Berlim
Onde livros são queimados, no fim, as pessoas também serão queimadas.
Heinrich Heine, 1820
Essas palavras estão gravadas em uma placa de metal vermelha enferrujada em meio às pedras portuguesas da Bebelplatz, em Berlim. Os turistas que vão a Berlim no verão passeiam pela praça localizada entre o Portão de Brandemburgo e a Ilha dos Museus, a caminho de um dos lugares mais grandiosos da cidade. O local ainda carrega uma tensão simbólica. Na esquina da praça há uma senhora idosa de cabelos brancos despenteados. Ela está envolta em uma grande bandeira israelense – a estrela de davi em suas costas. Outra guerra começou em Gaza. Cerca de trinta pessoas se reuniram para uma manifestação contra o sentimento antissemita que, setenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, desperta novamente na Europa.
Do outro lado da larga e elegante avenida Unter den Linden, mesinhas foram colocadas diante dos portões da Universidade Humboldt. Por poucos euros é possível comprar exemplares gastos de livros de Thomas Mann, Kurt Tucholsky e Stefan Zweig – todos autores cujas obras foram atiradas ao fogo aqui neste mesmo lugar em maio de 1933. Em frente às mesas fica uma fileira de placas de metal do mesmo tamanho das pedras portuguesas. Cada placa traz um nome: Max Bayer, Marion Beutler, Alice Victoria Berta, todos ex-alunos da universidade. Depois de cada nome há uma data, com nomes de lugares que dispensam maiores explicações: “Mauthausen 1941”, “Auschwitz 1942”, “Theresienstadt 1945”.
As palavras de Heinrich Heine, na verdade um trecho de um diálogo da peça Almansor, têm sido vistas desde a Segunda Guerra Mundial como uma profecia do que se passou aqui, e da catástrofe que se seguiria. Em 10 de maio de 1933, na Bebelplatz, na época conhecida como Opernplatz, aconteceu a mais famosa cerimônia de queima de livros da história – um evento que permaneceu como um poderoso símbolo da opressão totalitária, da barbárie cultural e da impiedosa guerra ideológica levada a cabo pelos nazistas. As chamas da fogueira onde os livros queimaram passaram a simbolizar a íntima ligação entre destruição cultural e Holocausto.
Antes, naquela mesma primavera, os nazistas haviam conquistado o poder na Alemanha usando outro incêndio – o incêndio do Reichstag, em fevereiro de 1933 – como pretexto. Os nazistas alegavam que se tratava de trabalho de comunistas, que a Alemanha estava ameaçada por uma “trama bolchevique”, e puseram em ação a primeira grande onda de terror, prendendo comunistas, sociais-democratas, judeus e outros integrantes da oposição política. Essas acusações eram alimentadas pelo jornal do Partido Nazista, o Völkischer Beobachter, que vinha causando agitação e tumulto havia alguns anos contra judeus, bolcheviques, pacifistas e contra a literatura cosmopolita, preparando o cenário para a ascensão nazista.
Os nazistas vinham sabotando eventos culturais antes mesmo de 1933. Tudo – de exibições de filmes “desagradáveis” a exposições da chamada “arte degenerada” – passou a estar sob ataque. Em 30 de outubro de 1930, Thomas Mann, que havia recebido o Prêmio Nobel no ano anterior, atacou o clima dominante em uma leitura aberta no Beethoven Concert Hall, em Berlim.[1] Joseph Goebbels, que tinha recebido uma dica do que iria acontecer, mandou vinte camisas-marrons das Tropas de Assalto da SA à leitura, todos de smoking para que se misturassem à plateia, um grupo que incluía alguns intelectuais de direita. O discurso de Mann recebia aplausos de partes da audiência, e era interrompido o tempo todo pelos sabotadores. A atmosfera ficou tão tensa que Mann foi obrigado a deixar o auditório pela porta dos fundos.
Ameaças eram ainda mais comuns. A família Mann e autores como Arnold Zweig e Theodor Plievier vinham recebendo uma sequência sem fim de telefonemas e cartas em tom ameaçador. Casas de escritores eram vandalizadas com pichações. E alguns deles eram submetidos a monitoramento individual por patrulhas da SA, que esperavam do lado de fora de suas casas e os seguiam aonde quer que fossem.
