.22.

Florescência. O momento em que as vinhas desabrocham em flor, a prometerem os frutos. Florescência. Era o que eu tinha com o Hugo. Florescência, de novo, e de novo, e de novo. Naquele verão, despertei com o sol todas as manhãs e ficava de olhos abertos por um momento, a escutar os exuberantes trinados dos pássaros e o satisfeito ressonar do Hugo, antes de aninhar-me nele e voltar a adormecer.

Quando por fim me levantava, geralmente precipitava-me para abrir as persianas e inalar o ar perfumado, do mesmo modo que o Hugo inalava o vinho. Alfazemas, rosas, pinhas, alho bravo.

– Consigo sentir o cheiro dos figos – disse ao Hugo numa manhã, quando ambos nos debruçamos da janela. Um tordo cantava vigorosamente numa macieira.

That’s the wise thrush; he sings each song twice over,

Lest you should think he never could recapture,

The first fine careless rapture 21, recitei eu.

O Hugo e eu virámo-nos um para o outro, a sorrir.

Mas o telefone tocou. O Hugo soltou-me e desapareceu escada acima, rumo ao seu escritório no sótão.

Levei-lhe café e uma fatia de baguete com manteiga e doce.

Ele encontrava-se sentado à sua secretária, com as costas voltadas para mim, a segurar o auscultador com uma mão e a apontar notas com a outra. Pousei o tabuleiro no alto de um armário de ficheiros.

O Hugo podia parecer desleixado com o seu cabelo desgrenhado e a sua camisa desabotoada, mas o seu escritório era o oposto. O tampo da secretária estava impecável. As gavetas e os compartimentos apresentavam-se cuidadosamente etiquetados. Livros de referência alinhavam-se em perfeita ordem nas prateleiras sob a caleira.

Olhei em redor. Um postal de aniversário enviado por mim estava exposto na secretária, ao lado de uma fotografia minha no banho, apenas com a cabeça visível sobre um mar de espuma. As paredes exibiam muitas fotos. Hugo e eu a rirmos, tirada pelo Diarmuid num bar ao pé do rio; o Hugo na equipa de râguebi; o Hugo com um bastão de críquete; o Hugo com uma raqueta de ténis; o Hugo num campo de golfe; o Hugo a levantar um copo para a câmara; o Hugo, com cerca de sete anos, achava eu, os olhos esbugalhados de excitação, especado ao lado de um boneco de neve duas vezes mais alto do que ele. Tinha o mesmo sorriso endiabrado em todas as fotografias. Senti um súbito sobressalto de afeto. Beijei a sua nuca. Ele saltou. Girou a cadeira.

Não te ouvi entrar.

– Trouxe-te o pequeno-almoço.

Puxou-me para os seus joelhos.

– Estragas-me com mimos.

– Amo-te, Hugo.

– Também eu, doçura. – Abraçou-me com mais força. – Também eu.

Uma ou duas vezes por semana, o Hugo fazia excursões aos vinicultores ou ao estúdio de Jerry Giff em Bergerac. De quando em quando, o Jerry passava por Le Rossignol. Ele e o Hugo retiravam-se para o escritório escada acima, e lá ficavam horas a fio.

Chegavam a mim risadas abafadas ou insultos estridentes e criativos à France Telecom, ou o som da televisão. O rugido de uma multidão, o emotivo entusiasmo de um comentador. Um intervalo. Depois aquilo que soava como o distante zunido de corridas de carros.

Em meados de setembro, em redor de Le Rossignol, as uvas pendiam pesadamente dos vinhedos. As folhas principiaram a tornar-se cor-de-rosa, a seguir vermelhas, acobreadas, douradas. O Hugo abasteceu a carrinha com caixas de vinho da garrafeira, e partiu para Londres.

– As vindimas vão começar em breve – disse ele. – Toda a gente vai estar demasiado ocupada para me receber. É uma boa altura para voltar e pôr as coisas em dia.

Ele esteve fora durante três semanas. Nunca me tinha sentido tão solitária.

Quando era criança, em Ballybreen, via da janela do meu quarto cavalos, ovelhas e vacas, campos verdejantes e montanhas púrpuras resplandecentes de giesta. Porém, como a nossa casa se situava nas imediações de um pequeno mercado, tínhamos vizinhos em ambos os lados e estávamos a um saltinho das lojas. Acordava com o ranger dos portões de uma quinta, o matraquear dos cascos dos cavalos que cruzavam os quintais da vizinhança no caminho para os pastos, o tilintar das garrafas de leite mesmo à nossa porta.

