CAPÍTULO 2

Fantasmas na Berliner Stadtbibliothek

Berlim

Sou guiado por um longo corredor deserto, cujas paredes estão pintadas em um tom de amarelo-mostarda desbotado pelo sol. Aqui e ali há quadros em molduras finas, reproduções sem alma que normalmente são vistas em hospitais ou repartições de baixo escalão. O corredor leva a uma sala que parece não ter nenhum tipo de propósito, a não ser servir de ligação com mais corredores amarelos-mostarda que levam a várias direções. O prédio tem algo de labirinto, parece não ter sido planejado, como o centro de uma cidade medieval. Isso pode ser explicado. A biblioteca central de Berlim, a Zentral- und Landesbibliothek, nas proximidades da Bebelplatz, foi construída sobre as ruínas da Berliner Stadtbibliothek, sua antecessora. O prédio imponente, na ilha em meio ao rio Spree, foi atingido por bombas durante a guerra e acabou praticamente destruído. Depois da guerra, a biblioteca, que ficava na zona soviética, foi reconstruída a partir das ruínas. Hoje o prédio é um tanto esquizofrênico, com sua grandiosa fachada neoclássica e interiores apertados à maneira da Alemanha Oriental, contrastando com outras áreas que foram modernizadas.

Sebastian Finsterwalder para perto de uma das portas pintadas de cinza pelas quais passamos e pega uma chave. Sebastian, pesquisador na biblioteca, está na casa dos trinta anos, com cabelos despenteados na altura dos ombros, um cinto ornamentado, tênis com solas amarelo-neon e luvas de couro com as pontas dos dedos cortadas. Ele parece alguém que acaba de sair de uma das boates de Kreuzberg. Sebastian sorri para mim enquanto abre a porta e inala de modo teatral o cheiro de uma biblioteca abandonada: ar empoeirado, couro seco e papel amarelo desbotado. A sala inteira está lotada de livros, com filas de estantes abarrotadas de lombadas gastas. Enquanto andamos por um dos corredores, preciso virar de lado para conseguir passar entre os livros, que roçam na minha barriga.

“Agora na verdade está organizado. Quando a gente chegou tinha livro empilhado em todo canto. Espalhados pelo chão, de qualquer jeito. Por décadas, as pessoas simplesmente jogaram os livros nesta sala. Tinha quarenta mil livros aqui. Levou meses para ver tudo”, ele me diz, mostrando uma prateleira em que cada livro está marcado com um papelzinho e um número.

“Estes são alguns dos livros que a gente acha que foram roubados”, diz Sebastian, estendendo o braço para a prateleira, que tem uns vinte metros de comprimento, indo de um extremo da sala até o outro.

Hoje ninguém sabe exatamente quantos livros saqueados há na Zentral- und Landesbibliothek em Berlim. Sebastian Finsterwalder me mostra uma sala depois da outra, todas tão apinhadas de livros quanto a primeira. Há livros roubados em cada canto do enorme prédio – a maior biblioteca pública da Alemanha. A maior parte ainda não foi separada do acervo geral, que tem mais de três milhões de volumes. E dezenas de milhares ainda não foram encontradas.

Nada na superfície diferencia esses livros dos demais. Entre eles há contos de fadas; romances; poesia; livros sobre fungos, aviões e engenharia; livros de partituras; dicionários; e textos religiosos. Para entender que há algo diferente é preciso abri-los e olhar lá dentro. É comum que as primeiras páginas sejam reveladoras.

É possível encontrar um carimbo com tinta vermelha ou preta. Ou um ex-líbris ricamente ilustrado, uma folha de papel personalizada colada pelo dono em algum ponto do livro. Normalmente isso é um indício de que o volume faz parte de um acervo maior. Às vezes também se encontra uma dedicatória, uma assinatura, ou um desejo de boa sorte – como em uma edição alemã de No coração da África, sobre a saga do explorador britânico Henry M. Stanley, no qual essa dedicatória foi escrita com uma bela caligrafia:

Para meu amado Rudi, no seu aniversário de treze anos,
Da Mamãe
25.10.1930.

