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Passei o Dia de Ação de Graças em Atlanta. O Ivor e a minha mãe tinham uma mansão neoclássica abarrotada de antiguidades, uma garrafeira com termóstato para a coleção de vinhos nobres do Ivor, um jardim com um relvado com faixas de diferentes tons de verde, estátuas gregas e rosas brancas que não exalavam qualquer perfume.
Na manhã de quinta-feira, o Ivor mostrou ao Poppa e a mim a sua garrafeira feita à medida. Tinha o dobro do tamanho do meu apartamento e comportava cerca de mil garrafas. Estava dividida em três secções, cada uma separada por um arco. A primeira era onde Ivor armazenava os vinhos que estavam prontos para serem bebidos.
– Como veem, as prateleiras estão subdivididas em tinto, branco e espumante; e depois subdivididas em vinhos da Europa, vinhos dos Estados Unidos, vinhos da América Latina, vinhos da Austrália e da Nova Zelândia. Encontram-se arrumados por ordem alfabética.
Através do arco, Ivor guiou-nos até à segunda secção.
– Aqui é onde conservo os vinhos que necessitam de mais envelhecimento na garrafa. – Apontou para um grande livro com capa de pele que jazia numa espécie de tabernáculo no meio da sala. Lembrava o livro de contabilidade em que o bisavô McKirtterick registava os seus lucros na loja.
– Anoto cada aquisição, por ordem cronológica – disse o Ivor. – Verifico o livro todos os meses, assim posso mudar as garrafas daqui para a sala dos prontos-a-beber. Isto garante que cada garrafa é consumida na melhor altura possível.
Eu estava assombrada. Nunca tinha visto nada semelhante.
– Aposto que as meias e camisas dele estão arrumadas por cores – sussurrou-me o Poppa.
Ivor levou-nos depois para a terceira sala. O seu peito estava inflado. Ivor parecia quase a levitar.
–A minha coleção de vinhos nobres e raros – disse ele. – Alguns têm cem anos de idade. – Fez uma pausa, reverente. – São todos Bordéus de classificação top.
Começou a explicar-nos o sistema classificatório dos Bordéus. Eu já o conhecia, claro. Fizera parte dos meus estudos na Davis. Abri a boca. Fechei-a. Ivor estava claramente determinado a exibir os seus conhecimentos.
– Os vinhos Bordeaux sempre foram famosos – principiou ele. – Existem milhares deles. O imperador Luís Napoleão exigiu os melhores para a Grande Exposição de Paris de mil oitocentos e cinquenta e cinco. Ordenou que os intermediários vinícolas os classificassem. Escolhessem a fina-flor. Decidiram-se por cinco lugares para os melhores vinhos, conhecidos como as colheitas selecionadas, do número um ao número cinco. A maioria dos vinhos que veem aqui – Ivor gesticulou expansivamente – é selecionada. De facto, a maior parte deles é da colheita número um, a classificação máxima. Possuo uma das maiores coleções dos Estados Unidos. E continuo a aumentá-la.
Em seguida, o Ivor levou-nos escada acima, para apreciarmos a sua coleção de lembranças dos Romanov. Ele era descendente de bielorrussos, e gostava de contar aos outros que estava ligado, ainda que de modo distante, aos Romanov. Os Kitchov forneciam peles para a corte real em Sampetersburgo. Isso era uma espécie de elo, suponho.
Nichos com spots de luz guarneciam as paredes de uma galeria que rodeava o primeiro andar e dava para a entrada com azulejos de mármore. Era ali que Ivor exibia as suas lembranças dos Romanov: fotografias assinadas do czar Nicolau II e da imperatriz Alexandra; um certificado militar assinado por Pedro, o Grande ; um exemplar com capa de pele de Eugénio Oneguin que tinha sido oferecido a um grão-duque; três caixas de prata com monogramas para charutos; um ovo de Páscoa Fabergé turquesa e dourado com o brasão de Catarina, a Grande ; uma pequena escultura equestre de bronze, de Alexandre III.
A menina-dos-olhos da coleção de Ivor era uma garrafa de cristal lapidado que cintilava sob a luz. Tinha uma rolha de rubi, do tamanho do punho de um bebé, que faiscava sob os spots.
–É um rubi verdadeiro – informou o Ivor.
– Isto teria alimentado inúmeras famílias famintas – disse o Poppa.
