6.
Merriwell — 10 de abril
A embaixada da República da Bósnia e Herzegovina ocupava um edifício futurista de fachada achatada perto da 21 com a E Street NW, não muito longe do Departamento de Estado. O bairro, Foggy Bottom, ficava numa parte tranquila da cidade, onde construções dos séculos XVIII e XIX abrigavam embaixadas, museus, hotéis e residências aristocráticas ao longo de suas ruas arborizadas.
Cheguei por volta das três da tarde, carregando minha mala, porque tinha ido para lá direto de Dulles. Os taciturnos oficiais de segurança bósnios me trataram — como tenho certeza de que fariam com qualquer outro visitante — como um terrorista em potencial. Depois de passar pelo detector de metais, minha mala foi trancada num armário e minha maleta, revistada. Sem nenhum pedido de desculpas, meu celular e meu tablet foram apreendidos durante a visita, juntamente com duas canetas. Roger havia ligado na noite anterior para dizer que eu não poderia fazer anotações durante a reunião.
Ao longo dos anos, meu trabalho como advogado tinha me levado a confrontar muitas pessoas supostamente importantes — o arcebispo católico do condado de Kindle, incontáveis CEOs, o Comitê Judiciário do Senado, que havia me sabatinado sobre a indicação para procurador federal. E, mesmo assim, a alguns minutos da reunião, eu me senti incomumente nervoso.
O general Layton Merriwell havia adquirido aquele distinto perfil público ao qual se referiam como “icônico”. Era possivelmente o soldado mais condecorado de sua geração e tinha sido — breve, mas seriamente — cogitado como candidato à presidência dos Estados Unidos. Mas sua notoriedade havia crescido de forma substancial quando ele se juntara à longa marcha de homens dos Estados Unidos com grande poder e notórias realizações que mergulhavam de cabeça rumo à desgraça.
Na minha infância, a imagem popular de um oficial do Exército bem-sucedido era Patton, alguém que supostamente tinha colhões do tamanho de bolas de futebol, chamava Deus pelo primeiro nome e podia inspirar um nível de coragem em seus soldados que eles jamais imaginaram possuir. Pessoalmente, eu não tinha nenhuma experiência com o serviço militar americano, uma vez que pertencia àquela classe social que, na minha época, não se envolvia na defesa do país, de forma muito parecida com os mais de quinhentos integrantes do Congresso que votaram para autorizar a invasão do Iraque e então, enquanto grupo, enviaram um único filho para o combate quando a guerra começou. Mas, com o tempo, eu havia desenvolvido a clara impressão de que homens e mulheres que chegavam ao topo das nossas Forças Armadas tinham muito mais nuances que Patton.
Esse certamente parecia ser o caso de Layton Merriwell. Ele representava a quarta geração da sua família a frequentar West Point e fora o segundo melhor aluno de sua turma, antes de iniciar seu treinamento como oficial de infantaria e paraquedista. Durante os anos, alternara entre o Pentágono, o campo de batalha e postos acadêmicos, dando um curso de estratégia na Faculdade de Guerra do Exército e passando alguns semestres no MIT, onde terminava um doutorado em teoria dos jogos.
Suas visões estratégicas eram simples e frequentemente citadas: “Lute somente quando for absolutamente necessário e então lute com força total.” Seu histórico na frente de batalha era glorioso: Granada, Panamá, Haiti. Durante a Tempestade no Deserto, fora chefe de estado-maior do general Schwarzkopf, planejando a operação de cem horas no solo que se seguira ao nosso incessante assalto aéreo.
Tudo isso o havia levado aos Bálcãs, onde fora o primeiro comandante das tropas americanas na força de estabilização da OTAN na Bósnia. Tinha sido realocado quando a missão de paz estava bem estabelecida, mas retornara como comandante supremo das forças da OTAN durante o bombardeio dos sérvios em Kosovo e a subsequente pacificação daquele país e da Bósnia. Finalmente, em 2004, por recomendação de seu amigo Colin Powell, fora enviado para liderar o comando central no Iraque. Havia obtido algum sucesso em neutralizar a al Qaeda, somente para enfrentar a insurgência sadrista. Após dezoito meses, pedira para ser substituído, supostamente convencido de que não havia perspectiva de um Iraque democrático no curto prazo. Em vez disso, teria sugerido ao presidente que dobrássemos nossas forças para reprimir e desarmar por completo os muito descontentes, a exemplo do que havia sido feito na Bósnia, e então nos retirássemos do país.