Em Londres, a rua onde eu vivera estava sempre movimentada. Nunca ficava às escuras. Precisava de pesados cortinados e ainda de um estore para bloquear o brilho ofuscante das luzes dos candeeiros do lado de fora da minha janela. A garagem e a loja da esquina permaneciam abertas a noite toda e acrescentavam mais barulho e claridade. De manhã, o volume aumentava, como se alguém tivesse girado o botão de um rádio gigante. O ar era rançoso e cheirava a gasóleo.

Em Le Rossignol o ar era doce. A casa mais próxima aninhava-se por detrás de um arvoredo a cerca de trezentos metros. Apenas a lua e as estrelas iluminavam o céu.

O Hugo telefonava quase todas as noites.

– Está tudo bem, doçura? Saudades minhas?

– Sim, saudades tuas. Tudo bem – respondia-lhe sempre.

As noites silenciosas enervavam-me. Durante a primeira semana sozinha na casa, ouvi vagos rangidos pelas divisões, como se o próprio edifício se preparasse para adormecer. Aos poucos, comecei a estar mais consciente do áspero cricri dos grilos, qual pulso noturno, e verifiquei que se tratava de um indutor do sono tão bom como contar carneirinhos.

A minha manhã principiava com uma ida à padaria de Astignac para comprar pão fresco e, se me encontrava com disposição, um croissant de chocolate. Após o pequeno-almoço, levava a minha máquina de escrever para a mesa de ferro forjado, à sombra de um castanheiro. Enquanto havia sol, preferia trabalhar ao ar livre.

De quando em quando, parava de martelar as teclas para descansar os olhos na paisagem. Nunca faltava um horizonte – eis uma das coisas que mais apreciava em Le Rossignol. Nunca descortinei um horizonte em Londres ou na casa em County Wicklow, que se encontrava rodeada de montanhas.

Trabalhava enquanto a luz se esvaía no céu e, longinquamente, uma linha cor-de-rosa esborratada sob um céu índigo assinalava o ponto em que a terra acabava e o invisível oceano principiava. Então, dava um longo passeio pelas plácidas estradinhas, transpunha os vinhedos silenciosos e ocasionais prados, cobertos por uma relva delicada e flores roxas e cor-de-rosa que pareciam cintilar ao anoitecer.

Nunca encontrei vivalma e raramente avistei um carro. Por vezes, quando passava por uma casa, um ladrar frenético irrompia e perdurava até eu atingir o fim de um jardim vedado, quando o único som seriam de novo os meus próprios passos.

Quando o tempo ficava encoberto, como aconteceu alguns dias, a terra e o céu fundiam-se numa luz cinzenta e brumosa; gotas de chuva fustigavam as folhas das árvores; trilhos delgados e vaporosos ramificavam-se pelas vinhas e estendiam-se sobre o Garona como tiras de gaze; o ar tornava-se húmido e imóvel. Eu refugiava-me no interior da casa até que o sol atravessasse as nuvens e raiasse novamente.

Comecei a reparar na regularidade das existências que me rodeavam. O homem que inspecionava as vinhas por baixo de Le Rossignol no início da manhã. A motoreta que zumbia pela estrada fora cerca das nove horas. A carrinha amarela que passava, e, por vezes, parava para entregar o correio em Le Rossignol, uma hora mais tarde. E quando eu bebia o meu café a meio da manhã, um grande cão branco costumava trotar nas proximidades da casa, a rebocar uma mulher morena e pequenina no fim da trela. Caso ocupasse o meu habitual posto sob o castanheiro, ela soltava sempre uma mão para me acenar cordialmente, antes de ser arrastada para a frente de novo.

Uma manhã, perscrutei por uma janela do primeiro andar e avistei uma mulher de pé a um canto do jardim, onde um pequeno portão dava para a estrada. Parecia que estava a olhar através da casa para o vinhedo que escorregava até ao vale.

No dia seguinte, encontrava-me a trabalhar no jardim quando uma súbita sensação de estar a ser observada me fez erguer os olhos, e lá estava ela outra vez, parada como uma estátua, a agarrar os guiadores de uma bicicleta preta.