Foram produzidas listas de literatura condenável. Em agosto de 1932, o Völkischer Beobachter publicou uma lista negra de autores que deviam ser banidos quando o partido assumisse o poder.[2] Mais cedo naquele mesmo ano, uma declaração publicada no mesmo jornal, apoiada com assinaturas de quarenta e dois professores alemães, exigia que a literatura alemã fosse protegida contra o “bolchevismo cultural”. No inverno de 1933, quando os nazistas chegaram ao poder, o ataque contra a literatura condenável deixou de ser feito a partir das ruas e passou a ser comandado pela máquina estatal. Em fevereiro de 1933, o presidente Paul von Hindenburg assinou uma lei “para a proteção do povo e do estado”, que impunha restrições a publicações impressas – novas emendas incluídas na primavera do mesmo ano impuseram mais controles à liberdade de expressão. As primeiras baixas foram jornais e editores comunistas e social-democratas. Hermann Göring ficou encarregado de liderar a batalha contra a chamada literatura suja: livros marxistas, judeus e pornográficos.
Foi esse ataque à literatura que levou à queima de livros em maio – mas na verdade a iniciativa não partiu do Partido Nazista, e sim da Deutsche Studentenschaft, uma organização que reunia federações de estudantes alemães. Várias dessas federações vinham apoiando mais ou menos abertamente os nazistas desde a década de 1920. Não foi a primeira vez no período entre as duas grandes guerras que estudantes conservadores de direita alemães fizeram fogueiras de livros. Em 1922 centenas de estudantes se reuniram na base aérea de Tempelhof, em Berlim, para queimar “literatura suja” e, em 1920, estudantes em Hamburgo queimaram uma cópia do Tratado de Versalhes, o termo de rendição que a Alemanha foi obrigada a assinar depois da Primeira Guerra Mundial.
O ataque do Partido Nazista à literatura alimentou investidas que já vinham sendo realizadas por grupos de estudantes conservadores de direita. Para esses grupos estudantis, a queima de livros era uma tradição alemã de desafio e resistência que remontava aos dias de Martinho Lutero e à Reforma Protestante. Em abril de 1933, a Deutsche Studentenschaft anunciou uma ação contra a “literatura antialemã”, colocando Adolf Hitler no papel de um novo Martinho Lutero. Para evocar as noventa e cinco teses com as quais Lutero deu início à Reforma, a federação de estudantes publicou suas próprias “teses” no Völkischer Beobachter – doze teses “Wider den undeutschen Geist!” [Contra o espírito antialemão].
Os estudantes afirmavam que o idioma carregava a verdadeira alma de um povo e que por isso a literatura alemã devia ser “purificada” e libertada da influência estrangeira. Eles diziam que o judeu era o pior inimigo da língua alemã: “Um judeu só pode pensar à maneira de judeu. Se escreve em alemão está mentindo. O alemão que escreve em alemão mas pensa de modo antialemão é um traidor”[3]. Os estudantes exigiam que toda “literatura judaica” fosse publicada em hebraico e que “o espírito antialemão fosse erradicado das bibliotecas públicas”. As universidades alemãs, de acordo com os estudantes, deviam ser “bastiões das tradições do povo alemão”.
Essa proclamação foi o início de uma ação nacional para eliminar a literatura “antialemã”. Associações de estudantes se subordinaram à Deutsche Studentenschaft nas universidades alemãs e formaram “comitês de guerra” para organizar queimas de livros coordenadas em toda a Alemanha. As queimas deviam ter caráter celebratório, e os comitês eram exortados a promover esses eventos, convidar oradores, encontrar lenha para as fogueiras e buscar apoio de outras federações estudantis e das lideranças nazistas locais. Os que se opunham a isso, especialmente professores, eram ameaçados. Os comitês de guerra também colavam pôsteres com slogans como “Hoje os escritores, amanhã os professores”.[4]
Mas a principal tarefa dos comitês de guerra era arrecadar literatura “suja” para queimar nas fogueiras. Os estudantes tinham ordens de começar a limpeza por suas próprias bibliotecas pessoais, mais tarde passando para bibliotecas públicas e livrarias locais, muitas das quais cooperaram de boa vontade. Na primavera de 1933, uma lista negra mais ampla de livros e autores também começou a ser compilada. Wolfgang Herrmann, um bibliotecário que se envolveu com grupos estudantis de extrema direita já nos anos 1920, vinha trabalhando há muitos anos em uma lista de literatura “digna de ser queimada”. Esse primeiro esboço relacionava apenas 12 nomes, mas logo a lista se expandiu para 131 escritores, subdivididos em várias categorias. Entre elas havia os comunistas, que iam de Trótski e Lênin a Bertolt Brecht; pacifistas como Erich Maria Remarque; intelectuais judeus como Walter Benjamin; e muitas outras figuras literárias e intelectuais que ganharam destaque durante a República de Weimar.
