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MELANIE, 1994
Fresco, inebriante, delicioso. Pouco encorpado mas cheio de sabor. No final, laivos de uma doçura de mel.
Desde o princípio levei uma espécie de vida acidental. Deveria ter nascido numa tenda dos peles-vermelhas. Naquela altura, a minha mãe vivia numa comuna em Marin County. Queria um parto natural, recorrendo apenas a prímulas noturnas1 e tinturas de cohosh negro – mais conhecido como raízes das índias –, explicou ela aos meus horrorizados avós – para aliviar as dores. Estava a carregar um cartaz – «As Bombas Matam Bebés» – numa marcha contra a Guerra do Vietname, em São Francisco, quando entrou em trabalho de parto. Antes que desse por isso, já se encontrava estendida numa ambulância, rumo às Urgências mais próximas.
O segundo facto involuntário na minha vida foi ter sido confiada aos cuidados dos meus avós, Bill e Dorothy McKitterick. A minha mãe não me queria deixar permanentemente. Apenas aconteceu. Um amigo de um amigo ofereceu-lhe um emprego em Washington. A minha mãe julgou que referiam o estado de Washington, o que seria facilmente adaptável, pois então vivíamos todos em Portland, no Oregon. Mas tratava-se de Washington DC, e a capital do país ficava muito longe.
Não me recordo do meu pai. Tinha somente dez meses quando ele não voltou do Festival de Woodstock, em agosto de 1969. Escreveu «Desculpa, querida» nas costas de um bilhete de três dias e enviou-o à mamã juntamente com cem dólares. Assisti ao filme do Festival pelo menos meia dúzia de vezes, na esperança de o vislumbrar.
Tenho uma fotografia dos meus pais num promontório ao pé de Mendocino. Descalços, flores nos cabelos. O cabelo do meu pai mais comprido e encaracolado do que o loiro rabo-de-cavalo da minha mãe. Eram tocantes. Ele tinha o seu braço em volta dela. Sorriam. Pareciam radiantes. Hippies felizes.
Consigo ver a saliência no ventre da minha mãe na foto. Tem a mão pousada ali. Em mim, acho eu. Os meus pais tinham uma cerimónia de atribuição de nome marcada para mim – Celeste Melanie Estrela Raio de Luar, em Cuffy’s Cove, um mês depois.
O casamento durou um ano. O meu pai durou mais três anos. Morto pela honestidade, disse-me o seu amigo Cloudy quando investiguei os outros membros dos Saddlemen, a banda na qual o meu pai tocou antes de andar a monte. Gravaram um disco para uma editora independente. Dezoito amargas canções sobre cobóis e mineiros. Nenhum deles provinha daquelas origens. Eram todos rapazes urbanos, filhos de empresários e advogados. A mãe contou-me que perdeu o contacto com todos eles depois de o meu pai morrer num acidente de viação, assim como os próprios pais dele.
Mas o acidente do meu pai foi de uma espécie diferente.
– Os comprimidos dele eram cortados e misturados com outras coisas – contou-me o Cloudy. – Assim, ele habituou-se a dobrar as quantidades. Quando o dealer dele foi preso, o teu pai arranjou outro por conta própria. Acontece que este novo dealer era honesto. O teu pai não sabia disto. Continuou a dobrar as quantidades. Overdose. – Durante todo o tempo que durou tal relato, Cloudy manteve os olhos fixos na carpete cinzenta do seu escritório. Quando finalmente levantou a cabeça e viu o meu olhar atónito, comentou:
– Tens os olhos do Larry. Espero que tenhas mais sorte.
Cloudy é advogado em Los Angeles. Nunca encontrei os outros dois membros da banda. Cloudy disse-me que um deles faz biscates frequentes em Nashville. O outro é dentista em San Diego. Troco cartões de Natal com Cloudy. Ele é o único contacto que conservo com o lado do meu pai.
Tenho uma fotografia do meu pai comigo. Estou sentada nos seus joelhos, os meus braços cingindo desajeitadamente a barriga de um ursinho de peluche cor de caramelo. Os braços do meu pai abarcam com facilidade quer a mim, quer ao urso.