Mexeu-se enquanto eu caminhava na sua direção. Apoiou a bicicleta num poste telegráfico, tirou os óculos de sol e apertou a mão que lhe estendia por cima do portão. Tinha olhos azul-claros e cabelos ruivos, de um tom que só vira nas mulheres francesas.

– Desculpe, não pretendi importuná-la. Paro sempre aqui. Vivi nesta casa até aos doze anos.

Falava um inglês correto mas hesitante.

– Foi construída pelo meu bisavô. A mulher dele batizou-a de Le Rossignol por causa do canto de um rouxinol que ela ouviu na noite do seu casamento.

Fiquei encantada com a história.

– Eles foram felizes aqui?

– Tudo se passou há muito tempo. Quem é capaz de conhecer um casamento? – Sorriu. – Mas para mim foi uma casa feliz.

– Teve pena de a deixar?

Claro. Mas não havia escolha. Houve uma geada terrível. Tão terrível – as mãos dela golpearam o ar –, que partiu as vinhas todas. Dizimou-as. – Abanou a cabeça numa incredulidade retrospetiva. – Foi há quase quarenta anos, mas ainda falamos dela. – Recolocou os óculos de sol.

Protegi os meus olhos com a pala dos dedos e segui o seu olhar pela sombra sarapintada do castanheiro, até às curvas do solo estorricado, por entre as vinhas carregadas de uvas e os arbustos nas fendas do vale. Não conseguia imaginar toda aquela fertilidade atrofiada pela geada.

–Ea seguir vieram três verões húmidos e três péssimas colheitas. Ficámos arruinados. Vendemos a casa e os vinhedos. Mudámo-nos para Bordéus.

– Veio a pedalar de Bordéus até aqui?

Ela riu-se.

Não de tão longe. Estou de visita ao meu irmão. Ele vive a oito quilómetros daqui, ao pé de Polignac.

Bem distante para uma bicicleta – disse eu. – Imensos montes.

– Talvez. Mas a minha mãe pedalava trinta quilómetros para chegar aqui, duas vezes por semana, durante a guerra. Faço uma viagem bem mais curta.

Ela notou a minha perplexidade.

– Le Rossignol foi ocupado pelos alemães. O meu pai foi prisioneiro de guerra. A minha mãe e a minha avó foram viver em Les Landes. Porém, todas as semanas vinham até estes vinhedos de bicicleta.

Ocorreu-me subitamente que elas poderiam ter escondido vinho dos alemães.

Durante a guerra a sua família escondeu coisas? – perguntei.

– Naturalmente. A melhor porcelana chinesa, por exemplo. Mas os alemães eram oficiais. Não partiram nada.

Estava prestes a perguntar-lhe sobre o vinho e a guerra, quando o grande cão branco e a pequenina morena vieram na nossa direção, como uma corda de luta ambulante.

– Christine! – Numa confusão de movimento contínuo, a dona da bicicleta precipitou-se para a frente, pegou na coleira do cão, fê-lo parar, abraçou a mulher morena, beijou-a nas duas bochechas e voltou-se para mim com um largo sorriso na cara.

A seguir, foram só apresentações. A proprietária da bicicleta, Madame Barron, era prima da dona do cão, Madame Ragulin. O cão chamava-se Atalante.

Une chienne des Pyrénées – disse Madame Barron.

–A Atalante adorava o meu marido – suspirou Madame Regulin.

– O meu marido adorava a Atalante.

Ela agachou-se para acariciar o pelo desalinhado do cão ofegante. Vi as palavras – Qui m’aime aime mon chien – inscritas nas costas da sua T-shirt largueirona.

Seguiu-se uma conversação rápida em francês. Deduzi que Madame Ragulin tinha enviuvado recentemente. Murmurei condolências. Madame Barron tornou a abraçar a prima. Acocorei-me ao lado da Atalante. Esta fitou-me com olhos dourados e aureolados de cor-de-rosa.

Ergui-me. Madame Barron e Madame Ragulin apertaram a minha mão em despedida. Madame Ragulin saiu à frente. Continuaram a subir a estrada. Madame Barron a rolar na sua bicicleta. O cão branco a guiá-las.

21 Poema do inglês Robert Browning (1812-1889), intitulado «Home Thoughts, from Abroad». (N. do T.)