36.
Má pessoa — 11 de julho
No escritório de Attila, eu tinha visto fotos de sua propriedade no norte de Kentucky, mas, no auge do verão, a fazenda e a geografia circundante tinham um viço e uma serenidade que nenhuma fotografia conseguiria transmitir. Ela vivia a cerca de uma hora do aeroporto de Cincinnati, a meio caminho de Louisville, perto de Carrollton. O lugar dava para uma extensão tranquila do rio Ohio, muito parecido com o rio Kindle, ao lado de onde eu havia passado grande parte da minha vida, uma fita azulada de cetim entre as baixas colinas verdes. Seguindo o GPS até o endereço que havia recebido da assistente de Merriwell, eu me vi num interfone ao lado de mais um portão de lanças de ferro com detalhes dourados.
Uma mulher atendeu, com o sotaque forte mesmo ao dizer alô, e forneci meu nome, acrescentando que era amigo de Attila. Estava preparado para ser barrado — ela não está em casa, está ocupada, está doente, não conhece você, vá embora —, mas os portões automáticos se abriram, e entrei por elegantes ladrilhos franceses que percorriam uns bons quatrocentos metros. A casa, toda de pedra branca, mas com aquela grandiosa falsa aparência georgiana cafona, ficava bem no alto de uma elevação, atrás de vários hectares de gramado aveludado entre áreas de floresta.
A bela esposa de Attila, uma mulher de aparência imponente mesmo usando jeans, saiu lentamente da casa para me cumprimentar. Tinha cabelo preto e liso, reluzente como as asas de um corvo e descendo até o meio das costas, e olhos azuis que se destacavam a quinze metros de distância.
Desci do carro e me apresentei. Ela se chamava Valeria.
— Attila na loja — disse ela. — Volta logo. — Ela soava russa ou polonesa e não parecia ter chegado ao país havia muito tempo. — Você nome engraçado. Lembro Attila contou.
Ela me ofereceu café enquanto eu esperava e me convidou a entrar, passando pelas pesadas portas de carvalho na entrada, que era decorada com um brasão que certamente não possuía nenhuma relação com Attila ou com ela. A elegante cozinha, com seus tampos de mármore e eletrodomésticos embutidos nos armários de plátano, tinha saído diretamente de uma revista de decoração e rivalizava com o luxo que eu vira na casa de Ellen e Howard.
Valeria retirou uma xícara de café de um dispositivo cromado do outro lado da cozinha e se sentou no banquinho de couro preto perto do balcão, me indicando outro. O ar ficou um pouco mais pesado enquanto eu tentava descobrir uma maneira de iniciar uma conversa.
— Como você conheceu Attila? — perguntei.
Ela deu um sorriso tenso.
— Ela comprou.
Tinha que ser o sotaque.
— Desculpe, achei ter entendido que ela comprou você.
Valeria conseguiu dar um sorriso sombrio e irônico. A história, embora ela se esforçasse para lidar com a língua, era instigante. Valeria era de Tiraspol, na Moldávia, onde a transição pós-comunista para a economia de mercado havia gerado uma fase desesperadora de inflação, com nenhum trabalho e pouca comida.
— Mulher, Taja, diz: “Venha Itália ser garçonete.”
Taja havia tomado o passaporte de Valeria, supostamente para obter uma permissão de trabalho italiana. Mas, quando se apoderou do documento, forçara Valeria, junto com outras quatro garotas, sob ameaça de uma faca, a entrar num trailer para cavalos, no qual viajaram durante horas. Por fim, as garotas se viram num pequeno barco, fazendo uma viagem noturna para a Bósnia. Lá, ela e aproximadamente outras vinte jovens foram levadas até um celeiro e, sob a mira de uma arma, instruídas a tirar a roupa. Após a inspeção, foram vendidas. A mulher que havia comprado Valeria era dona de uma boate perto de Tuzla.
— Muito má, a mulher. Todo tempo ela diz seus filhos: “Batinela, batinela.” — Batam nela, percebi. — Ainda ouvir quando dorme.
A primeira vez que Valeria recebera ordens para dormir com um homem, ela se recusara. Mas a dona do bar tinha um cliente que pagava bem pelo direito de ser o primeiro a espancar e violentar cada uma das mulheres.
— Nós vive quatro garotas em quarto atrás bar. Também lugar para clientes. Cheiros? Camisinhas no chão. Nunca lavar lençóis. Dorme seis horas, talvez. Uma vez por dia, comida, mas quatro, cinco homens. E ela, a chefe, diz: “Escapar? Você não tem documento de trabalho. Eu telefono polícia, eles levam você prisão.”
Disseram a Valeria que, após seis meses, o débito que ela supostamente tinha com a dona da boate, referente ao custo de levá-la até lá, seria considerado pago e ela receberia seu passaporte de volta. Em vez disso, quando a data se aproximava, a dona informou que a jovem tinha um novo chefe, que havia pagado três mil marcos alemães por ela.
— Era Attila. Viu antes no bar. Era homem, eu pensando. — Ela abriu novamente seu sorriso zombeteiro. — Attila levou eu casa. Deu roupas, comida. Diz: “Você quer ir, ir. Mas você tão linda, eu choro.” Eu diz: “Ok, uns dias.” Attila boa. Muito boa. Muito gentil. Amo muito. Aqui, agora, tem tudo. — Ela ergueu as longas mãos para a cozinha e o paraíso acima.
