4.

A ordem

COUR PÉNALE INTERNATIONAL

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Original: inglês

No: TPI-04/15

Data: 9 de março de 2015

JUÍZO DE INSTRUÇÃO IV

Composição: presidente Joita Gautam, juiz Nikolas Goodenough, juíza Agata Hallstrom

SITUAÇÃO NA REPÚBLICA DA BÓSNIA E HERZEGOVINA

Documento público

Decisão relativa ao Artigo 15 do Estatuto de Roma, sobre a autorização de investigações

O JUÍZO DE INSTRUÇÃO IV (“Juízo”) do Tribunal Penal Internacional (“Tribunal”), ao qual a situação da República da Bósnia e Herzegovina foi designada, publica a presente decisão, de acordo com o artigo 15(4) do Estatuto de Roma (“Estatuto”), sobre a “Requisição de autorização para investigação de acordo com o Artigo 15” (“Requisição da Procuradoria”), submetida pelo procurador em 14 de novembro de 2014.

Em relação à Requisição da Procuradoria e ao depoimento da Testemunha 1, o Juízo decide: Há base razoável para a realização de uma investigação sobre a situação, levando-se em conta o âmbito material e territorial estabelecido na Requisição da Procuradoria.

Aguarde-se a íntegra da decisão.

Essa breve decisão era um desvio das práticas usuais do Tribunal, que precisava de pelo menos cinquenta páginas, com centenas de notas de rodapé, simplesmente para dizer olá. A longa decisão, com sua intrincada discussão legal, viria mais tarde, porém o rápido pronunciamento reconhecia que tempo demais havia se passado, o que equivalia a uma instrução para que a procuradoria — e eu mesmo — começasse a se mexer.

Dificilmente era uma vitória imprevista. Por mais que a juíza Gautam discordasse da decisão de colocar um americano no comando, não havia dúvidas de que permitiria a investigação. Mesmo assim, uma vitória era uma vitória. Meus novos colegas apareceram ao longo do dia para me felicitar, e fui recebido brevemente no escritório de Badu, a fim de que ele também pudesse me dar o protocolar tapinha nas costas.

Goos, meu investigador, achou que era a ocasião perfeita para me convidar para uma bebida no fim do expediente. Ele era um ex-policial belga que viera trabalhar para o Tribunal Iugoslavo em Haia. Como muitos outros, recentemente se transferira para o TPI e fora designado para o meu caso um dia depois da minha chegada, porque tinha aprendido um pouco de servo-croata, o que seria útil com testemunhas e documentos bósnios.

Como promotor, eu rapidamente havia aprendido que minha competência dependia da competência dos meus investigadores, os policiais e os agentes federais cujas habilidades para descobrir evidências confiáveis determinavam o sucesso dos meus casos muito mais que meu desempenho nas audiências. Mas Goos parecia pouco promissor. Devia ter mais ou menos a minha idade, alto e com barriga de chope, de bochechas avermelhadas e cabelo loiro e farto que ficava espetado como um ouriço. Usava um cavanhaque grisalho que, acostumado aos agentes do FBI, eu achava pouco profissional. De fato, na primeira vez que entrara em seu escritório para me apresentar, um dia antes do depoimento de Ferko, eu o encontrara ao computador, divertindo-se com vídeos do YouTube. Meus anos na Procuradoria Federal me ensinaram que a natureza confortável do emprego público frequentemente embotava a ambição e, à primeira vista, Goos parecia alguém em busca de uma aposentadoria precoce: animado e afável, mas completamente desmotivado.

Por volta das cinco da tarde, cruzamos Maanweg, o amplo bulevar em frente ao tribunal, e caminhamos até um barzinho cheio de estilo em Voorburg. Em apenas dois quarteirões, viajamos de uma familiar metrópole ocidental, com edifícios elegantes e carros em alta velocidade, para a velha Holanda, com tortuosas ruas de paralelepípedos e prédios de tijolos atarracados com toldos protegendo a fachada.