Mesmo longe de serem críticos do nacionalismo, historiadores também entravam para a lista negra caso sua visão da história não coincidisse com a dos nazistas, particularmente quando se tratava de livros que falavam de temas como a Primeira Guerra Mundial, a União Soviética e a República de Weimar. Também havia alguns pensadores cuja visão de mundo era profundamente rejeitada pelos nazistas, como Sigmund Freud e Albert Einstein. Os dois foram atacados como sendo as bases para avanço da “ciência judaica”.
Além de “limpar” suas próprias bibliotecas, os estudantes pediam às bibliotecas públicas e às livrarias locais que fizessem uma contribuição abrindo mão de seus estoques de “literatura suja”. Em muitos casos, bibliotecários de universidades e professores colaboraram com os estudantes na limpeza de bibliotecas escolares.
Mas os comitês de guerra também aplicaram métodos mais violentos, usando o auxílio da polícia local e de Tropas de Assalto da SA para pôr as mãos nos livros. Poucos dias antes das queimas, no início de maio, os estudantes atacaram locadoras de livros e livrarias comunistas. As primeiras eram especialmente odiadas pelas forças conservadoras e foram descritas por Wolfgang Herrmann como “bordéis literários” que espalhavam literatura suja, judia e decadente em meio a pessoas decentes, comuns. As locadoras se tornaram extremamente populares depois da Primeira Guerra Mundial. Em função da depressão econômica e da inflação na Alemanha no período entre as guerras, um número cada vez menor de alemães conseguia comprar livros. As bibliotecas tradicionais não davam conta da grande demanda por livros, o que levou à criação de mais de quinze mil locadoras. Essas locadoras ofereciam um aluguel de livros a baixo custo e compravam em grande escala best-sellers da época, como os livros de Thomas Mann. Essas “bibliotecas populares” eram alvos fáceis para os estudantes; enquanto isso, as tropas da SA invadiam também bibliotecas privadas. Um ataque muito divulgado foi realizado contra um prédio em Berlim de propriedade da Schutzverband deutscher Schriftsteller, uma organização que trabalhava para proteger autores alemães que se opunham ativamente à censura e a outras formas de intervenção estatal na literatura. Cerca de quinhentos membros da associação que moravam no edifício passaram por buscas em seus apartamentos, que também foram vandalizados. Livros suspeitos eram confiscados ou destruídos ali mesmo, e os autores pegos com literatura “socialista” eram detidos.
O ataque mais famoso foi realizado poucos dias antes das queimas de livros, quando aproximadamente cem estudantes atacaram o Institut für Sexualwissenschaft [Instituto de Estudos Sexuais], localizado na Tiergarten, em Berlim. O instituto, fundado pelos médicos Magnus Hirschfeld e Arthur Kronfeld, realizava pesquisas inovadoras na área da sexualidade e também trabalhava na promoção dos direitos das mulheres, dos homossexuais e dos transexuais. Por três horas os estudantes vandalizaram o prédio, jogando tinta nos tapetes, quebrando janelas, pichando as paredes e destruindo pinturas, porcelanas e outros artigos domésticos. Eles levaram livros, o arquivo do instituto e uma grande coleção de fotos, além de um busto do fundador, Magnus Hirschfeld.[5]
Em 1932, muitos judeus e comunistas que viram para onde sopravam os ventos da política já tinham começado a eliminar parte de suas bibliotecas pessoais e a destruir fotos, agendas, cartas e diários. Os comunistas haviam enviado avisos entre si alertando que, caso estivessem de posse de documentos “perigosos”, deveriam se preparar para engoli-los. Desse modo, também houve milhares de pequenas queimas de livros em fogões, lareiras e jardins. Logo eles descobririam que aquilo não era tão fácil quanto podia parecer: queimar livros é uma atividade lenta. Em vez de optar por esse método, muita gente preferiu jogar seus exemplares em florestas, rios ou ruas vazias – outros os remeteram para endereços não existentes.[6]
Após 1933, um grande número de autores alemães foi para o exílio, por escolha própria ou sob coação. Além de Thomas Mann, a lista incluía seu irmão Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Alfred Döblin, Anna Seghers, Erich Maria Remarque e centenas de outros. Em 1939, cerca de dois mil escritores e poetas haviam se sentido compelidos a abandonar a Alemanha e a Áustria. Muitos jamais voltariam. Mas uma grande quantidade também preferiu ficar. Alguns escritores que não eram expressamente políticos partiram para o que mais tarde foi chamado de “exílio interior”. Eles permaneceram na esfera alemã, ou “Heimat”, mas decidiram não publicar. Como alternativa, lançavam livros que eram aceitos pelos censores: livros infantis, poesia e romances históricos. Outros foram impedidos de publicar seus livros, já que para poder publicar era pré-requisito ser filiado à Câmara Nacional de Literatura, uma divisão do Ministério da Educação Pública e da Propaganda, de Joseph Goebbels.
