.11.
Louis viu-me a sair do lavabo em Cottontail, a piscar os olhos marejados. Conduziu-me ao escritório. Vincent também se aproximou.
–O que houve, Melanie? Não precisas de contar, se não quiseres.
Despejei a história toda naqueles ouvidos cheios de empatia.
– Portanto, deste dois anos da tua vida a um patife – disse o Louis. – Todos já conhecemos um do género. Bem-vinda ao clube. Suponho que temos de os encontrar para reconhecermos a qualidade quando ela surge.
– Sabes quando provas um daqueles vinhos encorpados e frutados? – perguntou Vincent. – Ele atinge o teu palato e, por uns quantos segundos, pensas: «Uau, uma verdadeira bomba de frutas!» Lembras-te de como o gosto desaparece? Não perdura. Então provas outro vinho. Este não se entrega a ti logo de caras. Tens de o fazer rolar na tua boca algumas vezes. Tens de concentrar-te para lhe captar todos os sabores. A sua substância. Ele tem estrutura. É um tipo diferente de «uau!». Jesse era uma bomba de frutas, Melanie. Tu precisas de outra espécie de «uau!». – Vincent sorriu. – Não há muito mais que possa dizer, exceto que o tempo cura todas as feridas. Ou, como a minha mãe costumava dizer, «o tempo fere todos os patifes».11
Pelo menos, ele fez-me rir.
– Todos cometemos erros e é muito engraçado cometê-los – disse Louis, que trocou um olhar com Vincent. – A maior parte das vezes, pelo menos.
– Que tal um belo e jovem vinicultor? – perguntou Vincent. – Vou estar atento.
– Encontrar a pessoa certa pode levar muito tempo – disse Louis.
– Eu beijei montes de sapos. Mas o Vincent andava por aí à minha espera. Tens tempo, Melanie. O Sol voltará a brilhar no teu jardim.
Convidaram-me para jantar no fim-de-semana. Louis abriu uma garrafa de Riesling da Alsácia.
–A minha casta favorita de uvas – comentou. – É um pouco austero no primeiro encontro. Mas revela-se gradualmente e mostra suavidade, complexidade, durabilidade.
O olhar de Louis pousou no seu parceiro.
– Qual é a tua favorita, Vincent? – perguntei.
Ele refletiu por um instante.
– Merlot. É aveludado, subtil, frutado. Amadurece outras variedades. A tua vez, Melanie. Qual a tua uva favorita?
– Ainda não a encontrei – disse eu.
A minha amiga Stephanie ligou de Nova Iorque para dizer que sempre ia viajar para a Europa com o namorado.
– É uma oportunidade demasiado boa para ser desperdiçada. O Patrick pensa que, antes, deveríamos ficar noivos, ou mesmo casar. Mas convenci-o de que viajar juntos seria um bom teste para a nossa relação.
– Isso é que é coragem – disse eu.
– Estou bastante segura de que o Patrick é o amor da minha vida. Mas quero estar completamente segura. É uma decisão importante.
Falamos durante muito tempo. Contei-lhe do meu rompimento com Jesse. Stephanie não perdeu tempo com meias-palavras.
– Vi logo que o Jesse lembrava muito o teu pai – disse ela. – Não é do género casadoiro. Mas não quis comentar nada. Parecias tão feliz. Afinal, lamento ter acertado.
– Pior para o Jesse – disse o Poppa. Ele soou alegre ao telefone. May Louise tinha tomado conta dele muito bem, revelou o meu avô.
Deixei o boné de basebol pendurado na porta até novembro. Pensei que Jesse fosse passar para o apanhar. Nunca apareceu. Levei o boné para a loja de segunda mão. Em seguida, liguei ao Brendan, o irlandês de cabelos aos caracóis que trabalhara ao meu lado na mesa de seleção durante a vindima e falara sobre França. Fomos a um bar em Monterey e bebemos umas cervejas. Brendan tinha olhos azul-escuros que se enrugavam quando sorria, e maneiras abertas que convidavam a confidências. Contei-lhe sobre o Jesse.
–O parvo é ele – disse Brendan. – Não tu. – Olhou-me profundamente nos olhos. – És uma linda rapariga, Melanie.
Percebi que, pela primeira vez em três meses, não estava interessada se Jesse ia ou não entrar no bar. Senti-me leve como o ar.
– Não trabalho na vinícola este fim-de-semana – disse eu. – Estou livre como um passarinho.
Naquela sexta-feira à noite, Brendan e eu apanhámos uma bebedeira, lenta e calmamente, ouvimos canções tristes, trocámos histórias das nossas vidas.
No sábado de manhã acordámos tarde, caminhámos pela marina da praia e lançámos papagaios para um céu perlado.
Brendan contou-me que vinha de uma terra onde as montanhas se precipitavam no mar.
– Conheço essa canção – disse eu. – A minha avó gostava de Bing Crosby.
– É sobre as montanhas de Mourne. Falo das montanhas de Wicklow. São mais para sul. Se fores à Irlanda, mostro-tas.