– Acha que Estaline fez melhor, Bill? – perguntou Ivor.
– Não vou discutir isso consigo, Ivor.
O momento delicado passou.
Ivor apontou para a insígnia dos Romanov, gravada na garrafa de cristal.
– Conseguem ver? Cheguem um pouco mais perto, Melanie e Bill. Veem agora? Duas coroas, uma águia de asas abertas e as iniciais do czar Nicolau, assassinado pelos bolcheviques. – Baixou a voz em reverência. – E acabei de ouvir um boato ainda mais excitante. – Levou a mão ao coração. – Outra relíquia. Uma relíquia sagrada. – Fez uma pausa de efeito. – Uma garrafa do vinho favorito do czar, das garrafeiras imperiais de Sampetersburgo. O que acham disto?
Não fazia a mínima ideia do que dizer. O mundo dos colecionadores de vinhos raros era um mistério para mim. Não conseguia perceber o motivo para colecionar vinhos que nunca seriam bebidos, ou, se o fossem, podiam ter degenerado em vinagre.
– Esta garrafa jamais foi colocada no mercado. Esteve em mãos particulares – disse Ivor. – Para obtê-la tive de vencer dois outros colecionadores.
Nicky e Alex vieram a saltitar pela escada acima. Correram na nossa direção.
Nicky apontou para a garrafa de cristal lapidado.
– Posso segurá-la, papá?
Ivor abanou a cabeça. Para compensar, permitiu que Nicky segurasse uma das caixas de charutos.
Nicky abriu a caixa de prata e cheirou-a.
– Cheira a marshmallows assados.
– Tens um bom nariz, Nicky – disse eu. – Podias ser um vinicultor.
–O Poppa disse que os camponeses é que fazem vinho. Vou ser juiz.
Alex pegou no ovo Fabergé.
–É lindo. Queres segurá-lo, Melanie?
Acenei que não. Receava deixá-lo cair.
Desci para a cozinha. A minha mãe estava a arrumar umas flores num samovar prateado. Ela tivera aulas de design floral. Olhou-me e sorriu.
– Isto será o centro de mesa. O que achas, Melanie?
– Muito bonito.
– Creio que necessita de um pouco mais de folhagem. – Ela enfiou uma meada de hera nas alças. – Vou deixá-la estender-se pelo linho branco. Ficará elegante. – Deu um passo atrás. – Assim.
– Posso ajudar nalguma coisa?
– Está tudo em ordem, querida.
Poppa e Ivor estavam no escritório, a assistirem a uma partida de golfe pela televisão. Não havia sinal dos gémeos. Apanhei o meu casaco no bengaleiro e encaminhei-me para a porta. Alex surgiu da sala de jogos na cave.
– Posso ir contigo?
Gostava da sensação da sua mãozinha na minha. Descemos o caminho de acesso e desembocámos numa estrada tranquila e forrada de folhas. Não se tratava do tipo de vizinhança em que os carros estacionassem junto à berma, ou estivessem visíveis do passeio. Nem mesmo a maioria das casas tão-pouco podia ser avistada do passeio. Vislumbrei torreões de contos de fadas e colunas gregas. Uma ou duas vezes ouvi o rugido de um corta-relva.
Alex tagarelou sobre a escola, sobre as suas amigas, sobre as suas bonecas Barbie.
– Acho que já tenho demasiada idade para ainda brincar com elas. O papá sugeriu que em vez disto posso colecioná-las. – Contou-me que as suas amigas consideravam fixe que ela tivesse uma irmã crescida a trabalhar numa vinícola.
– Posso ir até lá visitar-te, Melanie?
– Claro – respondi. – Se a mãe e o teu pai deixarem.
– Eles acham que não sou crescida o suficiente para fazer nada.
Umas quantas gotas de chuva tombaram do céu cinzento. Virámo-nos e desatámos a correr. Alcançámos o acesso e depois a casa precisamente antes do aguaceiro.
– Não devias ter levado a Alex para fora sem a capa de chuva. – Através do corredor, a minha mãe voltou para a cozinha a cacarejar.
A Alex apertou a minha mão.
–A mamã faz este espalhafato porque nascemos quando ela já tinha uma certa idade. Pelo menos é o que a Mylene diz. A Mylene teve um bebé com dezasseis anos. Quando vais ter um bebé, Melanie?