Segundo Sebastian, o livro provavelmente pertencia a Rudi Joelsohn, nascido em Berlim em 1917. Em 15 de agosto de 1942, ele foi deportado para Riga, onde foi assassinado três dias depois.[1]

Olhando com cuidado a folha de rosto, também é possível ver uma letra críptica, mas reveladora, escrita a lápis: J. Uma abreviação que denuncia o que se passou e revela o destino do proprietário: Judenbücher [livros de judeus].

Sebastian me leva até sua sala, onde encontramos um sujeito mais velho com aparência de integrante de alguma banda punk alemã antiga. Ele desafia o calor abafado de julho com uma camisa de flanela grossa e um gorro tricotado. Seu nome é Detlef Bockenkamm, um bibliotecário especializado no acervo de história da instituição. Ele também foi a primeira pessoa a começar a escavar o desagradável passado da biblioteca. Hoje existe uma equipe pequena, mas dedicada, de pesquisadores que tentam deixar as coisas mais claras e decifrar certos aspectos dos complicados antecedentes da biblioteca. Juntos, eles rastrearam e examinaram manualmente dezenas de milhares de livros do acervo. Ao longo de uma das paredes da sala ficam alguns dos resultados desse trabalho. Sobre uma prateleira envernizada os livros ficam em pilhas e em cada pilha há um papel com um nome: Richard Kobrak, Arno Nadel, Ferdinand Nussbaum, Adele Reifenberg, entre muitos outros. São livros cujos donos Bockenkamm e Finsterwalder conseguiram identificar.

Reconheço um dos nomes, na parte de baixo de uma pilha de cinco volumes: Annæus Schjødt era um advogado norueguês que combateu na resistência e fugiu para a Suécia em 1942. Foi Schjødt que, depois da guerra, atuou como o principal responsável pela acusação de Vidkun Quisling e conseguiu sua condenação à morte. Bockenkamm e Finsterwalder ainda não encontraram qualquer documento que explique como e quando esses livros foram saqueados. Mas de modo mais ou menos rudimentar conseguiram adivinhar o que aconteceu. Os exemplares devem ter sido roubados da casa de Schjødt depois de sua fuga, ou pela Gestapo ou por alguma outra organização nazista, e depois enviados para a Alemanha. Quase certamente faziam parte de um acervo maior encontrado na casa de Schjødt. Em Berlim, a coleção se dispersou, e alguns livros foram doados ou vendidos para a Berliner Stadtbibliothek. O roubo dos livros de Schjødt não foi nem um pouco incomum. Sobre essas prateleiras há livros de todas as partes da Europa – onde quer que os nazistas tenham estado ativos e ocupados com seus saques.

Se compararmos com a pilhagem de obras de arte, esses livros roubados atraíram muito menos atenção. Apenas nos últimos anos a questão passou a causar algum interesse público na Alemanha. A Zentral- und Landesbibliothek Berlin, graças a Detlef Bockenkamm, foi uma das primeiras bibliotecas a investigar o problema. No início dos anos 2000 ele estava trabalhando em uma tese sobre a grande coleção de ex-líbris encontrados na biblioteca. Os ex-líbris tinham sido recortados dos livros da biblioteca, muitas vezes no momento em que deixavam de fazer parte do acervo. Bockenkamm encontrou centenas de ex-líbris com nomes e símbolos judaicos, o que o levou a pensar como esses livros tinham chegado à biblioteca. Ele também começou a encontrar alguns exemplares cuja origem, para dizer o mínimo, era excepcional.

Em 2002 ele recuperou cerca de setenta e cinco livros que traziam um carimbo com a inscrição “Karl-Marx-Haus Trier”, um museu fundado pelo Partido Social-Democrata Alemão, que já havia sido banido em 1933, e cujos membros foram presos, assassinados ou forçados a partir para o exílio. Bockenkamm percebeu que esses livros provavelmente haviam sido roubados do partido. Ele começou a procurar por mais exemplares com origem suspeita. Eles estavam em todas as partes do acervo. De início, Bockenkamm fez uma estimativa de que poderia haver 100 mil livros roubados na biblioteca, um número que parecia espantoso, mas que acabou se revelando bastante modesto.

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Nas prateleiras da Zentral- und Landesbibliothek, em Berlim, os livros roubados esperam para ser identificados. Encontrar os descendentes de seus proprietários hoje é normalmente um processo lento e complicado.

