PRÓLOGO
5 de março de 2015
— Havia homens — declarou a testemunha. Ele era magro e moreno, da cor de avelã, e, sentado ao lado da advogada à pequena mesa reservada para o depoimento, parecia tenso como um corredor na linha de largada.
— Quantos homens? — perguntei.
— Dezoito? — sugeriu. — Mais. Vinte? Vinte — concluiu.
O nome dele era Ferko Rincic, mas, nos registros do Tribunal Penal Internacional, era identificado apenas como Testemunha 1. Para proteger sua identidade, havia uma cortina isolando a seção dos espectadores na ampla sala de audiências, e versões eletronicamente distorcidas de sua voz e imagem eram transmitidas ao pequeno público presente e pela internet. A alguns metros de distância, na mesa da promotoria, eu tinha acabado de começar a inquiri-lo com as preliminares habituais: idade — 38 anos, respondera, embora parecesse muito mais velho — e onde morava em 27 de abril de 2004 — no lugar que chamavam de Barupra, na Bósnia.
— E quanto a Barupra? — indaguei. — Alguém dividia a casa com o senhor?
Ferko inclinava a cabeça para a direita quando ouvia a voz do intérprete nos fones de ouvido.
— Minha esposa. Três filhas. E o meu filho.
— Quantos filhos o senhor tinha no total?
— Seis, mas duas filhas já eram casadas e moravam com os maridos.
Peguei uma foto minúscula, toda amassada e completamente desgastada.
— E o senhor me entregou uma foto antiga da sua família quando chegou pela manhã?
Ele fez que sim. Avisei que a foto seria marcada como Prova P38.
— Trinta e oito? — perguntou a juíza Gautam, que presidia a sessão.
Ela era um dos três juízes presentes, todos impassíveis, ouvindo o relato em suas togas pretas, com punhos e lapelas de um azul-real reluzente. Seguindo o costume europeu, usavam uma gravata de linho branca esquisita, idêntica à que eu usava, chamada “jabot”.
— Permita-me chamar sua atenção para o monitor diante do senhor. A foto exibida nele, a P38, retrata com fidelidade a aparência da sua família em 27 de abril de 2004?
— A terceira filha já era muito mais alta. Mais alta que a mãe.
— Mas, de um modo geral, essa era a aparência de todos na época, certo? Do senhor, da sua esposa e dos filhos que ainda moravam na sua casa.
Ele voltou a olhar para o monitor, a expressão se retorcendo aos poucos até mostrar resignação, antes de finalmente dizer que sim.
Comecei outra pergunta, mas Ferko se levantou de repente e acenou para mim, protestando em romani, usando palavras que pegaram o intérprete desprevenido de tal forma que ele não se deu ao trabalho de traduzi-las. Levei um tempo até entender que Ferko estava preocupado com a foto. Esma Czarni, a advogada inglesa que havia apresentado a queixa ao Tribunal Penal Internacional, também se levantou, aproximando-se o suficiente para que seus cabelos pretos o obscurecessem brevemente enquanto tentava acalmá-lo. Enquanto isso, pedi à segunda secretária que devolvesse a foto. Depois disso, Ferko ficou olhando para a imagem por um momento, segurando-a com as duas mãos, antes de guardá-la no bolso da camisa e se sentar outra vez ao lado de Esma.
— E na P38 sua casa está diretamente atrás do senhor?
Ele assentiu com a cabeça, e a juíza Gautam pediu que respondesse em voz alta, para que o estenógrafo pudesse registrar a resposta.
— E quanto às outras estruturas ao fundo? — prossegui. — Quem morava naquelas casas?
“Casa” era uma descrição generosa. As habitações na foto não passavam de barracos, improvisados com o que quer que os residentes de Barupra encontrassem. Vigas de sustentação ou velhos postes de ferro foram enfiados no chão e cobertos com lona azul ou revestimento de plástico. Também havia materiais de construção, especialmente pedaços de telhados velhos recolhidos dos destroços de casas próximas, destruídas durante a Guerra da Bósnia. Já fazia nove anos que a guerra tinha acabado, em 2004, mas ainda havia muitos escombros intocados, porque ninguém sabia onde poderia haver armadilhas ou minas.
— O povo — respondeu Ferko, falando dos vizinhos.
— E a palavra romani para “povo” é “roma”?
Ele assentiu novamente.
— Para que fique claro nos registros, uma palavra mais vulgar para roma é “ciganos”?
— Ciganos — repetiu Ferko, fazendo que sim de forma assertiva. Provavelmente era a única palavra em inglês que ele conhecia.