Ponderei sobre a pergunta óbvia, mas concluí que, se alguém é obrigado a transar para se manter vivo, a ternura pode causar uma grande impressão.
— Você tem amigos aqui?
— Alguns. Igreja. Mas Skype o dia inteiro agora com Moldávia. Attila diz: “Como você aprende inglês, fala dia inteiro romeno?” Entendo inglês bom. Mas não falo.
Contei a ela sobre minhas dificuldades com o holandês nos meses anteriores. Foi então que a porta da frente bateu.
— Ei, amor, quem está aqui? — perguntou Attila.
Ela soava despreocupada, mas parou de supetão na entrada da cozinha ao me ver.
— Boom. — Attila se aproximou muito lentamente e me deu um aperto de mão, sem seu vigor usual. Suas estranhas feições estavam queimadas de sol, e seu senso de moda não havia melhorado. Ela usava chinelos, jeans com uma corda cumprindo o papel de cinto e uma camiseta que fazia um bom trabalho em esconder qualquer sinal de gênero. — O que você está fazendo aqui, cara?
— Eu queria fazer algumas perguntas.
— Eu achei que vocês não podiam investigar aqui nos Estados Unidos.
Eu já havia percebido por que ela fora para casa tão repentinamente.
— Não podemos — confirmei. — Eu estou aqui em causa própria.
— Só você e eu?
— Eu vou contar a Goos.
— E isso é tudo? Como se nunca tivesse acontecido? Eu não quero colocar o meu na reta.
— Você fez algo errado, Attila?
— Fiz, fiz, sim, porra. E você provavelmente já sabe disso a essa altura, não é, Boom?
Eu não estava pronto para dar nenhuma dica.
— Eu sei que você me contou uma bela história.
— Na verdade, não. Foi mais o que eu não disse. Eu gosto de você, Boom. E eu sempre disse que aqueles ciganos não estavam mortos.
— Mas você não disse que os tinha escondido.
Eu a havia surpreendido. Attila não mexeu um músculo enquanto me observava.
— Foi a merda daquele GPS, não foi? — Ela se referia ao único transmissor que surgira brevemente nas fotos aéreas. — Diga a verdade, Boom: eu preciso contratar a merda de um advogado?
— Olha, Attila, se eu relatar alguma coisa do que você disser, seja no tribunal, seja para qualquer um nos Estados Unidos, vou arrumar problemas para mim, porque não tenho permissão para estar aqui fazendo perguntas.
Ela tentou decidir se isso era bom o bastante. Joguei meu trunfo na mesa.
— Eu falei com Merry ontem.
— Hum...
Attila foi até o que descobri ser uma gaveta refrigerada na grande ilha central e serviu chá gelado numa caneca. Após servir uma caneca para mim, ela me conduziu até uma varanda telada. O ar estava pesado, muito mais úmido do que eu sentia havia bastante tempo, mas vinha uma brisa do rio e a vista de suas águas serenas era agradável. Estávamos alto o bastante para que pássaros e libélulas ziguezagueassem pelas árvores na altura dos olhos.
Contei a ela parte do que tinha descoberto: as armas, o Iraque.
— Tenho muitas perguntas. Mas talvez devêssemos começar com uma simples. Como um bando de ciganos arrumou armas para vender para Kajevic?
— Quem disse isso?
— Isso é mentira?
— Merda. Não, não é mentira. Eu só estava tentando saber como você descobriu isso tudo. Você é bom, Boom. Você e Goos. Vocês são bons no que fazem.
— Eu estou velho demais para você me dizer que sou bonitinho, Attila. Apenas me conte a história inteira.
Ela olhou para a caneca, usando o indicador de unha roída para desenhar na condensação sobre o vidro. Seu olhar ainda estava no desenho quando falou:
— Sabe, eu não sou uma má pessoa, Boom. Realmente não sou. Eu estava tentando fazer a coisa certa para todo mundo. Você vai ver. Às vezes, você simplesmente se afunda cada vez mais na merda.
Assenti com a cabeça, mas hesitei em oferecer qualquer consolo. Eu já havia ouvido muitas desculpas similares no meu escritório de advocacia.
— Sabe, Merry assume a culpa por todo esse lance das armas para o Iraque, mas eu ainda acho que foi ideia do seu amigo Roger. De qualquer jeito, é tudo uma grande besteira, cara. Toda essa merda de altamente secreto. A inteligência conduziu a operação toda com terceirizados. Nossas Forças Armadas jamais puseram as mãos naquelas armas, provavelmente para que pudessem negar se desse alguma merda.
“Dois dias depois que o primeiro carregamento saiu para o Iraque, eu recebi ligações agitadas da Zona Verde de Bagdá perguntando para onde diabos as armas tinham sido mandadas. Duas semanas depois, chega um telex da inteligência do Exército. Eles estavam recuperando rifles de assalto da al Qaeda no Iraque que tinham números de série registrados ou nossas gravações a laser, geralmente ambos. Os iraquianos tentaram queimar as marcas de identificação antes de venderem as armas, mas foram tão bons nisso quanto eram em todo o resto.