Bockenkamm também fez a descoberta desagradável de que seus antecessores não ignoravam a origem dos livros. Pelo contrário: na verdade eles tinham tentado esconder e apagar essa história. Em muitos volumes as páginas iniciais haviam sido arrancadas. Outros traziam marcas de carimbos dos proprietários que haviam sido rasgados ou apagados por bibliotecários. Os livros também foram catalogados com origens forjadas – ou como volumes “sem dono”.

“Tentei falar sobre isso com um antigo bibliotecário que ainda estava bem de saúde e que topou falar. Ele admitiu algumas coisas, mas não tudo. Levou a maior parte dos segredos para o túmulo”, diz Bockenkamm. Ele coloca sobre a mesa um grande livro de registro com capa de papel cinza estriado. Na capa há uma pequena etiqueta branca com a inscrição “1944-1945 Jagor”.

O livro, que Detlef Bockenkamm encontrou em 2005, era o indício mais importante e mais revelador, até então, dos esforços feitos pela biblioteca para encobrir a história. Trazia os títulos de aproximadamente dois mil livros, catalogados no acervo nos dois anos finais da guerra. O nome Jagor era uma referência a Fedor Jagor, o etnologista e explorador alemão que viveu na segunda metade do século XIX. Os livros, portanto, tinham sido marcados com um J. Mas isso era incorreto, já que esses exemplares jamais haviam pertencido a Fedor Jagor. A letra J não significava Jagor, mas, sim, Judenbücher. Registrada com o número 899 no livro está a cópia de Rudi Joelsohn de No coração da África.

Os dois mil livros acabaram se revelando parte de um acervo muito maior de volumes roubados obtidos pela biblioteca durante a guerra. Apesar de a documentação detalhada sobre a administração da biblioteca durante a guerra ter se perdido, parte da correspondência relativa ao acervo sobreviveu. Em 1943, a biblioteca comprou cerca de quarenta mil livros da Städtische Pfandleihanstalt, uma casa de penhores de Berlim, para a qual enormes quantidades de obras haviam sido levadas depois de serem confiscadas de casas pertencentes a judeus deportados. Os exemplares mais valiosos foram reivindicados pela Einsatzstab Reichsleiter Roosenberg (ERR), pela SS e por outras organizações nazistas. O que restou foi levado à casa de penhores para ser vendido. A biblioteca, que entrou em contato com o escritório municipal de Berlim, de início solicitou acervos de livros de “judeus realocados” sem custo. Isso foi negado, já que os volumes pertenciam ao Terceiro Reich e o dinheiro obtido com a venda seria usado para “resolver a ‘questão judaica’”, uma frase que em 1943 só podia ter um significado. Propriedades confiscadas de judeus, numa espécie de projeto autofinanciado, eram usadas para pagar as deportações, os campos de concentração e o assassinato em massa. A biblioteca acabou tendo de pagar 45 mil marcos pelos livros.

O último livro que constava do registro foi catalogado em 20 de abril de 1945. No mesmo dia a artilharia do Exército Vermelho iniciou um terrível bombardeio contra o centro de Berlim, no mesmo momento em que vários outros exércitos começavam a forçar sua entrada na cidade. Era o início do ataque final a Berlim e também uma mensagem para Adolf Hitler, que celebrava seu aniversário de 56 anos na Chancelaria naquele dia.

Berlim estava em ruínas, em outras palavras, assim como a Berliner Stadtbibliothek.

“É extraordinário pensar que havia um bibliotecário sentado aqui no subsolo, catalogando livros roubados”, diz Sebastian Finsterwalder.

Mas na verdade o processo não terminou depois do Dia do Armistício. O registro de livros comprados em 1943, que sobreviveram ao bombardeiro, continua nos anos do pós-guerra como se nada tivesse acontecido. A única diferença é que agora os exemplares não eram mais marcados como Judenbücher, e sim com um G, de Geschenk [presentes].

Bockenkamm descobriu que a catalogação dos volumes comprados da casa de penhores em 1943 continuou até a década de 1990. E quando Bockenkamm e Finsterwalder começaram, poucos anos atrás, a percorrer as salas de depósito da biblioteca, encontraram milhares de livros desse acervo que não haviam sido catalogados. Mas esses não eram os únicos exemplares roubados a ocupar discretamente as prateleiras da biblioteca.