— Muito bem, empregaremos “roma”. Só havia roma em Barupra?
— Sim, todos roma.
— Quantas pessoas, aproximadamente?
— Umas quatrocentas.
— Peço ao senhor que olhe novamente para o monitor. Prova P46, Excelências. Essa era a aparência do vilarejo de Barupra durante o tempo em que o senhor morou lá?
Esma tinha conseguido algumas fotos de Barupra e da área em torno tiradas em 2000 por uma organização internacional de auxílio. A que eu exibia mostrava o campo a distância: várias moradias precárias à beira de um declive acentuado.
— E por quanto tempo o senhor e os outros roma viveram lá?
Ferko inclinou a cabeça para um lado, depois para o outro.
— Cinco anos?
— E onde o senhor, a sua família e as outras pessoas de Barupra moravam antes disso?
— Kosovo. Fugimos de lá em 1999.
— Por causa da Guerra do Kosovo?
— Por causa dos albaneses — respondeu ele com outro meneio desanimado de cabeça.
— Retornemos às últimas horas de 27 de abril de 2004. Cerca de vinte homens surgiram no campo de refugiados roma em Barupra, na Bósnia, correto?
Aguardamos novamente pelo laborioso processo de tradução que ocorria acima da sala de audiências, onde estavam os intérpretes, atrás de uma divisória de vidro. Minhas perguntas eram traduzidas primeiro do inglês para o francês — o outro idioma oficial do Tribunal Penal Internacional —, e então um segundo intérprete as traduzia para o romani, a língua dos roma. A resposta vinha da mesma maneira, como uma marola na praia, até finalmente chegar a mim no elegante sotaque britânico da intérprete. Dessa vez, no entanto, o processo foi interrompido.
— Va — respondeu Ferko assim que ouviu a pergunta em sua língua, assentindo enfaticamente. Todos compreendemos.
— E de que natureza eram esses homens? — perguntei. — Eles pareciam ter alguma profissão específica?
— Chetniks.
— Por favor, descreva para o tribunal o que o senhor quer dizer com essa palavra.
Inclinei-me para perto de Goos, o investigador alto e corado designado para o caso, que estava sentado ao meu lado à mesa principal da promotoria.
— O que diabos é um chetnik? — sussurrei.
Até então, eu achava que estava me saindo razoavelmente bem, ocupando o cargo havia exatamente três dias. Nada ali me era familiar — nem a sala de audiências, nem os colegas, nem os procedimentos do Tribunal Penal Internacional, com seu ar de formalidade. A beca preta que eu vestia e a toalhinha de renda que se passava por minha gravata faziam com que eu me sentisse em uma peça da escola. Também era a primeira vez que eu inquiria minha própria testemunha sem ter tido a oportunidade de conversar com ela antes. Havia conhecido Ferko Rincic no corredor, segundos antes de Esma escoltá-lo até a sala de audiências. Ele apertara a mão que eu tinha estendido apenas com a ponta dos dedos, em um claro sinal de desconfiança. Ninguém precisava me dizer que Ferko não estaria ali se tivesse escolha.
— Supostamente são soldados — explicou Ferko, falando dos chetniks. — Mas, no geral, não passam de assassinos.
A esta altura, Goos já escrevera sua própria resposta, em uma caligrafia irregular, no bloco de papel entre nós: “Paramilitares sérvios.”
— E como esses chetniks estavam vestidos?
Na mesa de testemunhas, Ferko vestia uma calça de sarja surrada, uma camisa branca sem colarinho, um colete preto e um chapéu Pork Pie amarelado que ninguém se lembrara de dizer a ele que tirasse ao entrar na sala. Tudo em Ferko — o nariz comprido e torto, que parecia ter sido quebrado várias vezes, o chapéu e o bigode grosso, que poderia ter sido pintado com maquiagem cênica — o fazia parecer um filho perdido dos irmãos Marx.
— Roupas do Exército. Fardas militares. Coletes à prova de balas — respondeu Ferko.
— Havia algum distintivo ou qualquer outra identificação nas fardas?
— Não que eu me lembre.
— O senhor conseguiu ver os rostos deles?
— Não, não. Eles estavam usando máscaras. Chetniks.
— Que tipo de máscara? Era possível distinguir as feições?
— Balaclavas. Pretas. De esquiar. Só dava para ver os olhos.
— Eles estavam armados?
Outra vez, Rincic assentiu com a cabeça. Para enfatizar a necessidade de responder em voz alta, a juíza Gautam deu uma batidinha na haste prateada do microfone diante dela, que também ficava diante de Ferko, de mim e dos outros quarenta assentos nas fileiras que circulavam a mesa dos juízes. Esses lugares eram normalmente reservados aos advogados de defesa e aos representantes das vítimas, mas não tinham ocupantes durante o Juízo de Instrução daquele dia, em que a promotoria era a única parte ativa.