“Ok. Já era ruim o bastante termos enviado duzentas mil armas para o Iraque para matar soldados americanos, mas, não mais de duas semanas depois disso, logo depois de eu ter descoberto nas mãos de quem as armas estavam indo parar, Roger me liga dizendo que temos que enviar outro carregamento, com mais trezentas mil. Eu recusei essa merda, meu trabalho não era matar soldados americanos, canadenses, ingleses ou qualquer outro que estivesse do nosso lado. E ele disse que eu não entendia merda nenhuma do que estava acontecendo. Era um pandemônio. Eles precisavam restabelecer a polícia e os militares e, se cinquenta mil armas desaparecessem, paciência. Além disso, você já ouviu falar em cadeia de comando? Ele podia me substituir com uma ligação. — Attila fez uma pausa e agitou o queixo. — Eu odeio aquele babaca.”
— Eu achei que você ia explicar como os roma conseguiram as armas que venderam para Kajevic.
— E estou explicando.
— Como assim?
— Tinha uns motoristas ciganos no meu escritório quando recebi a última ligação de Roger.
— E por que eles estavam no seu escritório?
— Pagamento. Os roma nunca ouviram falar de contas bancárias, então eu tinha que pagar em dinheiro. E eu sou a mandachuva, Boom. Na minha empresa, só eu lido com grandes quantias de dinheiro. Sempre foi assim.
— E quem exatamente estava lá quando você discutiu com Roger?
Attila ergueu o rosto e estreitou os olhos.
— Aquele babaca do Ferko está trabalhando para você?
— Attila, responda.
Ela fez beicinho.
— Bem, eu discuti assim com Roger mais de uma vez e não posso dizer com certeza quem estava lá, mas devem ter sido uns seis ou sete deles. Boldo. Ferko, imagino, e o irmão retardado de Boldo, Refke, porque os dois quase sempre estavam com ele. Três ou quatro outros que dirigiram aquela semana.
— Me fale sobre Boldo. Como você o conheceu?
— Boldo? Procura “ânus” no Google e vai achar uma enorme foto dele. Ele esteve na prisão de Dubrava, em Kosovo, até mais ou menos um mês antes de o acampamento dos roma em Mitrovica ser queimado, em 1999.
— Por que ele estava preso?
Attila deu de ombros.
— Pelo que soube, ele esfaqueou um cara num bar. Talvez tenha sido durante um roubo. Ele era ladrão. De qualquer modo, a OTAN bombardeou a prisão, os sérvios a invadiram e deixaram todos os não muçulmanos partirem. Por isso, Boldo estava com os ciganos quando eles foram para a Bósnia. E era meio que o Grande Homem por lá. Depois de um tempo, ele se envolveu com desmanche e roubo de carros.
— E você o empregou mesmo assim?
— Foi justamente por isso que eu contratei todos eles, Boom. Eu não queria que roubassem os meus caminhões. Como eles estavam na minha folha de pagamento, deixavam as minhas coisas em paz. Além disso, evitavam que outros roubassem, uma vez que Boldo era o cara que todo mundo procurava quando queria uma peça roubada. Quero dizer — disse Attila, me encarando. —, eram negócios.
— E quantos faziam parte daquele grupo?
— Talvez uns dez.
— Nomes?
Ela coçou o queixo e olhou para cima, tentando lembrar. Disse seis nomes, o de Ion entre eles.
— Muito bem. Você estava no seu escritório. Recebeu uma ligação de Roger e discutiu com ele enquanto os motoristas ciganos estavam lá, esperando para receber o pagamento.
— Certo. Quando desliguei o telefone, eu perdi a cabeça. Quero dizer, eu tive um ataque. Fiquei gritando em inglês, jogando coisas na parede, enquanto os caras me olhavam sem a menor ideia do que estava acontecendo. “O caralho que eu vou mandar armas para a al Qaeda no Iraque, mesmo que seja por Layton Merriwell. O caralho que eu vou deixar iraquianos malditos roubarem toda essa merda que milhares de soldados da OTAN arriscaram a vida para coletar. O caralho que vou! Se tivesse colhões de verdade, eu mesma roubaria as armas e mandaria todas elas para algum lugar onde não ferissem americanos.” E continuei falando sobre como Merriwell tinha perdido a cabeça. Eu só me esqueci de uma coisa, Boom.
— O quê?
— Boldo falava inglês. Era o único. Os outros não falavam nem bósnio direito. Mas Boldo entendeu cada palavra.
— Opa.
— É, põe “opa” nisso. Minha habilitação de segurança ia escorrer pelo ralo se alguém soubesse que eu tinha deixado vazar toda aquela merda secreta. Eu disse a você antes: eu falo demais. Tenho tropeçado nos próprios pés a vida inteira. Eu sempre acho que sou muito interessante. — Attila se interrompeu, com os ombros estreitos encolhidos, e pareceu refletir por um momento. — De qualquer modo, finalmente fiz o que me mandaram fazer e recolhi outras trezentas mil armas. O último transporte estava prestes a decolar do campo Comanche. Na verdade, a gente atrasou o voo por algumas horas, esperando o último comboio, e aqueles ciganos apareceram dizendo que seis caminhões foram roubados durante a noite. Eu não fiquei muito preocupada. Eu queria que os aviões fossem embora de uma vez. Mandei um telex para Roger e para todo mundo lá no Iraque e relatamos o roubo para a polícia bósnia e para os investigadores criminais da OTAN.
