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Marquei uma consulta com uma médica em Astignac, a quem descrevi os meus sintomas. Ela examinou-me, mediu a minha tensão arterial, fez-me algumas perguntas sobre a minha vida. Insistiu num teste de gravidez. Este deu negativo, como eu tinha a certeza que daria.
– Vous êtes stressée – disse ela.
Fiquei ao mesmo tempo aliviada e confusa. Não achava que a minha vida fosse particularmente stressante. Mas a doutora, com o ar calmo de quem já viu tudo e não é surpreendida por nada, observou que, de acordo com o meu próprio relato, estava a trabalhar em duas tarefas simultaneamente e a cozinhar refeições em duas casas. Acrescentou ainda que as mulheres tendem a absorver o stresse experimentado pelo homem com quem vivem. Receitou-me chá de camomila, exercícios e ar fresco.
Saí do consultório para o sol primaveril. Era a primeira semana de abril. As árvores da praça estavam a cobrir-se de folhas. Nas escavadoras do lado de fora da Mairie havia uma patriótica exibição de tulipas vermelhas e brancas e jacintos azuis. Primavera. Eu andava a fazer menos exercícios porque Christine já era novamente capaz de lidar com a Atalante. Trabalhava no meu minúsculo escritório com a ventoinha do aquecedor elétrico ligada, a soprar. A médica tinha razão. Precisava de sentir o vento na minha cara, de refrescar os meus pulmões.
Decidi ir de bicicleta ao Chatêau de La Lune.
Havia placas indicativas desde Polignac e foi fácil encontrá-lo. Desmontei ao pé de um sinal de madeira pintada, com uma lua crescente prateada e um punhado de estrelas brilhantes num fundo azul-escuro. Empurrei a minha bicicleta pela descida relvada que fazia uma curva no sopé da colina, através do vinhedo de uma aparência descuidada, com rainúnculos amarelos e trevos a crescerem por entre as filas de videiras.
A rampa desembocava numa moderna casa de dois pisos, com um quintal de cimento e um amplo barracão numa das extremidades.
Didier estava junto da entrada para o barracão. Usava as duas mãos para mexer o conteúdo de um bidão de óleo com um pau comprido.
– Bom-dia, Honor. Desculpa não te cumprimentar devidamente. Tenho de mexer isto durante uma hora.
Ele sorriu com a cara que fiz.
– Não te preocupes. Só faltam cinco minutos. Então estará pronto e já poderei parar.
Observei-o a mover vigorosamente o pau num círculo, criando torvelinhos no líquido.
–É o esterco de vaca daquele chifre, diluído em treze litros de água da chuva. – Didier não perdeu o ritmo. – Mexo-o durante meia hora no sentido dos ponteiros do relógio e depois mais meia hora em sentido contrário. Quando for lua nova, regarei as minhas vinhas com isto.
– Fora isso, és perfeitamente normal – disse eu.
Ele riu-se.
– Também utilizo no meu composto flores de camomila nos intestinos de uma vaca e flores de milefólio na bexiga de um veado macho. Resulta. Mas não acreditas em mim.
Parou de bater e retirou o pau. O líquido continuava a andar à roda. Observei-o, fascinada. Didier encostou o pau no bidão. Trocamos dois beijinhos cordiais.
– Cultivo os vinhos segundo o princípio de agricultura biodinâmica. Talvez seja mais simples dizer que sou um vinicultor à moda antiga. Igual ao meu avô.
–O teu avô também regava as vinhas com esterco?
– Não. Mas também não as regava com produtos químicos. Plantava-as quando a Lua estava a crescer. E podava-as quando ela estava a minguar. É assim a agricultura à moda antiga. As minhas uvas são saudáveis. E boas uvas dão bom vinho. Vem, prova-o.
Conduziu-me do quintal ensolarado para a penumbra fria do barracão. Quando os meus olhos se adaptaram à luz, avistei uma fila de altas pipas de madeira e, depois destas, uma fila de barris mais pequenos, deitados de lado.