De volta aos Estados Unidos, Merriwell pedira licença para terminar seu doutorado enquanto circulavam muitos relatos de seus receios em relação à guerra. No início de 2007, vários democratas proeminentes sugeriram seu nome como candidato presidencial para a eleição de 2008, até que ele anunciou que não deixaria o Exército. Três anos depois, em 2010, o presidente Obama o nomeara para a chefia do Estado-Maior Conjunto.
Quarenta e oito horas depois do anúncio, tanto o Washington Post quanto o The New York Times publicaram matérias de capa, provavelmente baseadas em vazamentos de partidários do ex-presidente ansiosos por retaliação, sobre o longo romance de Merriwell com sua ajudante de campo na OTAN. No começo do relacionamento, a capitã Jamie St. John, que tinha metade da idade do general, era solteira, aluna talentosa de West Point e filha de um dos colegas de turma dele. O que quer que a jovem tenha oferecido a Merriwell, era algo de que ele não estava disposto a abrir mão. Ele a havia levado para o Iraque, mas o relacionamento apresentara alguns problemas por lá. A capitã St. John solicitara transferência, que ele, de maneira infrutífera, tentara bloquear ao mesmo tempo que continuava a enviar e-mails para ela, o teor das mensagens tornando-se cada vez mais abjeto e profano. Por fim, após o noivado da moça com um colega oficial cuja idade era muito mais próxima da dela, Merriwell enviara uma série de ameaças ridículas — muitas escritas tarde da noite e claramente sob efeito de álcool —, ameaçando acabar com a carreira dela no Exército, a menos que voltasse para ele.
Tanto o romance quanto a turbulência que veio depois dele tinham chegado ao fim havia quase quatro anos, quando se tornaram notícia; nesse intervalo, Merriwell se desculpara várias vezes por escrito com a agora major St. John. Mesmo assim, pediu demissão do Exército na semana em que a história vazou, sua esposa, com quem estava casado havia quarenta anos, o expulsou de sua casa em McLean e suas duas filhas o condenaram publicamente. Ele agora era CEO da Distance Communications, fabricante de componentes eletrônicos de alta tecnologia para vários sistemas balísticos e parte do imenso mercado cinza de subcontratos militares, nos quais milhões eram ganhos e muito pouco era conhecido publicamente.
A ruína de Merriwell ocorrera nos últimos dias do meu casamento e me fascinara mais que a de Bill Clinton, Sol Wachtler, Eliot Spitzer ou de qualquer outro das centenas de homens respeitados que passaram pelo mesmo constrangimento em décadas recentes. A visão comum sobre eles afirmava que eram idiotas que provaram, mais uma vez, que o homem é apenas um ser humano amarrado a um maníaco sexual. Mas, para mim, havia um enigma ainda mais profundo: por que cada um deles havia achado esse desejo mais poderoso que sua ligação a todas as outras coisas pelas quais lutaram tanto para conseguir? Como grupo, seu comportamento dizia algo que reverberava em mim: apesar de todas as vitórias, o sucesso não era o suficiente. Algo essencial permanecia ausente. Talvez todos os seres humanos se sentissem assim e os homens poderosos simplesmente dispusessem de meios para seguir o canto da sereia. Ou talvez esse fenômeno refletisse o fato de que a motivação dos homens realmente poderosos era o permanente descontentamento.
Cada caso provavelmente tinha suas próprias respostas, incluindo a de que, para muitos desses homens, a única novidade é que foram pegos. Mas as matérias sobre Merriwell incluíam incontáveis depoimentos de amigos que insistiam que esses eventos quase certamente não tinham precedentes. E, mesmo assim, em suas últimas e desesperadas mensagens a St. John, ele havia prometido abandonar a mulher e a carreira no Exército por ela. Sua história me tocava tanto não porque ele sentira tamanho desejo por algo que faltava em sua vida, mas porque parecia pensar que o havia encontrado.
Quando me aproximei da sala de reuniões, vi, através do painel de vidro da porta, Layton Merriwell esperando por mim. Sua aparência era impecável, mas comum, e ele parecia um homem muito solitário naquele momento, olhando para o vazio de pernas cruzadas e um reluzente sapato Oxford balançando preguiçosamente sob o vinco perfeito da calça. Quando entrei, Merriwell se levantou e estendeu a mão. Era um pouco mais baixo e mais magro do que parecia na TV, com feições afiladas e cabelo grisalho bem curto, embora ainda longo o bastante para ser penteado. Para uma pessoa de sua idade — 68 anos, de acordo com a internet —, seu rosto era incomumente rosado, talvez por causa da bebida. Suas mãos, pálidas e talvez cuidadas por uma manicure, eram inesperadamente refinadas para um soldado.