“Mas, no dia seguinte, comecei a pensar no assunto. Olhei para as declarações de Boldo, Ferko e todos os outros, e eles sequer haviam tomado o cuidado de combinar as histórias. Nenhum deles dizia a mesma coisa sobre onde estavam durante a noite, qual era a aparência dos ladrões ou mesmo como os seis motoristas que tiveram os caminhões roubados voltaram para Barupra.
“Então eu corri até o campo de refugiados para falar com Boldo. Cheguei ao vale por trás e subi até a caverna. Sabe o que eu vi? As armas de Merry. Milhares delas. Zastavas. E munição. Morteiros e RPGs.
“Boldo chegou como se fosse o rei do lugar e a gente discutiu feio. E você sabe o que o imbecil disse? ‘Você me disse para roubar aquelas armas. Todos esses homens ouviram você.’
“E eu falei: ‘Se eu mandasse você ir se foder agora mesmo, você faria isso também.’
“E ele: ‘Vou te dar metade do que a gente conseguiu. Acho que já tenho um cliente para uma parte.’
“Aí eu: ‘Seu idiota, você pode saber tudo sobre roubar carros, mas não sabe merda nenhuma sobre esse tipo de coisa. Essas armas estão marcadas. Se você tentar vendê-las e alguém for pego com uma delas, vai revelar seu nome para as autoridades. A OTAN vai entrar no seu rabo com uma fresa e uma lanterna. Você vai direto para a prisão.’ E tudo isso era verdade.
“Mas Boldo escutou, sorriu e disse: ‘É, mas você me disse para roubar.’
“Ele estava me provocando, é claro. Mas não era idiota. Se eu o entregasse aos bósnios ou à OTAN, ele repetiria tudo que tinha me ouvido dizer ao telefone, sobre a al Qaeda, os iraquianos e Merriwell, e diria que tinha sido eu quem havia decidido roubar algumas armas para fazer o pouco que pudesse para impedir aquilo. Como resultado, eu acabaria ferrando Merriwell, perdendo o emprego e a habilitação de segurança e tendo que lidar com Boldo e sua gangue mentindo ao meu respeito.”
Ergui um dedo para interrompê-la.
— Mas você não disse a ele para roubar as armas, disse, Attila?
Ela se afastou da mesa de supetão.
— Vai se foder, Boom. — E me fuzilou com os olhos.
— A resposta é não?
— Não. A resposta é não, caralho. Nunca. Você não acredita realmente nisso, acredita?
Em seus momentos vulneráveis, Attila era fácil de ser interpretada e claramente estava magoada, mas ainda levei um tempo para me assegurar sobre o que estava pensando.
— Não — respondi.
Eu a lembrei do ponto em que estava na história, que era a discussão com Boldo na frente da caverna. Seus ombros estreitos estremeceram, e ela suspirou antes de voltar a falar.
— Então eu pensei “Se a vida te dá limões...”, certo? Eu disse a Boldo: “Seu babaca, você vai enterrar essas armas aqui mesmo. Bem aqui nessa caverna. Essa é a última vez que eu ou você vamos ver essas coisas.” Quanto aos caminhões, eles causariam problemas demais se voltassem a aparecer. Então eu disse: “Isso é tudo que você vai conseguir. Pode desmanchar os caminhões e vender as peças. Mas você e esses idiotas não dirigem mais para mim. Acabou.”
“Fiquei lá por um tempo, enquanto Boldo desmanchava o primeiro veículo.
“Uns três dias depois, recebi uma mensagem de Ferko, que estava se borrando de medo. Ele literalmente queria se encontrar comigo num porão e me fez jurar pela vida dos filhos que eu não tenho que eu jamais diria a ninguém o que ele estava prestes a me contar. Aparentemente, Boldo havia encontrado um garoto num puteiro de Tuzla e tinha feito um acordo para vender a ele dois caminhões e cem AKs, mandando Ferko e dois outros entregarem a merda toda em Doboj.
“Mas os caras que receberam o equipamento tinham a tatuagem dos Arkan, um tigre rugindo, nas mãos. E mais de um deles tinha rido e comentado como ‘o presidente’ adoraria a ideia de ter pegado as armas dos americanos. O garoto era parente de Kajevic e não parava de falar sobre ‘Laza’. Ferko não é uma pessoa brilhante, mas é um sobrevivente.
“Ferko voltou correndo até Boldo e disse: ‘Acho que acabamos de vender armas para Kajevic.’ Mas Boldo riu na cara dele. ‘E daí? A OTAN e os americanos não vão ficar sabendo. Eles não pegaram Kajevic durante dez anos e não tem praticamente mais ninguém aqui para pegá-lo agora.’
“Mas havia muita coisa de que Ferko não gostava. Primeiro, ele não gostava de Boldo. Ninguém gostava. E não gostava especialmente de Kajevic, que matou muitos ciganos. E não gostou de perder o emprego, já que eu pagava melhor que Boldo. Mas, o pior de tudo, ele não queria ser pego. Porque Ferko sabia que, se os bósnios descobrissem que ele estava envolvido na venda de armas para Kajevic, eles arrancariam sua pele um pedacinho de cada vez e encheriam cada ferida com o famoso sal de Tuzla. Sem exagero. Nenhum exagero. E, graças a Boldo, ele era o cara que todo mundo em Doboj tinha visto entregando aquela merda.”