A ampla sala de audiências era um exemplo perfeito do estilo holandês moderno, com cerca de trinta metros de largura, piso de bambu e móveis e lambris de bétula amarelada, como mostarda picante. O design dava preferência ao básico, e não ao grandioso. Os elementos decorativos se resumiam a painéis de madeira na parte frontal das mesas e na parede atrás dos juízes, onde também ficava o brasão redondo e branco do Tribunal Penal Internacional.
Quando Ferko disse que sim, perguntei:
— O senhor reconheceu as armas que eles estavam carregando?
— Eram AKs — respondeu. — Zastavas.
— Seria a Zastava M70? — Era a versão da AK-47 utilizada pelo Exército iugoslavo. — E como o senhor foi capaz de reconhecer uma Zastava?
Ferko ergueu as mãos em um gesto vago, enquanto seu rosto mais uma vez exibia uma série de expressões confusas.
— Nós vivemos aqueles tempos — respondeu ele.
Goos exibiu uma foto da arma nos monitores espalhados pela sala, ao lado dos microfones. Era um fuzil de assalto no estilo Kalashnikov, com coronha rebatível e um longo punho de madeira atrás do carregador curvo que se projetava como uma ameaça fálica. Eu tinha visto Zastavas pela primeira vez anos antes, no condado de Kindle, quando participara dos julgamentos de gangues de rua que com frequência tinham armamentos melhores que a polícia.
— Quando os chetniks chegaram, onde o senhor estava? Em casa?
— Não. Eu estava na latrina.
Eu já suspeitava que a intérprete, com seu sotaque aristocrático, estava aprimorando significativamente a gramática e a escolha de palavras de Ferko. Com base na minha breve primeira impressão, eu tinha quase certeza de que ele não dissera nada nem remotamente parecido com “latrina”.
— E por que o senhor estava na latrina?
Quando a pergunta por fim chegou a Ferko, ele fez um gesto brusco de surpresa e, lentamente, ergueu as mãos com as palmas voltadas para cima. Houve risadas por toda a sala — na mesa dos juízes, entre os integrantes da secretaria sentados abaixo deles e entre meus novos colegas da procuradoria, vários deles nas mesas atrás de mim para acompanhar aquela audiência inédita.
— Permitam-me retirar essa pergunta tola, Excelências.
Goos, com o rosto redondo e corado virado para mim, sorriu com camaradagem. O momento de descontração pareceu agradar a todos.
— Peço sua permissão para conduzir a testemunha, Excelências. Alguma necessidade o acordou no meio da noite, senhor, e o levou até a latrina?
— Va — disse Rincic, dando tapinhas na barriga.
— Se o senhor estava na latrina, como conseguiu ver os chetniks?
— Tem um espaço no alto da porta. Para ventilar. E um banquinho dentro da latrina. Quando ouvi a comoção, assim que eles chegaram ao vilarejo, abri um pouco a porta. Mas, quando vi que eram chetniks, tranquei a porta e subi no banquinho para espiar.
— Havia alguma luz na área?
— Na latrina, sim, tinha uma pequena lâmpada a bateria. Mas a lua estava bem clara naquela noite.
— E o senhor ficou sozinho na latrina durante todo o tempo em que viu ou ouviu os chetniks?
Várias pessoas na sala riram de novo, achando que, mais uma vez, eu havia tropeçado no óbvio.
— No começo, sim — respondeu Ferko. — Mas, quando as pessoas começaram a correr e gritar, eu vi o meu filho passar perto dela. Ele estava perdido e chorando, então eu abri a porta rapidamente e puxei o menino para dentro.
— Quantos anos tinha o seu filho?
— Três.
— Depois de agarrar o seu filho, o que o senhor fez?
— Eu cobri a boca do menino para mantê-lo em silêncio, e, quando ele entendeu que não podia falar, subi de novo no banquinho.
— Quero perguntar sobre o momento em que os gritos começaram. Mas, antes disso, vamos falar de outras coisas que o senhor pode ter ouvido. Esses soldados chetniks, eles disseram alguma coisa?
— Va.
— Para o povo, entre si ou ambos?
— Ambos.
— Muito bem. Como eles falaram com o povo?
— Um deles tinha um alto-falante eletrônico. — Ele estava se referindo a um megafone.
— E em que língua esse soldado falou?
— Bósnio.
— O senhor fala bósnio?