Conversando sobre os passos a seguir, concordamos que precisávamos ir à cena do crime, na Bósnia. Mesmo assim, pelas rígidas regras do TPI, seu braço diplomático, a Seção de Complementaridade, precisava dar aos bósnios trinta dias para mudar de ideia sobre a possibilidade de conduzir a investigação. Até lá, tudo que podíamos fazer era planejar.

— Em primeiro lugar, parceiro — começou Goos —, precisamos dar uma olhada na cova que Ferko cavou para Boldo e a família, ver se a equipe forense consegue fazer alguma coisa com os restos mortais.

Dados seu nome e o pouco que havia descoberto sobre seu histórico, eu esperava um sotaque flamengo quando o conhecera. Em vez disso, Goos falava inglês australiano. Ele contou que tinha sido criado em “Oz”, onde o pai gerenciara as operações australianas de um importador belga de café. Em Sydney, fora conhecido como Gus até voltar à Bélgica para fazer faculdade, aos 19 anos.

— E quanto a exumar a caverna? — perguntei.

Ele recuou visivelmente.

— Isso exige equipamento pesado, parceiro, e muita gente para vasculhar os escombros. A administração ia ter um ataque se a gente pedisse para gastar dezenas de milhares de euros logo de cara. Primeiro precisamos ter certeza absoluta do que Ferko disse.

Anotamos vários outros caminhos para a investigação, e perguntei a Goos o que ele sabia sobre o incidente com Kajevic em abril de 2004, já que ele visitava a Bósnia regularmente naquele período.

— Houve um estardalhaço enorme na época — respondeu ele. — Alguns americanos alvejados. Quatro mortos, se eu me lembro bem. Todo mundo na OTAN ficou com raiva. Mas nunca ouvi uma palavra sequer sobre os roma.

Quando terminamos a primeira cerveja, Goos quis saber minhas impressões sobre Haia e o tribunal.

— Até agora, tudo bem — respondi —, com exceção do meu quarto, que mais parece um caixão.

Goos tinha ficado no mesmo hotel quando chegara e fez uma careta de reconhecimento, como quem se lembra da extração de um dente. Perguntei o que ele achava de Haia, depois de tanto tempo.

— Eu gosto daqui na maior parte do tempo. — Goos se aproximou e baixou a voz. — Acho que não preciso falar dos holandeses com você.

Os americanos frequentemente ficavam confusos ou impressionados com “ten Boom”. A maioria achava que eu era nativo americano. (Nunca tive coragem de perguntar ao senador se ele tivera a mesma impressão equivocada ao me indicar como procurador.) Mas “ten Boom”, como muitos sobrenomes europeus, simplesmente designava um lugar. Significava “na árvore” em holandês, como Atwater ou Stonehouse em inglês.

— Meus pais nasceram aqui — contei a Goos —, mas eram completamente americanizados. Eles nunca falavam holandês e nunca retornaram à Holanda. Sequer gostavam de moinhos de vento.

Goos riu com vontade. Fiquei satisfeito com seu senso de humor.

— Os holandeses são gente boa — comentou ele. — Não se metem na vida dos outros. Dá para perceber isso pelos cafés que vendem maconha e pelas garotas nas vitrines. Mas são um grupo fechado e seguem os próprios costumes. — Goos cerrou o punho. — Olhe para as janelas quando caminhar por aí. Não têm cortinas. Isso porque uma pessoa não deve ter nada a esconder. Eles também não escondem o que pensam. Se encontro um vizinho que não vejo há algum tempo, tenho que atravessar a rua, senão o sujeito vai dizer algo como “Nossa, sua barba está tão grisalha!”. Como se eu não tivesse espelho em casa. Baise-moi l’ail.

Francês era outra das línguas da Bélgica. Os poucos vestígios remanescentes do meu aprendizado escolar permitiram que eu entendesse a frase: “Beije minha cabeça de alho.” Dei uma gargalhada quando compreendi.