Ainda em pé, conversamos um pouco sobre Roger. Merriwell disse que os dois serviram no mesmo local várias vezes, e trocamos algumas observações superficiais sobre sua natureza intensa. Merriwell me fez rir ao imitar o rosto contorcido de Roger quando ele refletia sobre alguma coisa. Então, apontou uma cadeira. Nós nos sentamos do mesmo lado da longa mesa de reuniões.
— O que posso lhe contar, Sr. ten Boom? — Ele deu um breve sorriso, entendendo a ambiguidade da frase.
— Tenho certeza de que muitas coisas, general, mas primeiro precisamos passar por algumas preliminares.
— O senhor vai me dizer que tenho direito à presença de um advogado?
— Sim, vou; e sim, o senhor tem.
— Como deve imaginar, meus advogados já me disseram para não falar com o senhor.
Àquela altura, Merriwell tinha bastante experiência com advogados, uma vez que a revelação do seu caso extraconjugal levara a uma investigação do Congresso e a um breve comparecimento perante o grande júri, que não havia chegado a lugar nenhum porque a suposta vítima insistira que jamais se sentira realmente ameaçada. Eu sabia que as condições que ele tinha imposto — que eu o encontrasse sozinho, em caráter extraoficial e sem fazer anotações — refletiam os conselhos de um advogado, uma vez que o protegiam de qualquer uso subsequente de suas palavras.
— Nós dois sabemos que eu não estou enfrentando um grande risco aqui, Sr. ten Boom. Se o TPI tentasse me acusar, nosso governo faria o que fosse preciso para me socorrer.
— Ah, sim — eu disse, sorrindo. — A Lei de Invasão de Haia.
O general Merriwell também sorriu, mantendo os lábios cerrados. Estávamos de frente um para o outro em duas cadeiras de encosto alto e revestidas de um couro azul incomumente intenso. Havia dezoito delas em torno da mesa de faia, com seus laivos rosados revelados pela luz da tarde de fim de abril que entrava pelas grandes janelas. Os painéis também eram de faia, e a sala tinha pé-direito duplo, com três candelabros arredondados sobre a mesa. No canto, a bandeira azul da Bósnia e Herzegovina, com a faixa amarela e as estrelas brancas, e a bandeira americana estavam dispostas em mastros de ambos os lados da face de obsidiana de uma grande TV que, presumivelmente, servia para ocasionais teleconferências diplomáticas, além de transmissões via satélite das ligas de futebol.
— Sr. ten Boom, não quero começar com o pé esquerdo, mas o que o senhor está fazendo é exatamente o que as Forças Armadas temiam que o Tribunal Penal Internacional fizesse. Os países que assinaram o tratado do TPI se recusaram a isentar as tropas de manutenção da paz, como as que tínhamos nos Bálcãs, da possibilidade de acusação.
Dado seu papel na OTAN naquela época, ele obviamente estava falando com conhecimento de causa.
— General, como se pode conceder a alguém imunidade para cometer crimes contra a humanidade? Ingleses, franceses e alemães também tinham tropas de manutenção da paz na Bósnia e, mesmo assim, assinaram o tratado.
— Ingleses, franceses e alemães não são alvos como o nosso país costuma ser, Sr. ten Boom. E, em Dayton, esses governos concordaram que os nossos soldados só poderiam ser acusados sob a lei americana. Aparentemente, o TPI não se vê obrigado por essa estipulação.
— O tribunal jamais assinou esse acordo, general. Mas o senhor mencionou um excelente ponto. — O elogio o pegou de surpresa, e Merriwell arqueou uma sobrancelha pálida. — O senhor sabe se o Exército fez alguma investigação sobre o suposto massacre?
Merriwell hesitou antes de responder.
— Não enquanto eu estava no serviço. Depois disso, não tenho como saber. Mas ninguém partilharia os resultados com o senhor, de qualquer modo.
— Não é por isso que eu estou perguntando. As regras do TPI só o autorizam a investigar crimes quando as nações envolvidas não podem ou se recusam a fazer isso. Como o senhor observou, o Exército americano detém o poder de julgar seus soldados. Assim, uma investigação minuciosa da Justiça Militar e um relatório público sobre as descobertas teriam evitado que o TPI sequer se aproximasse do caso. Eu não entendo por que isso não aconteceu.