— Então você fez com que ele avisasse à inteligência do Exército sobre Kajevic?
— Não, Boom, eu procurei a inteligência. Fui eu. Eu disse: “Tenho um motorista cigano que jura que alguns deles venderam coisas do mercado negro para uns caras se escondendo em Doboj, e ele tem certeza de que é Kajevic.”
“E, claro, a inteligência queria falar com ele, mas eu disse: ‘Negativo. Ciganos não deduram ciganos. Os roma não vão simplesmente afogar o tagarela no lago Pannonica. Eles vão expulsar a família inteira.’ O que era verdade, aliás. ‘Aqui estão as coordenadas’, eu disse. ‘Estabeleçam uma vigilância e vejam por si mesmos.’”
— Mas você não mencionou as armas que Ferko havia entregado?
— Jamais. Eu disse que o cara que tinha me contado era um ladrão de carros e isso era tudo o que eu sabia. Eu estava tentando acobertar Ferko. E Merry. Até aquele babaca do Roger. E a mim mesma. Se entregasse Boldo, ele colocaria a culpa de tudo em mim. Afinal, eu sou a porra de um cara branco.
— Por assim dizer.
Attila sorriu.
— Por assim dizer. — Ela fez uma pausa para levar o polegar à boca. A determinação com que começou a roer a ponta do dedo não era agradável de ver. — Mas, Boom, eu juro por Deus, nunca me ocorreu que a inteligência não perceberia que Kajevic e seus Tigres estavam armados até os dentes. Quão idiota é preciso ser para saber que um comboio de armas desapareceu a trinta quilômetros dali e não se perguntar se Kajevic estava por trás do roubo? Mas os militares são assim, Boom. Uma mão não sabe o que a outra faz. Os caras da OTAN que estavam procurando meus caminhões concluíram que eles foram roubados por jihadistas. Até hoje eu não sei por quê. Deve ter sido alguma informação que receberam.
“Então Kajevic estava esperando pelas forças especiais com um poderio de fogo com o qual os bobalhões sequer sonhavam. O resultado foram quatro soldados americanos mortos e oito em vários estágios de dor, e eu estava mais na merda do que podia imaginar.
“Uma semana depois, ficou pior. Primeiro, Kajevic avisou que mataria cada roma em Barupra, e Ferko começou a insistir que eu tinha que protegê-los.
“E a inteligência estava puta. Eles não precisavam que ninguém dissesse que tinham ferrado com tudo e estavam tentando descobrir como. E me procuraram dizendo: ‘Chega de enrolação, a gente precisa falar com a sua fonte.’
“Então eu disse a verdade. Mais ou menos. ‘Andei dando uma investigada e os malditos ciganos me enganaram. Eles roubaram as armas daquele comboio e as venderam para Kajevic. E ainda tem mais milhares delas. E, agora, porque a minha fonte fez a coisa certa e contou sobre Kajevic, ele e seus Tigres querem voltar e matar o campo inteiro.’
“É claro, no começo os caras da inteligência disseram: ‘Parece uma boa ideia. Aqueles filhos da puta que se fodam! De jeito nenhum vamos proteger um bando de gente que vendeu os nossos soldados.’
“E eu respondi: ‘Eu entendo, mas temos problemas maiores, que vão prejudicar nossa missão no país. Primeiro, se as armas que os roma roubaram forem vendidas aos Tigres, aos Escorpiões ou a algum outro grupo paramilitar, quem sabe do que eles vão ser capazes? Ou quem vai morrer ou ficar ferido para desarmá-los? Talvez aqueles filhos da puta dos ciganos façam o que a OTAN achou que tinham feito e vendam armas para um bando de jihadistas que vão enviá-las para o Hezbollah. Ou imagine que Kajevic realmente entre em Barupra e mate todos eles. Como fica toda essa merda de manutenção da paz? Não tem nenhum final feliz nessa situação. A gente tem que fazer alguma coisa, e tem que ser rápido.’
“Os caras com quem eu estava conversando responderam que iam falar com os chefes, e eu disse: ‘Se vocês levarem isso para o andar de cima, eles vão enrolar por uma semana e algo ruim vai acontecer.’ Merry tinha acabado de partir e os novos comandantes da OTAN ainda estavam tentando descobrir onde ficavam as latrinas.
“Naturalmente, o cara da inteligência perguntou se eu tinha uma ideia melhor. E eu tinha. ‘Vamos nos livrar das armas e dos ciganos, levar os filhos da puta de volta ao lugar de onde vieram. Meu cara vai...’”
— Seu cara era Ferko?
— Exato. “Meu cara vai ficar aqui e dizer que homens mascarados chegaram e mataram todo mundo.”
“E, Boom, não era um plano ruim. Tinha que ser um lance de justiceiros, porque ninguém no comando jamais assinaria a ordem. Mas não houve falta de voluntários na inteligência.