— Mas, tudo somado — continuou Goos —, eu me dei bem aqui. O salário é bom. O apartamento é confortável. E sobrou menos tempo para eu e minha mulher rosnarmos um para o outro quando estamos juntos. Ela ficou em Bruxelas.

Ele levantou os olhos da caneca de cerveja. O álcool dera cor ao seu rosto, acentuando o contraste com o cabelo claro e arrepiado. Sua expressão era impenetrável, quase como se ele mesmo não soubesse como se sentia em relação à situação com a esposa.

Eu começava a gostar de Goos. Suas qualidades como colega de copo eram evidentes, embora ele não tivesse demonstrado muito foco como investigador. Como eu imaginava, Goos não estava disposto a ir embora quando me levantei do banco e peguei minha maleta. Agradeci pela bebida e parti sozinho.

Na tarde seguinte, liguei para Esma a fim de dar a notícia sobre a ordem. Eu me vira pensando nela involuntariamente durante o fim de semana e, ao pegar o telefone no dia anterior, tivera uma estranha sensação que me fez adiar a ligação. Mesmo com tão pouco contato, as coisas já eram desconfortáveis entre nós.

A despeito da minha promessa de retribuir seu convite para jantar, não saímos após a audiência. A caminho do tribunal naquela manhã, eu mencionara a Akemi, a vice-procuradora, que Esma me colocara a par do caso na noite anterior, em seu hotel. Uma mulher de meia-idade minúscula com cabelo preto, duro e raiado de cinza, Akemi era uma pessoa de poucas palavras, mas tinha me lançado um olhar sombrio que tomei como reprovação. Refletindo a respeito, conseguira entender seu ponto de vista. Mesmo que meu primeiro encontro com Esma tivesse sido planejado para tratar puramente de assuntos profissionais, futuros réus se sentiriam livres para questionar minha objetividade se eu desenvolvesse o hábito de jantar sozinho com os principais defensores das vítimas. Em vez de explicar minha reserva quando Esma me abordara na sala de becas depois da audiência, eu havia usado a desculpa esfarrapada de ter esquecido um compromisso anterior.

— Uma outra hora, então — dissera ela alegremente. E, seguindo o costume europeu, dera beijos nas minhas bochechas antes de ir embora.

Agora, ao telefone, eu me ofereci para enviar uma cópia da ordem para seu escritório em Londres, mas ela respondeu que um e-mail seria suficiente. E perguntou sobre as próximas ações da investigação.

— Ele não vai gostar — avisou ela quando expliquei que queríamos que Ferko nos mostrasse a cova de Boldo em Barupra. — Eu disse a ele que, depois do depoimento, levaria muito tempo para que fosse contatado novamente. Retornar a Barupra vai ser traumático.

— O depoimento não valerá muita coisa se não pudermos corroborá-lo, Esma.

— Eu vou ter que convencê-lo — respondeu ela. — Por favor, me mantenha a par do cronograma. — Ela estava prestes a desligar quando acrescentou, com leveza: — E, quando os ventos levarem você a Londres ou a Nova York, Bill, não esqueça que me deve um jantar.

Esma desligou, e eu fiquei encarando o telefone na minha mão. Solteiro havia cinco anos, já não era completamente cego aos sinais de que uma mulher se mostrava disponível e interessada. Mas ainda relutava em acreditar nisso em relação a ela. Com sua aparência exótica e estilo elegante, Esma estava fora da minha alçada, pois era o tipo de mulher glamorosa geralmente vista ao lado de milionários ou senadores, homens proeminentes com autoestima suficiente para ir atrás de mulheres de 30 anos. A verdade é que, com sua autoconfiança imponente, ela parecia demais para mim. Segurei o telefone com força e me senti meio envergonhado, porque, ao me lembrar das questões profissionais que eram uma barreira entre nós, percebi que me sentia aliviado.