— Sr. ten Boom, as Forças Armadas não pretendem permitir que nenhum órgão internacional lhes mande investigar nossos soldados quando não há motivo para fazê-lo. Ou para revelar suas descobertas se houver uma investigação. Já é difícil o bastante persuadir o povo americano a permitir que nossos soldados realizem intervenções no exterior sem ter que dizer aos pais que seus filhos e filhas vão estar sujeitos aos caprichos moralistas de um tribunal a milhares de quilômetros de distância, com procedimentos muito distintos dos nossos.
— A justiça é a mesma por toda parte, general. Prender quatrocentos homens, mulheres e crianças numa mina de carvão, sem nenhuma provocação, é crime em qualquer nação, e duvido que o senhor realmente veja a investigação de uma atrocidade dessas como “moralista”.
A despeito da discussão, nosso tom era agradável, até divertido, com sorrisos ocasionais que eram quase uma piscadela. Ambos conhecíamos os argumentos. Provavelmente não era surpresa que um militar e um advogado apreciassem essa esgrima verbal como forma de se conhecer melhor. Mas meu último desafio a Merriwell resultou em um olhar mais sóbrio.
— Certamente não, Sr. ten Boom. Eu tinha acabado de me alistar na época das revelações sobre o massacre de My Lai, no Vietnã, e ele permaneceu para sempre na minha memória. A guerra é um inferno. E coisas infernais acontecem. Embora exista uma indústria que não gosta de mencionar esse fato, soldados em combate estão desesperados de medo e lutando por suas vidas, e isso nem sempre traz à tona o melhor dos seres humanos. Mesmo assim, não haveria desculpa para assassinar quatrocentas pessoas, se isso tivesse acontecido. Mas não aconteceu.
O general baixou um pouco o queixo e me lançou um olhar duro. A intensidade de seus olhos cinzentos, que eu havia notado desde o começo, redobrou. Agora estávamos falando sério.
— E de onde vem toda essa certeza, general?
— Na última semana, falei com cada oficial sênior que estava na Bósnia naquela época. Todos eles disseram que não havia uma centelha de verdade nessas acusações.
— Eu tenho certeza de que, se estivesse no meu lugar, o senhor iria preferir falar pessoalmente com esses oficiais.
— Se eu estivesse no seu lugar, Sr. ten Boom, me consideraria muito afortunado por estar falando com um alto comandante, especialmente levando em consideração que a lei americana proíbe essa conversa.
Fiquei em silêncio, basicamente porque ele estava certo. Mesmo assim, Merriwell havia redobrado minha curiosidade sobre suas razões para estar ali.
— Permita-me ser detestável e agir como advogado, general. O senhor está me dizendo que não sabe nada sobre um massacre em Barupra, com base em tudo que viu ou ouviu falar?
— É exatamente isso que estou dizendo. É uma invenção.
— E qual parte foi inventada: o massacre ou o envolvimento dos soldados americanos?
— A última parte, certamente. Mas, se compreendi bem as alegações, um comboio de caminhões e uns trinta soldados se movimentaram por uma área sob o nosso controle, explodiram uma mina de carvão e dizimaram quatrocentas pessoas no processo. A menos que eu tenha sido um completo fracasso como comandante, isso não poderia ter acontecido sem que um soldado americano notasse algo e relatasse aos seus superiores.
A primeira impressão que uma pessoa tem de outra, seja lá qual for, pode se provar falsa — pergunte a qualquer um que tenha ido a um segundo encontro —, mas eu gostei do general Merriwell, principalmente porque ele irradiava disciplina em face da verdade. Sua postura dizia que não estava iludindo a si mesmo nem se dispunha a mentir sobre algo que sabia.
— General, é indiscutível que toda a população daquele vilarejo desapareceu da noite para o dia em abril de 2004.
— Não seria a primeira vez que ciganos agem como ciganos e vão embora, Sr. ten Boom.
— Mas o senhor não acabou de dizer que quatrocentas pessoas não poderiam sair andando por vários campos americanos sem que os nossos soldados relatassem esse fato?
— Eu estava me referindo a uma operação militar estrangeira seguida de uma explosão, Sr. ten Boom. Grandes movimentações da população civil, em contrapartida, eram muito comuns. Na Bósnia, em 2004, havia pouco trabalho e muita escassez de comida. As pessoas saíam para procurar alimentos e carvão, catar pedaços de ferro e caçar. Sem mencionar os milhares de refugiados que voltavam para casa. Algumas centenas de pessoas caminhando pela estrada não teriam atraído muita atenção.
— Mas, general, as pessoas de Barupra não dispunham de meios físicos para se deslocar, com exceção dos próprios pés. A maioria dos roma vivia sob lonas de plástico.
— Se minha memória não me falha, Sr. ten Boom, alguns desses ciganos eram conhecidos ladrões de automóveis.