Ele deu de ombros.
— Eu entendo. É mais ou menos como se fala em Kosovo. Não é igual. Mas consigo entender a maior parte.
— E ele soava como outros bósnios que o senhor já tinha ouvido?
— Não completamente. As palavras estavam certas. Como as de um professor. Mas, mesmo assim, não soava direito para mim.
— O senhor está dizendo que ele tinha sotaque estrangeiro?
— Va.
— E os chetniks conversaram entre si?
— Muito pouco. Na maior parte do tempo, era através de gestos. — Ferko ergueu os dedos magros e gesticulou para demonstrar.
— Eles usavam sinais de mão?
Houve uma pausa acima de nós. Pelo visto, o termo “sinal de mão” não tinha equivalente óbvio em romani. Por fim, Ferko mais uma vez disse que sim.
— O senhor ouviu os soldados dizerem alguma coisa entre si? — indaguei.
— Alguns sussurros quando estavam perto da latrina.
— E essas palavras eram em que língua?
— Não sei.
— Era algum dialeto servo-croata? Croata, bósnio, sérvio? O senhor entende esses dialetos?
— O suficiente.
— E as palavras que o senhor ouviu faziam parte de alguma dessas línguas?
— Não, não. Acho que não. Achei que era estrangeiro. Algo estrangeiro. Não reconheci. Mas foram poucas palavras.
— E o homem com o megafone? Qual foi a primeira coisa que ele disse em bósnio?
— Ele disse: “Saiam das casas. Se vistam rápido e se reúnam aqui. Vocês vão voltar para Kosovo. Reúnam os objetos de valor que conseguirem carregar. Não se preocupem com os outros bens pessoais. Vamos coletar tudo e levar para Kosovo com vocês.” Ele repetiu isso muitas vezes.
— O senhor disse que foi aí que os gritos começaram. Fale sobre isso, por favor.
— O soldado continuou gritando no alto-falante, mas os outros chetniks foram de casa em casa com seus fuzis e lanternas, acordando todo mundo. Eles eram muito organizados. Dois entravam, enquanto os outros formavam um círculo do lado de fora, com os fuzis apontados.
A juíza Gautam o interrompeu. Tinha uns 50 anos, com modos agradavelmente serenos e os longos cabelos pretos repicados. Contudo, eu havia sido avisado de que ela não era nem de longe tão afável quanto aparentava ser.
— Com licença, Sr. ten Boom — disse ela.
— Excelência?
— A testemunha acabou de dizer que os soldados falavam uma língua estrangeira que não era croata, bósnio ou sérvio. Então parece que não eram chetniks, não é?
— Não sei, Excelência. Eu nunca ouvi essa palavra antes.
Mais uma vez, o som de risos atravessou a sala de audiências, mais acentuadamente atrás de mim, entre os promotores. Os outros dois juízes também riram. Gautam abriu um sorriso seco.
— Posso dirigir uma ou duas perguntas de esclarecimento à testemunha? — perguntou ela.
Fiz um gesto magnânimo com a mão. Não existe nenhum tribunal no mundo em que um advogado possa mandar uma juíza ficar na dela.
— O senhor afirmou que os soldados usavam fardas. Eram fardas camufladas?
— Va.
— Todos usavam o mesmo tipo ou eram fardas diferentes?
Ferko olhou para cima enquanto refletia.
— Provavelmente o mesmo.
— E, durante seus anos em Kosovo e na Bósnia, o senhor viu muitos soldados usando fardas camufladas?
— Muitos.
— E o senhor notou que diferentes Exércitos e Forças Armadas possuem suas próprias fardas, com cores e padrões de camuflagem distintos?
Ele assentiu com a cabeça.
— E, naquela noite em 2004, quando viu os soldados fardados, o senhor conseguiu reconhecer o Exército ou a Força a que pertenciam?
Ferko ergueu novamente as palmas das mãos, em um gesto de impotência.
— Talvez iugoslavo? — arriscou ele.
— Mas ao longo dos anos o senhor notou que, às vezes, as fardas de diferentes países são parecidas? O senhor já percebeu, por exemplo, a similaridade entre as fardas camufladas do Exército Nacional da Iugoslávia e da Força Aérea dos Estados Unidos?
Ferko olhou para o teto por um momento e então fez um gesto vago com as mãos.
— Mas, no escuro, o senhor seria capaz de dizer se aqueles soldados usavam fardas iugoslavas ou americanas?
Quando a pergunta chegou até ele, Ferko balançou a cabeça e fez uma careta.
— Não — respondeu ele simplesmente.
A juíza Gautam assentiu com um ar sábio.
