenas especulação. A única coisa de que eu tinha certeza, enquanto instintivamente mantinha os olhos nos tipos estranhos que entravam e saíam da bodega, era que seu poder de sedução estava enraizado em sua persona dupla. Quem quer que estivesse sendo, algum fragmento de consciência tinha que ser reservado à outra personalidade, a fim de que ela pudesse alternar quando necessário. Com exceção da cama. Eu sempre ficaria excitado quando me lembrasse de Esma me urgindo a experimentar o momento “em que não existe nada além do prazer”. Para Esma, a cama era um lugar de purificação onde, nos momentos de clímax, ela era uma única alma, sem reservas ou ambiguidades. Assim, provavelmente era verdade, ao menos de sua perspectiva, que nunca havia mentido para mim lá.

E, por isso, ela fora capaz de reconhecer um anseio semelhante em mim. Escavando as camadas das suas mentiras e do que elas diziam sobre o caso, sobre Esma e sobre mim mesmo, cheguei àquela arca trancada que os exploradores das histórias inevitavelmente encontram quando caçam tesouros. Lá dentro, estava meu próprio segredinho sujo. Não importava quão desconcertantes fossem seus motivos, sempre teria que reconhecer que havia recebido dela exatamente o que eu queria.