“Então lá estava eu, finalmente coordenando uma operação armada. Todo mundo tinha credenciais de funcionários civis da CoroDyn e autorizações da OTAN para cruzar a fronteira. Arranjamos as coisas para a noite em que Ferko e os filhos e genros estavam de guarda. Chegamos por trás, pelo lado da mina, e descemos até o vale, então protegemos a caverna e fomos até o vilarejo a pé. Eu sabia que Boldo estava dormindo com uma AK. Então, literalmente cercamos o barraco dele primeiro. Mas Boldo, cara... Boldo não queria saber de sair com as mãos para o alto.”
— Quem atirou nele?
— Eu. Pelo menos o primeiro tiro. E também não esperei muito quando vi o rifle de assalto nas suas mãos. Vinte anos no Exército, Boom, e eu só tinha atirado em alvos. Provavelmente poderia ter esperado mais alguns segundos. Provavelmente. Quero dizer, eu odiava aquele filho da puta. Mas, mesmo assim... Não sei. Mas, quando as balas começaram a voar, as pessoas ficaram nervosas. — Attila levantou os olhos para mim. — Esse lance de combate é muito superestimado.
Ela refletiu por um momento sobre isso.
— Quando alguém puxa o gatilho, todo mundo quer puxar também. E foi assim que aquele pobre garoto foi alvejado. Por outro garoto não muito mais velho que ele. Boom, eu só fiquei lá parada, pensando: “Ok, é você que sempre resolve as coisas. Você precisa resolver isso.” Simplesmente parecia impossível que não houvesse uma maneira de reverter algo que tinha levado menos de um décimo de segundo para acontecer.
Attila balançou a cabeça durante muito tempo.
— E quanto ao irmão?
— Ele era tão babaca quanto Boldo. Ele não deixou que eu salvasse a sua vida. Então também bateu as botas. É engraçado que todo o resto transcorreu de forma excelente: mover os roma, explodir a caverna. Levamos os ciganos para Kosovo e voltamos antes do amanhecer. E todo mundo acreditou na história de que Kajevic estava procurando por eles como se essa informação estivesse na Bíblia.
— E a recompensa de Ferko por dedurar foi ficar e assumir os negócios de Baldo?
— Isso mesmo. Alguém tinha que ficar para trás e dizer: foi isso que aconteceu. A gente precisava que a notícia de que todos os roma estavam mortos se espalhasse.
— E Ferko não estava com medo de Kajevic?
— Você está de brincadeira? Ele começava a gemer sempre que ouvia esse nome. Eu queria que ele dissesse que os Tigres mataram todos os roma, mas Ferko ficou com medo de ser tão explícito. Kajevic conseguiu o que queria, de qualquer jeito. Os roma tinham desaparecido. Ele provavelmente achou que os americanos os enterraram na caverna.
— Acho que sim.
— Então tudo ficou por isso mesmo, por mais triste que fosse. Os roma tinham desaparecido, assim como as armas que Boldo havia roubado. Até 2007, quando sua amante cigana apareceu, dizendo que tinha ouvido rumores terríveis sobre um massacre e queria uma investigação internacional. Eu disse a Ferko que a mandasse embora, o que ele fez várias vezes, mas então ela disse que montaria um caso circunstancial. Iria até Mitrovica para encontrar os parentes das pessoas de Barupra para que pudessem dizer que não tinham notícias deles havia anos. Foi uma merda. Se ela começasse a meter o bedelho em Mitrovica, falando romani, mais cedo ou mais tarde saberia da história toda. E ela não era uma cigana comum.
— Nem um pouco — concordei.
— Ela começaria a exigir registros e abrir a boca para a imprensa. Eu liguei para Roger.
— Vocês estavam se falando de novo?
— Não exatamente. Mas ele não podia ignorar as minhas ligações.
— E o que você queria dele?
— Eu achei que talvez ele pudesse dizer aos kosovares para mantê-la fora do país. Mas ele não podia. Pelo menos, foi o que disse.
— E você contou a Roger que os roma de Barupra estavam vivos?
Attila olhou para baixo, massageando as coxas enquanto pensava.
— Eu comecei, mas ele não quis ouvir. Disse que os ciganos eram problema meu. Mas deixou bem claro que o que tinha acontecido com a merda que havíamos enviado para o Iraque ainda era sigiloso. As pessoas estavam falando de Merry ser presidente, e todas as idas e vindas daquelas armas, quem roubou o que, de quem e quando, tudo isso receberia um monte de atenção, e isso provavelmente acabaria com todos nós se o Tribunal de Contas ou os jornalistas descobrissem. Então a gente não podia deixar Esma ir para Kosovo. Eu disse a Ferko que ele precisava conversar com ela e convencê-la de que todo mundo em Barupra estava morto.
— O que Ferko ganharia com isso?
— Bem, eu dei dinheiro a ele. Mas ele também não estava disposto a falar sobre nada do que tinha feito: roubar um comboio de armas, vendê-las para Kajevic ou delatar a coisa toda para mim. Ele tinha muita coisa para esconder. Então foi ótimo para todo mundo que ela tenha comprado a história.
Attila tinha evitado olhar para mim enquanto falava, mas me encarou naquele momento, ainda brincando com a caneca.
— Ok. Eu já pareço a maior babaca do mundo?
— Continue falando, Attila. Vou dizer o que acho quando tiver ouvido a história toda.