— Sr. ten Boom — disse ela —, gostaria de dar seguimento a minhas perguntas?
No meu bloco de anotações, Goos, que havia trabalhado nos Bálcãs uma década antes, tinha escrito “não havia Força Aérea americana na Bósnia naquela época”. Olivier Cayat, o colega de faculdade que me recrutara para o TPI, havia me falado um pouco da juíza Gautam. Ex-oficial da ONU na Palestina que jamais exercera o direito, sabia-se que ela fazia parte de um grupo do TPI que tinha ficado incomodado com o fato de um promotor americano ser designado para o caso. Mas sua insinuação de que eu pudesse estar encobrindo meus compatriotas era ofensiva — e injusta. Ela acabara de testemunhar meus consideráveis esforços para garantir que Ferko mencionasse que os atiradores falavam uma língua que ele não conhecia.
Como eu me sentei enquanto a juíza fazia suas perguntas, levei um tempo ajustando a beca ao voltar a me levantar, preparando-me para perguntar a Ferko se ele tinha visto algum membro da Força Aérea americana em solo bósnio naquela época. Atrás de mim, Olivier me passou um bilhete discretamente, que desdobrei na altura da mesa. O papel dizia: “Ignore. Armadilha”.
A atenção da sala de audiências estava focada em mim, mas permaneci em silêncio até compreender. Se eu fizesse a pergunta, a juíza Gautam, que com certeza teria a última palavra, acrescentaria algum comentário que me marcaria como partidário dos Estados Unidos. Inclinei ligeiramente o queixo para mostrar a Olivier que havia compreendido. O ar formal do TPI parecia suave como veludo, mas as correntes subterrâneas eram traiçoeiras.
— Sem seguimento — respondi.
— Muito bem — disse a juíza. — Dadas as respostas da testemunha, e sem objeção dos meus colegas, pedirei que evite descrever os homens como “chetniks”, referindo-se a eles simplesmente como “soldados”. O senhor poderia fazer o mesmo, Sr. ten Boom?
Ela tentou dar um sorriso agradável, mas havia um brilho letal em seus olhos escuros.
Nesse meio-tempo, Esma aproximou a cadeira e se inclinou para perto de Ferko, explicando as ordens da juíza. Eu a tinha conhecido na noite anterior, quando havíamos conversado sobre o que eu podia esperar de Ferko. Em certo momento, eu pedira a ela que limitasse as conversas com ele na frente dos juízes. O depoimento teria pouco valor se parecesse que Ferko era apenas o porta-voz de uma advogada experiente. Ela havia me tranquilizado com um sorrisinho irônico, divertindo-se com o fato de eu achar que precisava orientá-la sobre a dinâmica de uma sala de audiências. E tinha provado sua competência ao não usar roupas de grife, como no dia anterior, chegando ao tribunal com um suéter azul simples de gola alta e quase nenhuma maquiagem ou joia.
Eu me virei outra vez para Ferko.
— O senhor disse que houve gritos?
— As mulheres gritavam porque homens estranhos as estavam vendo sem roupa. As crianças choravam. Os homens estavam irritados. Eles saíam correndo das casas, às vezes só de sapato e cueca, e xingavam os soldados.
— E o senhor se lembra de alguma coisa que o povo de Barupra tenha dito aos soldados?
— Às vezes as mulheres gritavam: “Meu Deus, para onde vamos? Não temos outra casa. Aqui é a nossa casa agora. Não podemos ir embora.” E alguns soldados gritavam: “Poslusaj!”
Com a ajuda de Goos, consegui fazer com que Ferko explicasse que o termo significava “Faça o que estou dizendo”.
— Em cada casa que entravam — continuou ele —, os soldados só davam um minuto para as pessoas saírem. Então dois ou três soldados entravam com os fuzis para conferir se o lugar estava vazio. Muitas vezes, eles simplesmente destruíam a casa enquanto as lanternas iam de um lado para o outro.
— O senhor já tinha ouvido falar de planos para deslocar os residentes de Barupra para Kosovo? — perguntei.
— Quando chegamos, sim. Mas depois, não. Durante anos, não ouvi nada sobre isso.
— O senhor queria voltar para Kosovo?
— Não.
— Por que não?
— Porque os albaneses matariam o povo. Eles já tentaram. Por isso fomos para a Bósnia. Para ficar perto da base americana. A gente achou que estaria em segurança perto dos americanos.
— E com isso o senhor quer dizer a base Eagle, estabelecida perto de Tuzla pelo Exército americano como parte dos esforços de paz da OTAN?