Mas também houve um grupo de autores que se aliou ao regime. Em outubro de 1933, vários jornais alemães publicaram uma proclamação assinada por oitenta e oito escritores e poetas sob o título Gelöbnis treuester Gefolgschaft, uma espécie de juramento de fidelidade. A proclamação era um apoio direto à recente decisão da Alemanha de abandonar a Liga das Nações. Entre os signatários estavam autores como Walter Bloem, Hanns Johst e Agnes Miegel, hoje praticamente esquecidos, já que a sua ascensão e a sua queda ficaram intimamente associadas ao regime ao qual juraram lealdade.
Na época, havia grandes recompensas para autores que abraçassem o nacional-socialismo. Cargos antes inacessíveis nas mais respeitadas academias literárias, fundações e associações da Alemanha começaram a ficar vagos. Eles também podiam tentar conquistar novos grupos de leitores, agora que o regime tinha assumido o controle dos principais clubes de livros do país. Em 1933, o Büchergilde Gutenberg, administrado pelos nazistas, tinha 25 mil membros, mas poucos anos depois já chegava a 330 mil. Contando com clubes de livros como esse, o regime podia distribuir qualquer coisa de modo eficiente para milhões de leitores, de Goethe e Schiller até escritores nacionalistas, conservadores e nazistas.
O Ministério da Propaganda estimulou uma atividade literária e política que jamais teve equivalência na história da Alemanha – e provavelmente nem na história moderna como um todo. O ministério dava mais de cinquenta prêmios literários anualmente.
Ao longo da década de 1930, o Ministério da Propaganda de Goebbels assumiu controle total da indústria alemã de livros, incluindo aproximadamente 2,5 mil editoras e 16 mil livrarias e sebos.[7] Uma das primeiras medidas foi eliminar a “influência judaica” no mundo dos livros por meio da exclusão gradual dos judeus das academias, associações literárias, organizações de escritores profissionais, editoras, livrarias e gráficas. Editoras, gráficas e livrarias judaicas foram “arianizadas” – transferidas a proprietários arianos. Algumas dessas estavam entre as maiores do mercado. Por exemplo, a Julius Springer era a maior editora no ramo de publicações científicas mundial. Foi um processo gradual ao longo da década de 1930. Inicialmente a transferência de controle das empresas judias e a exclusão dos judeus foram feitas com cuidado, para evitar que as empresas perdessem valor e também que houvesse problemas nas relações internacionais. Os proprietários judeus eram simplesmente persuadidos a vender, e, caso recusassem, o regime recorria a diferentes graus de coerção, assédio e ameaças. A arianização das editoras arrecadou enormes somas de dinheiro para o partido, o Estado e para empresários individuais; e depois de 1936, a prática foi formalizada legalmente pelas Leis de Nuremberg.