Em frente, aprumava-se um pequeno frigorífico e uma mesa com meia dúzia de copos de vinho, um computador portátil e um maço de folhetos. Um cartaz na parede – em letras douradas sobre uvas verdes e roxas – proclamava:
Domaine de la lune. En Biodynamie depuis 1993.
Atrás do cartaz estava pendurado um grande calendário com as fases da Lua.
Embora já vivesse naquela região há seis meses, não visitara muitos vinicultores. O Hugo nunca me levava com ele quando fazia compras. «É bom ter-te por perto quando ando apenas a fazer entregas», dissera ele. «Mas não quando estou a negociar.» Tínhamos comparecido num par de dias das – Portes Ouvertes – quando os vinicultores abrem as suas portas ao público e convidam toda a gente a provar os seus vinhos. E o Hugo havia-me orientado nestas provas.
– Roda o vinho no copo. Põe o teu nariz dentro do copo. Cheira-o algumas vezes. Diz algo como belle arome ou belle robe. Podes dizer a mesma coisa em inglês. Ótimo perfume. Ótima cor. Dá um gole. Bochecha-o. Suga-o nas tuas bochechas. Bebe mais um pouco. Parece pensativa. Cospe-o.
Agora eu observava Didier a tirar duas garrafas de vinho tinto e duas de vinho branco do frigorífico. Já estavam abertas. Retirou a rolha de uma garrafa de vinho branco, despejou um pouco num copo e entregou-mo.
Acenei nervosamente na direção da escarradeira.
Didier sorriu.
– Não precisas de cuspir. Só no caso de provares muitos vinhos um atrás do outro. Aí então devias cuspir. Não estar um coup dans le nez. Um niquinho bêbada.
Obedientemente, girei no copo o líquido pálido e viscoso. Enfiei o nariz lá dentro. Cheirou-me a toranja e a relva recém-cortada.
– Não percebo muito de vinhos – disse eu. – Apenas os bebo. Ele riu-se.
– Mas o vinho foi feito exatamente para ser bebido.
Revolvi o vinho dentro da minha boca. Sabia a limão e manga e a outros sabores que não consegui identificar. A minha boca salivou. Engoli. O gosto perdurou no meu palato. Pousei o copo vazio.
– Delicioso. Simplesmente delicioso. Didier serviu um pouco de vinho tinto.
– Cuvée Amélie.
Cheirava a groselhas-pretas. Sabia a ameixas e cerejas, e era um bocadinho picante, como canela ou cravo-da-índia. Fez a minha boca franzir-se.
Didier serviu-se de uma pequena quantidade de vinho, cheirou-o, experimentou-o. Acenou com visível satisfação. – Vou conservá-lo por muitos anos. Hoje é um dia das flores. Saberá ainda melhor num dia das frutas.
Estudei a fisionomia dele. Nenhum sinal de ironia.
–A Lua afeta o sabor do vinho – disse ele. – Isso soa ridículo. Mas tenho de aceitar que tal facto é uma grande influência. Recordas-te do mascaret? Toda aquela água impelida rio acima pela força da Lua.
Didier pôs a sua mão na minha cintura e conduziu-me para mais perto do calendário. Agora conseguia ver que sob cada fotografia da Lua, desde uma lasca de branco até um rotundo globo branco, enquanto crescia e diminuía ao longo dos meses, havia uma pequena cenoura cor de laranja, uma rosa amarela, um cacho de uvas vermelhas ou uma folha verde.
As minhas costas estavam quentes onde a mão dele tinha pousado.
–O mês lunar encontra-se dividido em dias das frutas, dias das flores, dias das raízes e dias das folhas – explicou Didier. – O vinho é melhor nos dias das frutas. É estranho, mas indiscutivelmente os meus vinhos sabem melhor nos dias das frutas.
Deu-me uma olhadela.
– És cética. Também eu era cético. Mas o meu vinho é bom, não é?
– Muito bom – respondi com toda a sinceridade.
– Talvez seja assim porque não confio em produtos químicos para matar as ervas e os fungos, porque preciso de vigiar os meus vinhos com atenção, porque preciso de trabalhar duro, talvez seja por isso tudo que o meu vinho é bom. – Sorriu. – Não necessito de acreditar na teoria toda. Sei apenas que, para mim, ela funciona.