A foto está numa prateleira da estante no estúdio que aluguei em Monterey, próximo da vinícola onde trabalho aos fins-de-semana. Dirijo o clube de enólogos e organizo grupos de provas de vinho. Nos dias úteis vivo no campus da UC Davis2. Regresso a Monterey às quintas ou sextas-feiras, dependendo das aulas. Se parto do meu estúdio na segunda-feira, às seis da manhã, consigo estar de volta ao campus pelas nove horas.
A UC Davis foi acidental, também. Eu pretendia ser professora, como a minha avó. No verão que precedeu a minha conclusão do ensino secundário, arranjei um emprego temporário na vindima de uma vinícola em Carmel Valley. Apaixonei-me pela paisagem. As colinas californianas evocaram-me o meu urso de peluche. Suaves, castanhas, arredondadas. Senti que podia pousar a cabeça nelas.
Vincent Briamonte, meu patrão e proprietário da vinícola Carmel Valley Cottontail, promoveu-me para a divisão das provas de vinho. Eu tinha um bom palato, disse ele, e explicava-me claramente aos clientes. Outubro chegou, e Vincent ofereceu-me um emprego com disponibilidade para estudar viticultura e enologia. Foi assim que acabei por inscrever-me na UC Davis, desistindo de ser professora.
Na verdade, nunca me senti parte de uma família. Não como a minha amiga Stephanie, que tem três irmãs e um irmão, ou o meu patrão Vincent, que é meio italiano e tem um batalhão de sobrinhas, sobrinhos e primos. Outra das minhas amigas, a Linda, tem um padrasto e duas meias-irmãs, mas todos cresceram juntos. Sou dezasseis anos mais velha que o meu meio-irmão e que a minha meia-irmã e não os vejo com frequência.
Tive um meio-irmão durante algum tempo. A minha mãe esteve casada pouco tempo com um vendedor de produtos farmacêuticos chamado Hank, que era divorciado e tinha um filho, Austin, de um casamento anterior. Austin vivia com a sua mãe. Encontrei-o apenas uma vez.
Quando Hank foi transferido para Singapura, a minha mãe foi com ele. Deixaram-me com os meus avós maternos, pois eu tinha iniciado o infantário em Portland e parecia a coisa mais sensata a fazer. Eu chamava à minha avó Grammy e ao meu avô Poppa. Ambos tratavam-me por Melanie. Foi por isso que comecei a chamar-me a mim própria Melanie, embora para a minha mãe ainda continuasse a ser Raio de Luar por algum tempo e Celeste figure no meu primeiro certificado escolar.
Casualmente, ouvi Grammy a falar ao telefone com o tio Bobby.
Ainda consigo visualizar o aparelho preto nas mãos de Grammy; ouvir o grasnido que saía do auscultador, Grammy a dizer: «Foi um grande choque para a Ingrid. Penso que, entretanto, ela ficará connosco.» Julguei que ela estivesse a comentar que a minha mãe estava a regressar a casa. Estremeci de excitação. Grammy viu-me e apertou-me nos seus braços. «Era sobre ti que eu estava a falar, Melanie. Vais ficar connosco por mais algum tempo. Não é formidável?» Foi pouco depois de a minha mãe e o Hank se separarem.
Ela permaneceu em Singapura a seguir ao divórcio de Hank. Tinha um emprego seguro no Citibank. Grammy explicou-me que no nosso país ela não conseguiria um salário tão bom, nem de perto nem de longe. Via a minha mãe uma vez por ano, no Natal, e recebia uma carta dela por mês. Ainda as recebo. Guardo-as numa pasta cor-de-rosa que fiz no colégio.
Tinha quinze anos e frequentava o liceu em Portland quando a minha mãe escreveu a informar-me de que se ia casar com um advogado que conhecera numa conferência. A sede da firma dele era em Atlanta, portanto ambos regressariam aos Estados Unidos. Escrevi-lhe a dizer que estava contente por ela. Através de certas observações nas suas cartas, apercebera-me de que ela se sentia muito só desde que deixara Hank.
Fui a dama de honor quando ela desposou Ivor Kitchov na igreja do Sagrado Redentor em Atlanta. Os gémeos – o meu meio-irmão Nicky e a minha meia-irmã Alex – nasceram um ano mais tarde. Têm cabelos loiros e uma pele que parece banhada em ouro. Lembram miniaturas da minha mãe e do Ivor. Quanto a mim, tenho os mesmos caracóis escuros do meu pai. Ninguém jamais diria que éramos da mesma família.