Embora o Partido Nazista tenha forçado muitos dos escritores mais premiados do país a partir para o exílio já em 1933, seria necessário um tempo consideravelmente maior para se livrar de seus livros. O processo foi paulatino – por exemplo, novas edições das obras de Thomas Mann continuaram sendo impressas até que a cidadania dele acabou revogada em 1936. Conseguir que as editoras alemãs expulsassem seus autores e impedir a reimpressão era uma coisa, mas controlar o mercado de livros usados era algo bem diferente – sem falar do que já estava nas prateleiras das casas alemãs. Na prática, era uma tarefa impossível se livrar totalmente desses livros, e a maior parte dos autores da lista negra continuava disponível durante a guerra – ainda que vendida às escondidas. A ferramenta mais eficiente disponível era a autocensura, o que significava as pessoas se livrarem de parte de seus próprios livros.
Outro método foi oferecer uma nova literatura ao povo alemão. Durante os anos 1930, cerca de vinte mil novos títulos foram publicados a cada ano. Os livros vistos pelo Ministério da Propaganda como “benéficos para a educação do povo” eram impulsionados por grandes edições patrocinadas. Livros que só tinham número limitado de leitores até ali repentinamente ganharam circulação em massa. Só em 1933, Mein Kampf [Minha luta], de Adolf Hitler, teve 850 mil cópias impressas.[8] Quando foi publicado pela primeira vez em 1925, o livro vendeu apenas 9 mil cópias. O maior cliente de Hitler era o Estado alemão, que comprou mais de seis milhões de exemplares. A editora do Partido Nazista, a Franz Eher Verlag, que além de Mein Kampf também produziu o Der Mythus des 20 Jahrhunderts [O mito do século XX], acabaria se transformando em uma das empresas de maior sucesso do partido.
A literatura clássica alemã teve papel de destaque no Terceiro Reich, com autores como Rainer Maria Rilke e Johann Wolfgang von Goethe. Gêneros muito mais próximos da ideologia nazista eram a prosa e a poesia que enfatizavam e louvavam a raça ariana. Isso ocasionalmente se apresentava de maneira discreta, mas, frequentemente, por meio de caricaturas vis de judeus, eslavos, ciganos, negros e asiáticos. Essas histórias geralmente acentuavam as ligações diretas entre raça e traços pessoais, ou seja, os judeus eram “traiçoeiros”, “gananciosos” e “desleais” por natureza. O maior sucesso foi Volk ohne Raum [Pessoas sem quartos]. Nesse romance, Hans Grimm afirmava que os alemães perderam a Primeira Guerra Mundial porque viviam “em espaços muito pequenos”. A Alemanha jamais poderia atingir seu pleno potencial sem ter mais terra na Europa e nas colônias. O livro vendeu quase meio milhão de cópias na Alemanha nazista, e o título foi usado pelo regime como um slogan.
Às 23h de 10 de maio de 1933, estudantes berlinenses marcharam para a Opernplatz numa procissão iluminada por tochas, carregando um busto do fundador do Instituto para Estudos Sexuais, Magnus Hirschfeld, como se fosse a cabeça decepada de um rei deposto. Mais tarde o busto foi atirado ao fogo junto com os livros do instituto. Na mesma noite, fogueiras de livros foram acesas em noventa lugares diferentes da Alemanha. A Deutsche Studentenschaft tinha feito planos detalhados sobre como as queimas deveriam ser organizadas e coordenadas. Elas foram feitas em lugares centrais e públicos, e em muitas cidades foram colocados holofotes poderosos para amplificar o efeito. As piras tinham sido construídas com dias de antecedência e decoradas com fotos de Lênin e bandeiras da República de Weimar.
Em alguns lugares, livros da lista negra foram levados às praças em carros de boi – como se estivessem a caminho da execução. Em outros, os livros eram pregados em pelourinhos. Os estudantes usavam uniformes cerimoniais, e emblemas de suas federações regionais marcharam lado a lado com as vanguardas uniformizadas da Hitlerjugend [Juventude Hitlerista], da SA, da SS e da Stahlheim, este último um grupo paramilitar independente. Tocava-se música militar e cantavam-se canções, como a música de batalha dos nazistas, a “Kampflied der Nationalsozialisten”. Enquanto os livros eram lançados ritualmente às fogueiras, nove “juramentos de fogo” preparados com antecedência eram recitados, em que se especificavam os nomes de alguns dos autores condenados e as acusações que pesavam contra eles.