Descreveu-me as montanhas que se erguiam como estacas púrpuras por detrás das cidades, os pubs castanhos com paredes tortas e tetos baixos, e uma espécie de costume antigo e bizarro que eles lá tinham, de vestirem trajes de cerimónia no Natal e de se pavonearem pelas ruas a pedir dinheiro para boas causas.
Mas eu estava ávida por saber mais sobre a França e o período em que Brendan apanhara uvas próximo de Bordéus.
– Trabalhávamos até o suor nos ensopar – disse ele. – Trabalhávamos como camponeses e jantávamos como reis. O vinho corria como água e cantávamos até ficar roucos.
Contei-lhe do Poppa e do tio que eu achava que tinha em França.
– Posso ter primos, também. Dominique teria cinquenta anos agora. Provavelmente é casado e tem filhos. Embora suponha que possa ter-se mudado para qualquer lado.
O vento apanhou o meu papagaio e levantou-o mais alto no céu. Parecia querer voar para longe. Quase puxou os meus braços das minhas articulações.
– No fim da vindima – disse Brendan – oferecemos um ramo de flores à mulher do vinicultor. Chama-se a este gesto o gerbaude. É uma tradição.
–O vinicultor podia ser uma mulher – observei. – Como eu. Vou ser uma vinicultora.
– Então receberás as flores – disse Brendan.
O vento amainou. O meu papagaio oscilou para um lado e caiu graciosamente na areia. Lembrei-me do Poppa e do seu paraquedas a flutuar até ao solo.
O Brendan queria comprar presentes para os pais. Fomos até Carmel. Vagueámos para dentro e para fora de becos empedrados, passámos por casas com uma arquitetura amaneirada, de telhados retorcidos e torreões, por pátios escondidos, por pequenas lojas e ciprestes que pareciam fazer parte do aspeto irreal da cidade.
Senti-me ao mesmo tempo sociável e melancólica.
– Sei que isto não vai durar – murmurei.
Brendan não me desmentiu.
– Quero que saibas que não faço isto, ouviste? Engatar apenas por um fim-de-semana.
– Eu sei. És uma pessoa séria, Melanie. Gosto disto. É bom.
– Sabes uma coisa? Também acho isto bom.
Brendan apanhou um autocarro para São Francisco no domingo à noite. Regressava à Irlanda de avião no dia seguinte. Trocámos moradas, mas ambos sabíamos que era improvável um novo encontro. Brendan disse que tinha coisas por acabar na Irlanda.
– Desfrutei da minha folga – disse ele. – Estou pronto para voltar.
Comentei que era bom para ele sentir que tinha raízes nalgum lado. Eu não estava segura onde pertencia.
Brendan pegou nas minhas duas mãos e beijou-as uma de cada vez.
– Vais encontrar um homem enraizado. Seguro sobre ele mesmo e seguro sobre ti. Tenho a certeza. Tem fé, Melanie. – Ele tirou um embrulho da sua mochila e deu-mo. – Um presente de despedida – explicou.
Permaneci de pé a acenar, até a cara dele não ser mais do que um borrão na janela traseira do autocarro.
Entrei no meu carro e abri o embrulho. Continha um conjunto de seis quadrados de bases para copos – pinturas de impressionistas franceses. E uma nota. «Isto talvez te inspire a visitar a França. Espero que encontres tudo o que procuras. Lembrar-me-ei do nosso fim-de-semana juntos com grande ternura. Faz um brinde a mim, de vez em quando. Farei o mesmo, Brendan.»
Naquela noite sonhei com a França. Estava a caminhar por uma estrada. Assemelhava-se muito à estrada que vai ter a Cottontail. De súbito, acompanhava um grupo de pessoas. Não se viraram. Conservaram as costas voltadas para mim. Conversavam em francês. Sabia que eram franceses, daquele modo como sabemos as coisas nos sonhos. Falavam em pequenos trinados e exclamações. Soavam excitados. Segui-os até uma vinha. Toquei numa folha e percebi que era feita de papel. Pedacinhos de dólares rasgados, e papel em branco com escrita à máquina. Arranquei uma folha de papel e li: «Château Moonbeam.» Os franceses que eu acompanhara tinham desaparecido. Brendan andava entre os vinhedos. Ele perguntou: «Esse não é um dos nomes que o teu pai te deu?» Olhei para o alto e avistei um castelo no céu. O céu era azul-claro, sem uma nuvem. Estava repleto de paraquedas, com pequenas figuras a balançarem neles. A seguir já não estava mais numa vinha. Estava num pátio empedrado e cheio de longas mesas. As pessoas nas mesas cantavam uma canção mexicana. Também mantinham as costas voltadas para mim. Uma delas virou-se e disse: «O que fazes aí?» Respondi: «Pertenço aqui.» Então acordei.
Naquela manhã, sondei a Alicia Shaker, a minha conselheira de estudos na Davis, sobre a hipótese de ir a França apanhar uvas no verão seguinte. Disse a mim própria que não tentaria encontrar os meus familiares franceses. Mas seria bom encontrar o sítio onde tinha ligações.
11 No original, um trocadilho intraduzível: «Time wounds all heels.» (N. do T.)