— Para mover quatrocentas pessoas, general, seria preciso roubar dezenas de veículos, o que criaria muitos problemas com a polícia bósnia. Sem mencionar o fato de que não existe nenhum relato de alguém ter visto ou ouvido falar dessas pessoas desde aquela noite há onze anos.
Merriwell se recostou na cadeira e me estudou com atenção. Encarei seu silêncio, similar ao meu alguns instantes atrás, como admissão de que meus argumentos eram mais convincentes que os dele.
— Finalmente, senhor — continuei —, todas essas teorias alternativas são inúteis em face de algo que nenhum de nós mencionou até agora: eu tenho uma testemunha, general, um homem que morou em Barupra e afirma que todos foram soterrados naquela caverna.
— Eu sei disso.
— O senhor leu o depoimento?
— Por acaso, sim. Roger me enviou.
No tribunal, eu não soubera de nenhuma solicitação de transcrição, o que significava que a agência de Roger copiara a transmissão pela internet. Nenhuma surpresa nisso. Ele tinha deixado claro, desde o início, que o caso seria monitorado.
— Francamente, Sr. ten Boom, não consigo compreender como o senhor não se levantou e protestou a plenos pulmões contra o que a bruxa daquela juíza estava fazendo. Só um punhado de aviadores foi para a Bósnia, e eles partiram anos antes do acontecimento.
Eu expliquei que acreditava que a juíza Gautam pretendia me desacreditar mais que aos Estados Unidos. É claro, isso não era algo que eu gostaria que fosse repetido por aí, mas quis baixar a guarda com o general, esperando que talvez ele fizesse o mesmo. Pelo olhar intenso que me foi lançado, concluí que meu raciocínio fez sentido para Merriwell enquanto teorista dos jogos.
— Deixando a conduta da juíza de lado, general, o senhor não ficou impressionado com o depoimento da testemunha?
— Perdoe-me por ser politicamente incorreto, mas vou partilhar uma lição que aprendi pelo mundo: ciganos mentem, Sr. ten Boom. Para eles, não é realmente mentir. Eles não possuem história escrita. Em vez disso, o passado é constantemente recriado para atender às necessidades do momento. Além disso, quando lidam conosco, eles se protegem. Mentir mantém a maior parte do mundo a distância.
— Não vou discutir antropologia social com o senhor, general. Não é minha área. Vou para Barupra na semana que vem, mas devo dizer que, até agora, tudo que o homem disse parece ter embasamento. — Descrevi as fotos, as declarações juramentadas e os relatórios sísmicos que Esma havia reunido. — Essas evidências apoiam a alegação de massacre. E, como o senhor mesmo reconheceu, é muito difícil acreditar que uma explosão ou uma operação paramilitar pudessem ter ocorrido sem que os soldados americanos soubessem. Uma das razões possíveis para nenhum soldado americano ter relatado algo aos seus superiores é o fato de estarem envolvidos.
Eu tinha percebido, assim que Merriwell admitira que alguém sob seu comando teria que saber sobre Barupra, que ele demonstrara por que seus advogados haviam lhe dito que não conversasse comigo. Alguns argumentos, como se diz no tribunal, provam coisas demais e acabam servindo ao outro lado.
Usar seu argumento contra ele mesmo fez com que o general hesitasse. Ele se levantou para alcançar a garrafa prateada no meio da mesa. Serviu água para nós dois e ajustou as pernas da calça antes de se sentar novamente.
— Quanto o senhor sabe sobre a guerra nos Bálcãs, Sr. ten Boom?
Eu disse a verdade, ou seja, que minhas leituras recentes me deixaram pasmo sobre quão pouco eu havia absorvido na época.
— O senhor com certeza não foi o único a não apreciar plenamente os eventos — comentou o general. — A princípio, nossos aliados na Europa viram o combate na Bósnia apenas como uma extensão das rivalidades étnicas que existem desde o século XIV, quando os otomanos chegaram à região. Mas o que os sérvios estavam fazendo com os muçulmanos na Bósnia era nada menos que um genocídio, tão intencional quanto o esforço nazista para exterminar os judeus e, embora felizmente em menor escopo, ainda mais violento. Vinte mil mulheres bósnias sofreram abusos, muitas delas em campos de estupro, cujo objetivo era engravidá-las de bebês sérvios. Nos outros quinhentos campos de concentração que os sérvios controlavam, com dez vezes esse número de croatas e muçulmanos combinados, eles deixavam os prisioneiros passarem fome e trabalhar até a morte. Sem mencionar as centenas de execuções em massa.