Havia sido um passo grande demais. Quando a tradução chegou até ele, Ferko mais uma vez me encarou comicamente e ergueu as palmas das mãos, sem saber o que dizer.
— Soldados americanos, OTAN. É só o que eu sei.
— Depois que os soldados esvaziaram as casas e os residentes foram reunidos em vários pontos, o que aconteceu?
— Vieram caminhões lá de baixo.
— Quantos caminhões?
— Quinze?
— Que tipo de caminhões?
— De carga. Com laterais de metal. E cobertos com lona.
— O senhor reconheceu o modelo?
— Eram iugoslavos, acho. Pelo formato da cabine. Mas não sei com certeza. Eram caminhões militares.
— Quando os veículos chegaram, aconteceu mais alguma coisa fora do comum?
— O tiroteio?
— Houve um tiroteio, senhor...? — Interrompi-me. Estivera prestes a dizer o nome dele. — Por favor, fale do tiroteio para este Juízo de Instrução.
Com isso, eu me virei para a mesa dos juízes, olhando para eles diretamente pela primeira vez. A análise dos juízes normalmente é um exercício furtivo, porque, ao menos nos Estados Unidos, eles não gostam de ser observados em busca de sinais de suas reações. Os três juízes, muito atentos, ocupavam uma mesa apenas alguns degraus acima, em uma versão mais longa das mesas amareladas de estilo Bauhaus no poço do tribunal. Do lado direito da juíza Gautam estava sentada a juíza Agata Hallstrom, uma loira esguia com cerca de 60 anos que havia sido juíza cível na Suécia, e, do lado esquerdo, o juiz Nikolas Goodenough, de Trinidad, que fora presidente do Supremo Tribunal de lá. Ele estava sempre fazendo anotações.
— Enquanto os soldados iam de casa em casa — prosseguiu Ferko —, as pessoas reclamavam. Elas gritavam: “Eu não vou embora.” Especialmente as mulheres. Os soldados as agarravam e as forçavam a sair e, se elas resistissem, davam coronhadas ou batiam com o cano dos fuzis. Duas vezes, atiraram para o alto em sinal de advertência. Uma vez, um soldado atirou e, mesmo assim, uma mulher não se mexeu. Então a ouvi gritar enquanto saía correndo: “Ele me queimou com a arma. Encostou o cano em mim enquanto ainda estava quente. Eu vou ficar com essa marca para sempre.” Houve muitos gritos e muita correria. Mas os soldados, especialmente aqueles no círculo externo, permaneciam...
Nova pausa, enquanto a intérprete buscava uma palavra.
— ... impassíveis — disse ela por fim, provavelmente passando a quilômetros de distância da palavra que Ferko realmente havia usado. — Eles ficaram em posição, com as armas apontadas. Mas, perto da latrina, um homem, Boldo... quando chegaram à casa dele, ele saiu de lá correndo com sua própria AK.
— O senhor sabe por que Boldo tinha uma AK?
— Porque ele tinha dinheiro para comprar uma — respondeu Ferko, causando outra onda de risos na sala de audiências. A Bósnia, mesmo em 2004, não era um lugar onde uma pessoa pudesse ficar completamente tranquila sem ter uma arma.
— E Boldo disse alguma coisa?
— Ah, sim. Ele estava gritando: “Não vamos embora. Vocês não podem nos obrigar, e não vamos sair.” Os dois soldados que estavam revistando a casa se jogaram no chão. Eles gritaram, em bósnio: “Spusti! Spusti!”
Houve outro momento de silêncio quando o intérprete se deparou com um beco sem saída, pois não sabia bósnio. Ao meu lado, Goos murmurou “Largue isso”. A despeito de toda a sua amabilidade, falar servo-croata era, até onde eu sabia, o único talento visível que ele trouxera para o caso.
— Eles estavam gritando “Largue isso” em bósnio?
— Va.
— E ele largou?
— Não, não. Ele continuou brandindo a AK. O soldado encarregado, que tinha o alto-falante, gritou de novo.
— Em que língua?
— Bósnio. Então ele contou “um, dois, três” e atirou. Bum, bum, bum. O sangue esguichava de Boldo e ele caiu duro. O filho dele saiu correndo da casa. Os soldados gritaram de novo: “Stani!”
— Fique aí — sussurrou Goos.
— Os soldados continuaram gritando para que o filho ficasse longe, mas era o pai dele que estava caído lá, e, quando ele avançou, houve tiros que vinham do outro lado. Dois ou três. Ele também caiu.
— E quantos anos tinha o filho de Boldo?
