.10.
Regressei a Monterey a tempo da liquidação – é assim que designamos a colheita, em Cottontail. Trabalhávamos do amanhecer ao pôr do Sol. Encontrei-me na mesa de seleção ao lado de um irlandês de cabelo aos caracóis, chamado Brendan. Ele tinha um bom olho e trabalhava rapidamente. Observava-o a pegar nas uvas enrugadas, nas folhas, nos rebentos minúsculos, enquanto os ramos deslizavam diante de nós numa esteira rolante.
– Como és tão bom nisto? Creio que não cultivam uvas na Irlanda – disse eu.
– Fui às vindimas em França quando era estudante – explicou.
– No mesmo produtor todos os anos. Tinha de fazer tudo. Apanhar, transportar, selecionar. Era extenuante, mas eu adorava. Especialmente a comida e o vinho. Simplesmente maravilhosos.
Enquanto falava, as mãos dele nunca paravam de se mover ritmicamente.
– Cerca de quarenta de nós dormíamos em camaratas. Levantávamo-nos às sete. Café, pão e geleia. Depois, vindimar até às nove e meia. Café e um lanche. Uma grande refeição ao meio-dia e meia. Grandes panelas de estufado cozinhado pela Madame. Queijo. Tartes de fruta. De volta ao trabalho, a cantar. Outra lauta refeição à noite. Todo o vinho que conseguíssemos beber. Cantorias e danças. Fogos-de-artifício na última noite.
Evocou a imagem de mesas sobre cavaletes com toalhas vermelhas e brancas desbotadas, vindimadores com lenços negros, rock francês a ressoar no pátio, violas e cantos no dormitório.
– Nunca estive em França – confessei.
– Ah, ias adorar, Melanie. – A esteira parou. Brendan descansou as mãos por um momento. Virou-se e fitou-me. – Tens uns olhos de amores-perfeitos, com salpicos dourados neles. Sabias disto? Claro que sabias. Não serei o primeiro homem a reparar. Melanie, se saíres comigo uma noite, quando a vindima acabar, conto-te tudo sobre França.
– Tenho namorado – disse eu.
– Homem de sorte.
Brendan contou-me que se tinha afastado do trabalho durante um ano, para viajar. No México, ligara-se a uma rapariga do Norte da Califórnia. Viajaram juntos pela América Central, Brasil, Argentina, Peru e o Sul dos Estados Unidos. Ela deixou-o.
– Despediu-se num sítio qualquer ao pé de Salinas, exatamente como em Me and Bobby Maggee10 – O visto dele estava quase a expirar, pelo que ia regressar à Irlanda.
– Estou livre e desimpedido até à minha partida. Se te apetecer beber um copo, ver um filme ou apenas dar uma volta, liga-me. Ficarei por cá até ao Natal.
Foi uma das melhores vindimas dos últimos anos. Vincent estava tão satisfeito que deu um bónus a toda a gente. Telefonei ao Jesse.
– Sortuda – disse ele. – Para receber um bónus tenho de fazer horas extras. Pediram-me que ficasse até ao fim da estação.
– Isto é praticamente daqui a um mês. – Não escondi a minha deceção. – Não te matriculaste na tua escola?
– Tratei disso antes de vir. – Ele suspirou. – Preciso do dinheiro, está bem? – Suavizou a voz. – Pareces realmente exausta.
– Completamente. As minhas costas doem, e as minhas mãos também, mal consigo ficar de pé.
– Se estivesses aqui, eu dava um jeito nisso – disse o Jesse.
Decidi gastar o meu bónus num voo para Yellowstone, de modo a encontrar-me com ele. Usar na cama uma T-shirt grandalhona do Jesse era um pobre substituto para o namorado verdadeiro.
Para chegar a Yellowstone precisei de dois voos e grande parte de um dia, e ainda tive de conduzir oitenta quilómetros num carro alugado. A viagem ia custar mais do que o meu bónus, e mais do que pretendia revelar a Jesse. Ele por vezes acusava-me de extravagante.
O Sol estava baixo no céu quando penetrei no parque. Longas sombras caíam através da estrada serpenteante. Um urso castanho e o seu filhote precipitaram-se pela estrada em direção às árvores. Na vasta extensão da pradaria, manadas de bisontes pastavam ao crepúsculo. Gradualmente, nuvens cor-de-rosa e púrpura povoaram o céu. O ar cheirava a ozono. O lago, quando lá cheguei, era como vidro negro. Havia uma tempestade a caminho.
Estacionei o carro no exterior da cabana dos funcionários do hotel, corri para a porta, atingi-a quando uma empregada de mesa estava a sair, a espetar o crachá com o nome dela no casaco. Eileen, Florida. Ela parou e fixou-me.
– Eu conheço-a?
Reconhecia-a como principal rececionista do restaurante. Ela era praticamente uma instituição.
– Melanie, certo? A Melanie do Oregon. Lembro-me de ti. Foste a sombra de Jesse Arguello naquele ano. Tenho razão ou não? Desta vez onde ficarás no parque?
– Estou como turista, Eillen – respondi. – Estou cá para passar o fim-de-semana.
– Então estás hospedada no hotel? Desejas que te faça uma reserva para o jantar? Estás a viajar acompanhada?
– Vim encontrar-me com o Jesse.
Ela descruzou os braços, mas eu já tinha transposto a soleira da porta.
– Tudo bem. Sei em que quarto ele está.
No elevador eu tremia de ansiedade. Parei no quarto andar. As portas deslizaram e abriram-se. Duas cabeças. Uma morena e outra loira. As caras unindo-se num beijo. Separaram-se. Encararam-me.
– Oh, merda! – exclamou Jesse.
A rapariga desatou a gritar e a golpear Jesse com as mãos na cabeça e nos ombros dele. A porta do elevador fechou-se. Não me mexi. Continuava a ouvir a loira a berrar com Jesse. Recordo-me de carregar no botão. O elevador desceu ao rés-do-chão. Voltei para o hotel. Eileen da Florida estava na secretária no exterior do restaurante. Esperei enquanto ela procurava uma mesa para um casal japonês, lhes mostrava o estabelecimento e regressava ao seu posto.
– Quem é ela? Há quanto tempo isto dura? Vem desde o início do verão, não vem?
Eileen suspirou.
–É a Connie do Kansas. Trabalha em restaurantes. Isto começou em julho. – Pousou um braço nos meus ombros. – Acontece a todos, querida. Hás de habituar-te.
Eileen arranjou-me um quarto no hotel, obrigou-me a sentar e jantar com ela quando o restaurante se esvaziou, ouviu-me quando despejei a minha raiva e o meu desapontamento, retribuiu-me com a história da vida dela.
Um pouco antes do amanhecer, caí na cama e dormi um sono sem sonhos. De manhã tomei uma rápida chávena de café com a Eileen.
– No meu trabalho, já vi de tudo – disse ela. – E não apenas com os funcionários. Também com os hóspedes. O Jesse não era adequado para ti. Ele tem a alma de um nómada.
– Onde eu penduro o meu chapéu, eis o meu lar – disse eu, melancolicamente.
– Nem mais nem menos – concordou Eileen. – Melanie, precisas de alguém tranquilo e estável, como o meu Ron. Alguém com raízes no solo. Não penses nisto agora. A tua cabeça ainda está cheia de lembranças daquela víbora. Porém, quando o teu espírito serenar, olha em volta, querida.
10 Canção escrita por Kris Kristofferson e Fred Foster e interpretada por Roger Miller. (N. do T.)