Ela viu um dos seus cães fazendo sujeira no gramado e se levantou para gritar com ele. Através da tela da varanda, pude vê-lo baixando o focinho de vergonha.
— Posso avançar um pouco? — perguntei, quando ela se voltou a se sentar na cadeira de ferro forjado. — Eu entendo por que você não queria que Esma fosse até Kosovo. Mas por que diabos Ferko teve que depor no meu tribunal?
— Eu disse para ele não fazer isso. Não havia nada a ganhar com aquele depoimento. Nada. Mas, com o tempo, ele ficou meio fascinado pela cigana. Muito interessado em deixá-la feliz. Ele nunca disse isso claramente, mas tenho certeza de que ela chupava o pirulito dele de vez em quando, ainda mais quando queria alguma coisa.
Goos ouvira Ferko dizer a Esma em Barupra: “Eu quero aquilo que você prometeu.” Achei que a havia compreendido naquele dia em Manhattan, mas, com Esma, era impossível chegar à verdade. Na cama, Esma não mentia para ninguém. Podia fazer com que Ferko — ou Akemi — ou eu acreditássemos no que precisava que acreditássemos, porque podia agir com toda a liberdade. Essa era uma das grandes vantagens de não ter limites. Ela era persuasiva, dissera Merry. Os sociopatas sempre são.
— Eu disse àquele babaca: “Se você realmente quer depor, é melhor fazer direito. Se for até lá e se descontrolar, vamos estar todos na merda, incluindo sua gente em Kosovo. Kajevic vai mandar um bando de Tigres no primeiro trem se souber que eles estão vivos. Faça exatamente o que ela disser.” Parece que ele gostou de todos aqueles ensaios. — Ela comprimiu os lábios para suprimir o sorriso. — Mesmo assim, ainda não consigo acreditar que as pessoas possam ser idiotas o bastante para acreditar num cigano.
— Como eu, por exemplo.
— Foi o seu pau que acreditou nele — comentou Attila.
Eu estava inclinado a discutir, mas não havia por quê.
— Ferko realmente enterrou Boldo e os parentes dele em Barupra?
— Não. A gente levou os corpos para Kosovo. Os parentes de Boldo eram os únicos que poderiam dar com a língua nos dentes. Mas eles estavam aterrorizados. Sabiam que Kajevic os mataria primeiro. E dei dinheiro a Ferko para enviar a eles todos os meses, dizendo que era sua parte nos negócios. Quando a investigação começou, Ferko contratou dois ladrões de sepulturas para levar os corpos de volta para Barupra.
— E quem os enterrou novamente?
— Ferko. Ele queria a minha ajuda, mas eu disse que era problema dele. “Tudo isso está acontecendo porque você quis testemunhar.”
— E ele jogou algumas balas lá dentro para melhorar a história?
Attila levantou os olhos turvos para o teto.
— Eu mandei que ele fizesse isso. — Ela assentiu com a cabeça e começou a morder as unhas de novo. Uma das cutículas já estava sangrando. — O que você acha, Boom? Eu sou só uma canalha que conseguiu se livrar de muita coisa? Eu realmente estava tentando fazer a coisa certa a cada passo do caminho. Estava mesmo. Mas, em um mês, havia sete pessoas mortas na Bósnia por minha causa, por causa de todo aquele tiroteio, e outras oito feridas. E sei disso. Eu realmente sei. Não sinto orgulho do que fiz. Eu fodi com tudo. Penso nisso o tempo todo. Mas não sou uma má pessoa, Boom. Eu realmente não sou.
Attila gostava de se apresentar como durona, mas seus olhos estreitos se encheram de lágrimas enquanto ela aguardava minha avaliação.
Eu já ouvira essa declaração — não sou uma má pessoa —, ou alguma variante dela, de muitos clientes ao longo dos anos, e frequentemente havia seguido a piedosa recomendação dos pregadores de não julgar uma pessoa por seus piores atos. Mas a necessidade de Attila de absolvição vinha de um lugar mais profundo. Ela ouvira, durante grande parte da juventude, que havia algo errado com ela, e agora queria ser consolada.
Mas a justiça não deve poupar ninguém. Ela havia me dado o poder de pronunciar um veredicto, e era o que eu estava disposto a fazer.
— Primeiro, Attila, você pode se enrolar na bandeira americana e falar sobre os soldados no Iraque e sobre proteger Merry e Roger, mas tudo aquilo era sobre você, acima de tudo. Sua habilitação de segurança. Sua empresa. Seu dinheiro. Eu sei que tudo isso significa muito para você e compreendo as razões. Mas isso não é desculpa.
Attila assentiu com a cabeça, parecendo concordar. Eu não sabia se ela realmente achava que eu estava certo, mas não parecia disposta a discutir.
— Segundo, não compro essa história de que você ficou surpresa por acabar matando Boldo. Eu acho que você foi até Barupra esperando por isso. Você sabia que ele acreditaria que os Tigres tinham ido até lá atrás dele e que acharia melhor forçá-los a atirar, em vez de capturá-lo e torturá-lo.
Ela comprimiu os lábios por um momento, como se sentisse um gosto ruim na boca. Dessa vez, meneou a cabeça.