— Uns 14? Era um menino. — Mais uma vez, Ferko balançou a cabeça com amargura. — Nisso, o irmão de Boldo saiu correndo da casa. Ele gritava e xingava. “Como vocês puderam atirar na minha família? O que eles fizeram?” Ele chorava e se lamentava. Então desabou no chão, perto dos corpos. E pegou a AK de Boldo. Depois dos tiros, o soldado que parecia estar no comando, o que tinha matado Boldo, saiu correndo e começou a acenar e dar ordens. Ele deu um empurrão no soldado que tinha atirado no filho de Boldo. E ordenou aos outros soldados que agarrassem o irmão. Eles lutaram por bastante tempo. O irmão gritava e não largava a arma. Bateram nele com os fuzis algumas vezes, mas uma coronhada acertou um soldado, e não o irmão de Boldo, e o soldado caiu. Nesse momento, o comandante ordenou que os soldados recuassem e disse para o irmão de Boldo, da mesma forma que tinha dito para o próprio Boldo, que, se ele não largasse a arma antes do três, levaria um tiro. E o irmão ergueu a AK, então o comandante atirou nele também. Duas vezes. No lado. Ele caiu, com a mão nos ferimentos, e emitiu uns barulhos horríveis.
— Eles prestaram algum socorro médico?
— Não, ele ficou lá gemendo o tempo todo.
— E o que aconteceu com o irmão de Boldo?
— Ele morreu. Ainda estava lá, em uma grande poça de sangue, quando saí da latrina mais tarde.
— E quanto às palavras que o comandante gritou para os soldados, o senhor as compreendeu?
— Não, não. Mas havia muita gritaria. O povo estava gritando para que todo mundo recuasse e se protegesse.
— Depois dos tiros, como ficou o ambiente no campo, na sua opinião?
— Silencioso. Como em uma igreja. O povo foi para os caminhões. Ninguém gritou. As pessoas não queriam ser mortas. Os soldados ajudaram a subir. Quando as casas foram esvaziadas, os caminhões foram embora. Uns vinte minutos depois dos últimos tiros, o campo estava vazio.
— Quando os caminhões partiram, em que direção foram?
— Para o oeste, na direção da mina.
Eu tinha um mapa topográfico, mas duvidava que Ferko conseguisse entendê-lo. Ele mostrava o vale adjacente a Barupra e a sinuosa estrada de terra que descia até o local onde uma grande mina fora escavada.
— Que tipo de mina havia no vale?
— Disseram que era de carvão. Foi fechada por causa da guerra.
— E que tipo de mina de carvão era? Escavada ou a céu aberto?
— Eles faziam buracos para retirar o carvão. Cavavam a terra. Era carvão marrom.
— E a que distância do vilarejo ficava a mina?
— Talvez um quilômetro pela estrada.
— Quando os caminhões partiram, o senhor voltou a ouvir o megafone?
— Sim, ouvi. Ele ecoou pela colina.
— O que estava sendo dito?
— “Saiam dos caminhões. Vocês devem esperar aqui na caverna pelos ônibus que vão levá-los a Kosovo. Vamos voltar para pegar suas coisas, e elas vão ser levadas nos caminhões.”
— E a que o senhor acha que o soldado com o megafone se referia ao dizer “a caverna”?
— À caverna — respondeu Ferko.
— Que caverna era essa?
— A caverna sobre a qual ele estava falando.
Ao meu lado, Goos apertou os lábios para conter o riso.
— Parte da mina era uma área que o povo chamava de caverna?
— Va.
— Eu gostaria de chamar sua atenção novamente para o monitor em sua mesa. Prova P76, Excelências. Essa foto retrata a caverna mais ou menos como era em abril de 2004?
Era outra foto que Esma tinha conseguido, dessa vez tirada do New York Times. Havia sido feita a certa distância em janeiro de 2002. Mostrava dezenas de pessoas catando carvão com as mãos nuas durante o inverno rigoroso, muitas delas mulheres idosas com lenços na cabeça, rastejando pelo declive abaixo de Barupra. Havíamos ampliado e recortado a imagem para destacar o cenário. Aparentemente, anos antes, um veio de carvão tinha sido descoberto na encosta da colina e, com o uso de equipamento pesado, uma abertura profunda e oblonga fora escavada. Aquela era a caverna. Com uma grande saliência se projetando sobre a abertura, o local não parecia especialmente estável e, de fato, havia placas amarelas em bósnio dizendo às pessoas que mantivessem distância: ZABRANJEN ULAZ.
— Qual era o tamanho da caverna? O senhor pode fazer uma estimativa?
— Centenas de metros de largura.
— E quão profundamente ela penetrava a colina?
— Cinquenta metros. No mínimo.