Estudantes, professores, diretores e líderes nazistas locais discursaram para as assembleias, e isso atraiu grandes multidões. Em Berlim, acredita-se que mais ou menos quarenta mil pessoas se reuniram na Opernplatz, e em outras cidades houve relatos de multidões de até quinze mil pessoas.[9] Plateias ainda maiores foram atingidas via rádio, que transmitiram ao vivo os eventos de Berlim – onde Joseph Goebbels falou para a multidão. Uma equipe de cinegrafistas capturou tudo, e o filme foi mais tarde exibido em cinemas por toda a Alemanha.
Goebbels, que acabava de criar seu Ministério da Propaganda, em segredo havia incentivado a iniciativa dos estudantes, embora ainda fosse demorar um tempo até que a lista negra de Wolfgang Herrmann se tornasse parte da política cultural oficial. Também havia diferentes ideias dentro do movimento nazista sobre o tipo de política literária a ser adotada. Certas alas do partido se preocupavam com a possibilidade de que as queimas de livros sofressem uma forte censura de outros países. Também havia um medo justificado por parte do novo regime de que o governo perdesse o controle sobre o ardor revolucionário da direita que varreu a Alemanha na primavera de 1933. O próprio Goebbels esperou até o último momento antes de dar seu apoio público aos preparativos.
As queimas de livros foram, sobretudo, rituais dramáticos, e não uma tentativa realista de “limpeza” completa das bibliotecas e livrarias da Alemanha. Goebbels entendia muito bem a importância simbólica das piras de livros, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista político, como se fossem cerimônias febris de batismo de uma Alemanha renascida. A purificação pelo fogo era um ritual antigo que tinha apelo para o novo regime. Goebbels enfatizou isso em seu discurso para as multidões em Berlim, proclamando que “aqui, as fundações intelectuais da República de Novembro vão por terra, mas de seus entulhos nascerá um novo espírito triunfante como a Fênix”.[10]
Livros continuariam sendo queimados em toda a Alemanha por um bom tempo depois do início do verão. Em certas cidades, como Hamburgo e Heidelberg, houve muitas outras ocorrências. A opinião dos contemporâneos sobre a importância das queimas de livros divergiu. Muitos intelectuais alemães, como Heinrich Böll e Hans Mayer, relativizaram a importância dos eventos – que viam como nada mais do que excentricidades estudantis, ainda que bastante desagradáveis. Eles acreditavam que as queimas de livros eram expressões da febre revolucionária da primavera, e que no devido tempo o novo regime iria “superar” esse tipo de coisa.
O lacônico comentário de Sigmund Freud sobre as queimas de livros foi “Só os nossos livros? Antigamente teriam queimado a gente junto”. Outros ficaram muito mais chocados com a velocidade brutal das mudanças na política. O escritor Stefan Zweig mais tarde descreveria em suas memórias como aquilo “pareceu muito além dos limites do que era concebível, mesmo para pessoas de visão”.[11]
Mesmo internacionalmente houve opiniões diferentes sobre a importância das queimas de livros. Alguns consideraram aquilo “ridículo”, “sem sentido” e “infantil”. Outros, incluindo Helen Keller, a Newsweek e o escritor Ludwig Lewisohn, viram aquilo como um ataque bárbaro às ideias em si.[12],[13] A reação mais enfática de todas veio do Congresso Judaico Americano, com sede em Nova York, que viu as queimas de livros como uma expressão do antissemitismo e da perseguição aos judeus alemães. Manifestações foram realizadas em várias cidades dos Estados Unidos, e em Nova York cerca de 100 mil pessoas marcharam em 10 de maio de 1933 – uma das maiores manifestações registradas até então, na cidade.
A força visual da queima de livros e sua grande repercussão na mídia ficaram evidentes já na época, mas, em razão da conexão simbólica com o Holocausto, os fatos se tornariam ainda mais fortes no período pós-guerra. Embora não tenha sido a primeira nem a última vez na história que livros foram queimados, as fogueiras na Alemanha acabaram se transformando na metáfora mais devastadora de todo tipo de censura e opressão – e em um perpétuo alerta moral sempre que livros são queimados. Nos Estados Unidos, traçou-se um paralelo mais tarde nos anos 1950, como protesto contra a cruzada anticomunista do senador Joseph McCarthy, quando livros “subversivos” foram retirados de muitas bibliotecas americanas.