“Tudo isso, Sr. ten Boom, acontecia a menos de mil quilômetros de Dachau, no mesmo continente e no mesmo século, a despeito das nossas promessas de “nunca mais”. Mas, por mais horrível que fosse, por mais lentos que tenhamos sido em compreender o que estava acontecendo e a despeito dos repetidos avisos do nosso amigo Roger, entre outros, os Estados Unidos da América finalmente viram a verdade, reagiram e acabaram com essas atrocidades. A Bósnia foi a primeira operação militar real da OTAN. E foi um sucesso esmagador.
“Separamos os três grupos étnicos divergentes. E, tão importante quanto, retiramos deles os meios de voltarem a matar uns aos outros. Quando a Iugoslávia se desfez, o marechal Tito tinha o terceiro maior exército da Europa. Apreendemos oitocentas e cinquenta mil armas, a maioria de paramilitares, jihadistas e justiceiros que ficaram muito aborrecidos por terem que entregá-las, e fizemos isso sem nenhuma fatalidade. Também prendemos vinte e nove criminosos de guerra, a maioria sérvios mas também alguns croatas, bósnios e kosovares procurados em Haia.
“Eu olho para trás e sinto apenas dois arrependimentos. O maior deles ocorreu no 11 de Setembro, quando subitamente ficou claro que deveríamos ter feito muito, muito mais para alardear a salvação de bósnios e albaneses pelo mundo árabe.
“Mesmo assim, para aqueles, como eu, cujas vidas foram dedicadas à crença de que a força militar também é um instrumento de paz, nosso papel nos Bálcãs foi um momento supremo.”
Merriwell havia falado contendo a paixão. Eu ouvira sem fazer perguntas, tanto para ser educado quanto porque tinha certeza de que ele chegaria ao ponto crucial mais cedo ou mais tarde.
— General, o senhor não é o tipo de homem que precisa de aprovação dos outros, muito menos da minha. Eu gostaria de saber o que está tentando sugerir.
— Estou tentando lhe dar uma noção do que está em jogo na sua investigação, Sr. ten Boom.
— Quatrocentas mortes me deram uma boa noção do que está em jogo, general. E eu sei que o senhor não está sugerindo que, como milhares de vidas foram salvas, algumas centenas de ciganos assassinados não importam.
— Certamente não. Mas sua investigação vai ter consequências, especialmente se essas alegações receberem atenção, e espero que o senhor tenha isso em mente. Mesmo uma falsa acusação dessa natureza fortalece aqueles que dizem que nós deveríamos poupar o dinheiro dos contribuintes, permanecer em solo americano e deixar o mundo cuidar de si mesmo. E beneficia muitos no mundo todo, como russos, chineses, venezuelanos, o Estado Islâmico, o Irã e os extremistas de várias ideologias, que ficam bastante satisfeitos quando não projetamos o nosso poderio no exterior.
— Eu digo aqui e agora, general, que espero que esse pensamento jamais me passe pela cabeça.
Merriwell recuou visivelmente.
— Meu trabalho em Haia, general, é o mesmo que era há quinze anos em Kindle: investigar crimes e levá-los a julgamento quando as evidências forem fortes e as violações da lei forem sérias. Eu indiciei o nosso arcebispo católico por saquear os cofres da Igreja para sustentar o filho.
— Eu me lembro desse caso.
— Antes de apresentar as acusações, um enviado papal me procurou em Kindle para dizer que as minhas ações poderiam fazer com que milhares de pessoas perdessem a fé. E vou dizer ao senhor o que disse naquela ocasião: “A última coisa que o senhor quer é que eu faça o seu trabalho.” Ele estava encarregado de ministrar aos fiéis, e pessoas como Roger e o senhor podem se preocupar com a política externa e militar dos Estados Unidos. Eu sou só um Joe Friday glorificado.
A comparação fez Merriwell dar um breve sorriso, então meneou a cabeça, discordando. Tínhamos chegado a outra cesura. Ele se permitiu um momento de distração com o celular. Perguntei se precisava fazer uma pausa, mas Merriwell estava pronto para continuar após um segundo copo d’água.
— General, o senhor disse que tem dois grandes arrependimentos. Suponho que o outro seja não ter conseguido capturar Laza Kajevic.
A menção a Kajevic fez com que ele se retesasse. Era a primeira emoção empática que demostrava.
— O homem era um monstro — começou Merriwell. — Se ele tivesse a oportunidade, teria massacrado tanta gente quanto Stalin, Hitler e Pol Pot. Nunca foi um líder político, só um sádico com a consciência adormecida e um ego maior que Júpiter.