Vagueámos por entre as filas de videiras. O Didier contou que permitia que as ervas e as flores silvestres crescessem.
– Para as videiras, a competição é saudável. Elas gostam do stresse. Lavro a terra no outono. Desse modo não prejudico os rebentos. E as raízes entranham-se profundamente no subsolo.
Quatro vacas brancas pastavam num campo do outro lado da vala que circundava o vinhedo. – Estas são as minhas loiras d’Aquitaine – disse Didier. – Por vezes, pastam aqui, entre as videiras. Comem os trevos e as ervas daninhas. E aproveito o estrume delas.
Deu uma olhadela ao relógio.
–É hora de almoçar.
– Tenho de ir – disse eu.
– Não podes pedalar todo o caminho de volta até Le Rossignol sem almoçar – disse Didier. – Prepararei qualquer coisa.
Guiou-me às traseiras da casa, onde as janelas abertas revelavam uma ampla cozinha.
– Senta-te, se fazes o favor.
Puxou uma cadeira de uma longa mesa de pinho sobre a qual repousavam os restos do pequeno-almoço: um croissant comido pela metade, uma mancha de doce num prato, uma faca barrada com manteiga, uma grande chávena sem pires.
Didier encontrava-se completamente descontraído. Removeu os pratos da mesa e empilhou-os no lava-loiças. Tirou uma garrafa de vinho branco do frigorífico e serviu-nos um copo. Através das janelas, o sol inundava a cozinha e aquecia as minhas faces. Também relaxei.
Didier declinou a minha oferta de ajuda. Pôs a mesa com pratos, facas, garfos, guardanapos. Abriu uma lata e deitou o conteúdo numa travessa rasa. Introduziu a taça no microndas. Portanto, também os franceses se serviam de enlatados...Tal pensamento fez-me sorrir. Didier retirou um pacote de salmão fumado do frigorífico, dividiu-o ao meio e barrou com manteiga duas fatias de pão escuro.
– Vês? O almoço é fácil.
O microndas ronronava enquanto comíamos o salmão fumado. O cronómetro tilintou. Didier retirou a travessa.
– Lampreias – anunciou. – Do Garona. Com molho de vinho tinto.
– Um dos reis ingleses morreu de uma indigestão de lampreias – disse eu. – Mas eu não sabia o que eram precisamente.
– São como as enguias. – Didier pousou a travessa na mesa e serviu uma porção em cada prato. – Bon appétit.
Dei uma garfada.
– Delicioso.
– Ela alterou a receita desde a última vez. Acho que agora tem mais alho.
Fitei-o de olhos arregalados.
– Sabes quem cozinhou isto?
– Claro. A minha mãe. Na última visita que me fez. Examinei a cara dele. Falava sério.
– Mas estava numa lata... – observei.
– Cozinhou-a cá, na cozinha. Depois levámos o tacho para a farmácia em Astignac. Monsieur Martin tem uma máquina. Sela as latas perfeitamente. Tenho um guarda-loiças repleto delas.
– Lampreias enlatadas?
Ele confirmou.
–E confit de pato enlatado, bife à bourguignonne e coelho estufado. Por sorte, a minha mãe gosta de cozinhar. Não tenho uma esposa que cozinhe para mim.
– Algumas esposas fazem mais do que cozinhar – disse eu.
– Espero que sim – disse ele, com um sorriso que me fez corar. Curvei a cabeça para o prato.
– Duvido de que conseguisse cozinhar isto. – Então, para o caso de ele pensar que me estava a candidatar ao papel de esposa, acrescentei rapidamente: – Adoraria ser rica o bastante para ter uma cozinheira.
– Então tens de casar com Monsieur Lancaster – disse Didier. Levantei a cabeça, admirada.
–O Hugo não é rico – disse eu. – Não é rico a valer.
– Bem, rico o suficiente para comprar Le Rossignol a pronto pagamento – disse Didier. Ele estudou a minha cara. – Não te deverias surpreender. Por estas bandas nada permanece em segredo por muito tempo.
Não estava espantada por toda a gente parecer estar a par dos negócios do Hugo. Estava constrangida por saberem mais do que eu.