— Se ele tivesse saído com as mãos para o alto, Boom, estaria gordo e feliz em Kosovo, roubando tudo que pudesse. Mas eu não ia contar até três e ver quantos de nós ele conseguiria matar. A AK estava carregada, Boom. Você está dizendo que não teria atirado?
— Não, eu teria atirado em Boldo também. Mas teria percebido, ao montar o plano, que ele provavelmente envolveria matar um homem, e acredito que teria pensado duas vezes por causa disso. Eu sei que Boldo era um babaca, Attila. Mas, falando de um modo geral, isso não é um crime punível com a morte. Ainda mais a morte de outras duas pessoas, que basicamente eram inocentes.
Ela olhou para a mesa como uma colegial recebendo um sermão. Eu tinha a sensação de que minha avaliação a pegara de surpresa.
— E, terceiro, e o mais importante para mim, Attila, pouquíssimas pessoas em Barupra fizeram qualquer coisa para merecer ser deportadas sob a mira de armas. A OTAN poderia ter guardado aquele campo e o protegido de Kajevic. Mas você queria que os ciganos sumissem da Bósnia para que não pudessem revelar o que sabiam. Então os roma estão sendo envenenados por chumbo em Kosovo por duas razões: primeiro, para proteger você. E, segundo, para dar a um bando de caras da inteligência, que estavam furiosos e envergonhados por não terem deduzido que Kajevic estaria fortemente armado, a chance de descontar em alguém. E os ciganos sempre serviram bem para esse objetivo.
— Eu fodi com tudo, Boom. Como eu disse. Não estou pedindo que você me perdoe.
— E não perdoo, Attila. Você vai sair dessa sem nenhuma punição. Esse é o máximo de consolo que vai conseguir de mim. Não vou te dar um tapinha nas costas e dizer que agora está tudo bem e você pode esquecer tudo.
Nós nos encaramos durante muito tempo, até que subitamente Attila se levantou de sua maneira desconjuntada e saiu da mesa.
Fiquei em pé para contemplar o rio e a ribanceira que levava até ele. Os cães, ambos labradores pretos, corriam pelo pátio. Eu conseguia ver um pasto distante, com uma cerca e vários cavalos Appaloosa sacudindo as caudas para espantar as moscas. Aproveitei o ar puro e a riqueza do verão por mais ou menos um minuto antes de seguir Attila até a grande cozinha, onde a encontrei com as costas voltadas para mim e os braços em torno da esposa, que era bem mais alta.
Esperei um momento e disse:
— Você tem uma boa mulher, Attila.
Ela assentiu com a cabeça e pegou um guardanapo de papel no balcão, que usou para assoar o nariz e secar os olhos. Quando se virou para mim, seu rosto tinha um tom vermelho-vivo.
— Nisso nós concordamos, Boom. Boas mulheres são difíceis de achar. Espero que você tenha mais sorte. Eu avisei sobre a cigana, não avisei?
— Avisou, sim.
Attila me convidou para o jantar, mas eu realmente me sentia como tinha dito. Não me sentaria à mesa com ela e fingiria que não havia nada de errado. Eu tinha enviado para a penitenciária mais de uma pessoa cuja honestidade ou humor eu apreciara, ou mesmo alguém de quem havia gostado porque, essencialmente, era muito melhor do que se mostrara no momento de fraqueza em que cedera a um impulso ou à influência de alguém. Eu gostava de Attila. E me sentia mal por ela. E aceitava que as coisas escaparam de seu controle. Mas ela havia destruído muitas vidas.
Eu me despedi de Valeria com um beijo. Attila me acompanhou até o carro e trocamos um aperto de mão.
— Para onde você vai daqui?
A pergunta me surpreendeu, porque percebi quanto a estivera evitando. Eu ainda não tinha uma resposta de longo prazo. Sentia no peito um vazio devido à ansiedade, mas, na maior parte, à ausência.
— Vou levar meus filhos a um jogo amanhã. Depois disso, gostaria de voltar para Haia. Gosto do tribunal. Eu acredito no que eles fazem. Mas não tenho certeza se as estrelas estão no alinhamento correto para isso.
Eu podia ver a fofoqueira interna de Attila se contorcendo de curiosidade, mas ela parecia ter reconhecido que já não estava em posição de perguntar.
— Tomara que dê tudo certo — desejou ela. Então me lançou outro olhar taciturno, ainda ansiando pelo perdão que não receberia de mim, antes de me dar um tapinha no ombro e voltar para dentro.
Quando a bela porta de entrada bateu, meio que deslizei para o buraco emocional que tinha começado a se abrir dentro de mim pouco antes. Eu chegara ao momento que temera havia alguns meses em Haia, confrontando a realidade de que todos os meus esforços de renovação não levaram a lugar nenhum. Eu estava chegando aos 55 anos e havia me esforçado ao máximo para dar a mim mesmo a chance de ser feliz. Tentara fazer as coisas certas e descobrir o que importava. Mas ali estava eu. Os vilões, quem quer que fossem, não seriam punidos. As pessoas de Barupra sofriam em Kosovo. E eu continuava sem casa. Que merda.
Acionei o botão de partida ao lado do volante, mas meu celular, no bolso da camisa, começou a vibrar. Meu coração disparou e me vi subitamente tonto de esperança.
Era Nara.