— Era larga o bastante para que todos de Barupra ficassem em pé lá dentro?
— Mais ou menos.
— O senhor ouviu mais alguma coisa pelo megafone?
— Sim. Ele começou a repetir: “Voltem para dentro. Fiquem juntos. Todos dentro da caverna. Todos. Sem exceção. Precisamos fazer uma contagem e anotar seus nomes. Vocês podem sair um por um enquanto fazemos a contagem. Fiquem aí. Fiquem aí. Só vai levar alguns minutos.”
— Quando essas instruções foram dadas, onde o senhor estava?
— Quando os caminhões e o povo foram embora, eu saí da latrina. Eu e o meu filho nos escondemos no que restava de uma das casas, de onde eu conseguia olhar para o vale lá embaixo.
— E o senhor conseguia ver a caverna?
— Não muito bem. Via melhor os faróis dos caminhões. Sob aquela luz, eu os vi empurrando o povo.
— E o que aconteceu com os veículos?
— Os caminhões? Depois de vários minutos, eles começaram a se mover de novo. Achei que estavam voltando para recolher as coisas de todo mundo, como o homem do megafone tinha dito. Peguei o meu filho e me preparei para correr de volta até a latrina, mas vi as luzes seguindo na direção oposta, entrando ainda mais no vale e seguindo até a outra estrada.
— Para o oeste? — perguntei.
Ele simplesmente indicou a direção com a mão.
— E o senhor ouviu o megafone depois que os caminhões foram embora?
— Sim, só que parecia mais fraco.
— E quais eram as ordens transmitidas pelo megafone?
— A mesma coisa. “Fiquem aí. Fiquem aí.” — Dessa vez, Ferko repetiu as palavras em bósnio. — “Ostanite na svojim mjestima.”
— E o que o senhor observou em seguida?
— Em seguida? — Ferko fez uma pausa. Pela primeira vez, um tremor de emoção percorreu seu rosto longo. Ele apertou a ponte do nariz antes de recomeçar. — Em seguida, vi flashes na colina sobre a caverna e ouvi explosões. Seis ou sete. Então a colina desmoronou. — Sem que eu pedisse, Ferko balançou as mãos sobre a cabeça e imitou o som, como o motor de uma motocicleta. — O som da terra e das pedras escorregando era quase tão alto quanto as explosões. E vinha em ondas. A barulheira durou um minuto inteiro.
— O senhor acredita que as explosões iniciaram um desmoronamento?
— Va.
— E o que o senhor fez em seguida?
— O que eu podia fazer? Eu estava apavorado, e o meu filho estava comigo. Eu me escondi com ele debaixo de uma lona, para o caso de os soldados voltarem. E esperei por meia hora. De repente, tudo ficou imóvel. De vez em quando, eu ouvia o barulho do vento. Sob a lona, sentia a poeira se assentando, vinda do céu.
— Depois dessa meia hora, o que o senhor fez?
— Eu mandei o meu filho continuar debaixo da lona. Então corri até o vale.
— O senhor foi até a caverna?
— É claro. Mas ela tinha desaparecido. A colina tinha desmoronado. A caverna estava quase toda preenchida e havia rochas obstruindo a estrada.
— E o que o senhor fez?
— O que eu podia fazer? — Ferko balançou a cabeça miseravelmente. Estava chorando. Ele secou os olhos e o nariz na manga da camisa antes de continuar. — Eu gritei os nomes da minha mulher e das minhas filhas. Chamei pelo meu irmão e pelos filhos dele. Chamei, chamei e me arrastei por cima das pedras, escalando, chamando e empurrando pedras. Só Deus sabe por quanto tempo. Mas era inútil. Eu sabia que era inútil. Eu podia cavar pelo resto da minha vida e não conseguiria chegar mais perto. Eu sabia que não ia chegar a lugar nenhum.
— O que o senhor quer dizer com isso?
— Eles estavam mortos. A minha mulher. As minhas filhas. Todo o povo. Eles estavam mortos. Enterrados vivos. Todos os quatrocentos.
Embora praticamente todos os presentes na sala de audiências — os juízes, as fileiras de promotores, os oficiais do tribunal, os espectadores atrás da cortina e os poucos repórteres com eles — soubessem qual seria a resposta, ouvir os fatos narrados em voz alta foi devastador. O silêncio envolveu a sala como se um dedo admoestador tivesse sido erguido, e cada um de nós pareceu se encolher, no interior da cratera de medo e solidão à qual a face do mal inevitavelmente nos lança.
Então você veio para cá, pensei subitamente enquanto o momento se prolongava. Agora você está aqui.