— O senhor deve ter ficado horrorizado com as fatalidades em Doboj quando tentou capturá-lo.
— A parte mais difícil de ser um comandante no campo de batalha é sempre a perda de vidas, Sr. ten Boom, especialmente as dos seus próprios soldados. Passamos oito anos na Bósnia sem uma única fatalidade em combate. Ver quatro soldados morrerem e oito ficarem feridos, três deles gravemente, enquanto uma criatura maligna como Kajevic continuava livre foi um dos momentos mais tristes da minha carreira.
— E como ele conseguiu fugir dos seus soldados? Presumo que tenha sido uma falha da inteligência.
— “Falha” é uma palavra forte demais. Mesmo os esforços mais diligentes nessa área nem sempre são bem-sucedidos. Como foi relatado na época, subestimamos terrivelmente o quão bem armados eles estariam. Havíamos perdido Kajevic um mês antes e, para fugir disfarçados, eles abandonaram a maior parte das armas.
— Mas eles também pareciam saber exatamente quando o ataque ocorreria.
— Parece que sim.
— E como conseguiram essa informação?
— Se eu soubesse, Sr. ten Boom, não poderia dizer ao senhor. Mas posso assegurar que não repetimos erros passados. — Durante minhas leituras, eu tinha ficado atônito com os relatos de que os franceses sabotaram vários esforços iniciais para a captura de Kajevic, acreditando que isso levaria os sérvios a se voltarem para a Rússia. — Os detalhes operacionais do nosso plano para capturar Kajevic em Doboj provavelmente foram o segredo mais bem guardado do meu tempo em Mons — declarou ele, referindo-se à cidade belga onde o Comando Aliado de Operações se localizava. Em outras palavras, os franceses não foram informados de nada.
— E o que o senhor acha que aconteceu?
— Como conjectura? Alguém traiu o nosso plano. Tentávamos respeitar as autoridades bósnias locais. Havia líderes muçulmanos que não queriam que Kajevic fosse capturado, com medo de que isso fizesse os tumultos recomeçarem. E, é claro, ele tinha espiões em todas as forças policiais. Tudo o que posso dizer, Sr. ten Boom, é que investigamos exaustivamente a questão. Não houve um americano servindo na Bósnia que não tenha ficado furioso com as fatalidades em Doboj.
— Furioso o bastante para matar quatrocentos roma?
Merriwell voltou a se recostar, com a mesma sobrancelha fina arqueada. Continuei, em resposta ao seu silêncio:
— Existe uma história recorrente em Tuzla de que o massacre em Barupra teve relação com o fracasso na captura de Kajevic.
Merriwell fez que não com a cabeça antes de responder.
— Novamente, Sr. ten Boom, estamos falando de informações estratégicas que não tenho liberdade de discutir.
Eu estava andando às cegas, mas tinha aprendido, nas inquirições, que uma das chaves para o sucesso era continuar no mesmo ritmo e sem mudar de expressão. A última resposta de Merriwell sugeria que os roma poderiam ter tido algum papel naquilo.
— Tenho pensado muito a respeito disso, general, e me perguntado que conexão os roma poderiam ter com o ataque a Kajevic para que todos fossem mortos, e uma clara possibilidade é que, de alguma forma, tenham auxiliado os americanos.
Merriwell hesitou mais uma vez, me deixando ainda mais certo de ter encontrado algo. No fim, abriu um sorriso largo.
— Deixe-me ver, Sr. ten Boom. Quantas armadilhas essa pergunta contém? Primeiro, eu disse ao senhor que não acredito que tenha havido um massacre. E também disse que não posso comentar esse tipo de informação.
— Mas, caso o senhor estivesse errado sobre o massacre, general, sem revelar nenhum detalhe secreto, sua primeira suspeita recairia sobre Kajevic e seus seguidores?
Ele pensou a respeito com a boca retorcida.
— Analisando o caráter dele, com certeza. Matar centenas de pessoas em um ato de vingança não seria nada de mais para ele. Mas procuramos intensamente por Kajevic na área em torno de Tuzla durante as últimas semanas de abril de 2004, e ele seria louco se voltasse para lá.
— Ou incrivelmente arrogante.
Após um instante, Merriwell inclinou a cabeça para indicar sua concordância. Eu sabia que ele não diria mais nada, mas sua atitude continuava sugerindo que eu estava no caminho certo.
Durante a entrevista, eu não havia olhado para a única página com anotações que Roger dissera que eu podia levar. Peguei-a no bolso do colete, para ter certeza de não estar esquecendo nada.