As queimas de livros deram ao regime nazista a reputação de “barbárie cultural”. As fogueiras se tornaram uma imagem da destruição cultural que se seguiria nas décadas de 1930 e 1940, quando o nazismo passou a controlar a totalidade do idioma, da cultura e dos meios de expressão culturais de um povo. Mas elas também foram um indício de que os genocídios praticados pelos nazistas contra seus inimigos não eram apenas físicos, também tinham um aspecto cultural.
No entanto, ao mesmo tempo a fumaça das piras de livros e sua repercussão cultural esconderam outra coisa. O modo como a posteridade interpretou a queima de livros não difere muito da maneira como os próprios nazistas viram aquilo, como rituais e espetáculos de propaganda. A imagem de livros queimando era tentadora demais, eficiente demais e simbólica demais para não ser usada e aplicada na construção da história. Mas a queima de livros se tornou uma metáfora tão poderosa para a aniquilação cultural que isso obscureceu outra narrativa mais desagradável: o fato de que os nazistas fizeram muito mais do que destruir livros – eles também foram movidos por uma obsessão fanática por possuí-los.
Enquanto as cinzas das fogueiras resfriavam lentamente, os círculos intelectuais e ideológicos do Partido Nazista começavam a elaborar um plano. Esse plano não tinha como objetivo a aniquilação intelectual, cultural e literária, porém tinha intenções muito mais alarmantes. No fim das contas, apenas algumas dezenas de milhares de livros foram queimadas em maio de 1933. Mas os ataques organizados pelo partido confiscaram e roubaram uma quantidade muito maior, muitas vezes de maneira sigilosa. Depois de os estudantes terem vandalizado o Institut für Sexualwissenschaft, em Berlim, a SA confiscou a maior parte da biblioteca do instituto – mais de dez mil livros. Entretanto, eles não foram levados à Opernplatz, e sim ao quartel-general da SA.
Os nazistas não iriam destruir seus inimigos erradicando a herança literária e cultural de comunistas, sociais-democratas, liberais, homossexuais, judeus, ciganos e eslavos. Os nazistas não eram exatamente os “bárbaros culturais” que se supunha, nem eram anti-intelectuais. Ao invés disso, eles pretendiam criar uma nova espécie de intelectual, que não se baseasse em valores como o liberalismo e o humanismo, mas, sim, em sua nação e sua raça.
Os nazistas não se opunham a professores, pesquisadores, escritores e bibliotecários; eles desejavam recrutá-los para formar um exército de guerreiros intelectuais e ideológicos que, com suas canetas, teses e livros, combatessem os inimigos da Alemanha e do nacional-socialismo.
Inaugurado em Munique em 1936, o Forschungsabteilung Judenfrage [Departamento de Pesquisa da Questão Judaica] era um instituto que tinha como objetivo legitimar as políticas antissemitas do regime. Era um ramo do Reichsinstitut für die Geschichte des neuen Deutschland [Instituto Nacional para a História da Nova Alemanha] do historiador nazista Walter Frank.[14] O instituto pretendia justificar o desejo da Alemanha de afirmar seus direitos sobre o mundo, de rebaixar seus inimigos por meio da “ciência” e de criar as bases intelectuais sobre as quais o Terceiro Reich repousaria por mil anos. Assim como o Império Romano, o protótipo em que o nacional-socialismo se baseava, não era formado apenas por exércitos e arquitetos, mas também por historiadores e poetas, o Reich de Mil Anos não seria construído apenas com pedras, mas também com palavras.
Nessa guerra, os livros teriam menos o papel de vítimas, e mais o de armas. Os nazistas queriam derrotar seus inimigos não apenas no campo de batalha, mas também no campo das ideias. Essa vitória perduraria muito depois da morte, depois dos genocídios e do Holocausto. Não se tratava apenas de aniquilar, mas também de justificar suas ações. O que garantiria o triunfo dos nazistas não era a destruição da herança literária e cultural de seus inimigos – era seu sequestro, sua posse e sua distorção, que possibilitariam fazer com que as bibliotecas e arquivos, a história, a herança e a memória desses grupos se voltassem contra eles mesmos. Era se apropriar do direito de escrever a história desses grupos. Foi um conceito que deu início ao maior roubo de livros da história do mundo.