Quando tentei descobrir o interesse de Roger nessa conversa, eu finalmente percebi que ela oferecia uma clara vantagem aos Estados Unidos. Quando a procuradoria apresentasse o requerido relatório público ao tribunal, ao fim da investigação, já não poderíamos mais dizer que os militares americanos não cooperaram de forma alguma. E, de qualquer maneira, se era isso que eles queriam, fazia sentido pressionar para conseguir um pouco mais de cooperação do Exército, e foi o que eu fiz.
— Eu não teria muitas esperanças se fosse o senhor.
— Mas, se é importante que não haja nenhuma falsa insinuação sobre o envolvimento americano, como o senhor diz, então a única maneira de inocentar os americanos é encontrar outros perpetradores ou, se isso não for possível, obter as evidências que o Exército possui e que exoneram seus soldados.
— Não é difícil provar uma negação, Sr. ten Boom?
— Eu não sou especialista militar, mas coisas como registros de caminhões e escalas de serviços lançariam muita luz sobre o assunto. Se os documentos militares não refletirem nenhum movimento das tropas, isso pode ser significativo. Mas o fato de o Exército não estar sequer disposto a admitir publicamente que examinou esses registros me incomoda. Parece que as Forças Armadas não querem olhar porque não querem descobrir o que está lá. E isso significa que os soldados vão ser sempre suspeitos.
Os olhos cinzentos de Merriwell, que começaram a me fazer pensar em duas pontas de lápis, repousaram sobre seu colo enquanto ele pensava.
— Eu entendo o que quer dizer, Sr. ten Boom, mas há muito tempo que essas questões estão fora do meu controle. Há algo mais?
Merriwell se levantou, e eu fiz o mesmo. O general se ofereceu para caminhar comigo até a saída.
Era época de floração das cerejeiras em Washington, e a cidade era uma vitrine de suave beleza. Na Tidal Basin, as árvores japonesas eram uma nuvem rosada. Mesmo naquela vizinhança, havia algumas em flor, e suas pequenas pétalas pálidas ondulavam a cada brisa, como um lembrete intenso, após nossa discussão sobre caos e força, das coisas delicadas que ainda embelezavam a vida.
Eu ainda estava com a minha mala, e o general perguntou se eu ia para o aeroporto. Expliquei que, como não sabia quanto tempo duraria nossa reunião, tinha planejado passar a noite em Washington antes de ir para Kindle, na manhã seguinte.
— E quais são os seus planos para essa noite?
— Eu vou para o hotel, anotar tudo que conseguir me lembrar da nossa conversa e então ligar para Haia antes de dormir.
— A gente pode jantar junto, se quiser. O senhor estará liberado às nove. Também tenho que pegar um avião bem cedo.
— É muita gentileza sua — respondi.
— Na verdade, não. Eu janto sozinho com bastante frequência. Muitos amigos me convidam para almoçar, mas não sou bem-vindo nos jantares com as esposas. — Ele me lançou um sorriso tenso que era doído demais para ser realmente bem-humorado. — Além disso, eu gosto de advogados, Sr. ten Boom.
— Não se ouve isso com muita frequência, general.
— Meu avô era presidente do Tribunal Militar de Apelações. Ele era um homem muito honrado. Talvez seja influência sua, mas eu me sinto atraído pela forma de pensar dos advogados, em parte porque é muito diferente da maneira como os soldados encaram os problemas. Advogados discutem os princípios essenciais. Nós nos preocupamos mais com as consequências. Eu garanto — acrescentou — que o interrogatório terminou quando saímos da embaixada da Bósnia, como exige a lei. E asseguro que o jantar não vai ser grandioso o suficiente para constituir suborno.
Eu ri.
— Não se preocupe, general, a advogada dos roma já me pagou um jantar no mês passado.
— A Srta. Czarni? É esse o nome dela? Então claramente o senhor me deve a mesma oportunidade. Embora, pelo que me disseram, a ideia de jantar comigo não seja tão sedutora.
— Ela é muito atraente, se é isso que o senhor quer dizer, general. Muito, muito esperta. E bastante determinada. — Experimentei a familiar excitação ao falar de Esma. — Ela joga nas cinco posições, se o senhor conhece o termo.
Ele deu uma risada alta pela primeira vez.
— Conheço bem. Eu adoro beisebol. Então assunto não vai faltar. Podemos falar das perspectivas para essa temporada. Alguma restrição alimentar?
— Eu só como o que já está morto. Não mato nada. Fora isso, sempre fui de limpar o prato.
Merriwell sorriu outra vez e perguntou:
— Às sete? — E me disse o endereço antes de se afastar.