A biblioteca tinha perdido enormes quantidades de livros durante a guerra, alguns deles destruídos nos bombardeios. Grande parte do acervo tinha sido evacuada para a Polônia e para a Tchecoslováquia perto do fim da guerra, onde muitos livros permaneceram e alguns foram roubados pelo Exército Vermelho. O acervo precisou ser reconstruído e certamente houve muitos volumes abandonados numa Berlim que havia sido reduzida a destroços. Depois da guerra, as bibliotecas tiveram confiscados os livros que houvessem pertencido a membros do partido, autoridades públicas, institutos de pesquisa e a outras organizações do Terceiro Reich.

Mesmo livros vistos como “sem dono”, por exemplo, quando encontrados em prédios que haviam sido bombardeados, eram confiscados. Os exemplares supostamente eram recolhidos e separados pela Bergungsstelle für wissenschaftliche Bibliotheken [Organização de Resgate para Bibliotecas Científicas], que tinha sede em um edifício do outro lado da rua em relação à Berliner Stadtbibliothek. A organização etiquetava os livros com um número, dependendo do lugar em que haviam sido recolhidos, antes de redistribuí-los entre várias bibliotecas da cidade.

Na lista da Bergungsstelle havia 209 pontos de recolhimento, mas Finsterwalder, junto com o pesquisador Peter Prölls, um expert na área, conseguiu estabelecer que os livros, na verdade, só eram recolhidos em aproximadamente 130 locais.

“Em certos distritos não havia restado nenhum livro; eles tinham sido arruinados, evacuados ou saqueados”, diz Finsterwalder.

Em uma das paredes de sua sala fica um velho mapa de Berlim, de 1937. Finsterwalder marcou os vários pontos de coleta usando bandeiras de várias cores: verde para os lugares onde os livros eram recolhidos, vermelho para os lugares onde nenhum foi recolhido e azul para os lugares onde ele ainda não sabe o que aconteceu. Finsterwalder está trabalhando com Prölls em um estudo sobre a Bergungsstelle, uma organização cuja função continua, em grande medida, desconhecida. Por meio de um trabalho de detetives da história, eles tentam descobrir como os livros saqueados foram distribuídos. A Berliner Stadtbibliothek acabou se transformando no mais importante destino desses volumes “resgatados”.

“Um dos motivos para termos comprado tantos desses livros foi o fato de o diretor da Bergungsstelle e o chefe da biblioteca serem bons amigos. Os dois eram comunistas e tinham sido presos durante a guerra, por isso havia uma espécie de camaradagem entre eles.”

Parece que na época a origem dos livros era uma questão irrelevante, apesar de muitos terem sido confiscados de algumas das mais criminosas organizações do Terceiro Reich. Livros com a etiqueta “13” vinham do Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels, enquanto os etiquetados com um “7” vinham do Ministério da Aeronáutica de Hermann Göring.[2] Exemplares marcados com um “4” vinham da biblioteca pessoal do arquiteto e ministro de Armamentos, Albert Speer, e os com um “5” vinham da casa do escritor alemão Walter Bloem. Bloem, um dos mais populares escritores alemães no início do século XX, tinha apoiado Adolf Hitler com entusiasmo e chegou a publicar uma eulogia ao Führer.

Na lista da Bergungsstelle também estavam algumas das organizações que se envolveram no saque de livros na Europa ocupada. Exemplares com uma etiqueta escrita “25” eram do gigantesco Reichsministerium für die besetzten Ostgebiete [Ministério Nacional para os Territórios Ocupados no Oriente] de Alfred Roosenberg, que era o ministério responsável por governar os países do Báltico e da União Soviética.

Alfred Roosenberg também usou o ministério para aumentar a influência de sua organização, a ERR, que enviou funcionários para o leste para saquear bibliotecas e arquivos. A organização tinha vários depósitos em Berlim, mas apenas uma fração dos milhões de livros que ela roubou ainda permanecia em Berlim ao final da guerra, já que a maior parte foi evacuada para a atual Polônia.

Muitos dos pontos de coleta listados pela Bergungsstelle como possíveis depósitos de livros já tinham sido saqueados, em muitos casos pelas brigadas do Exército Vermelho, que confiscaram livros por toda a Alemanha.

Depois da guerra, o diretor da Bergungsstelle, Günther Elsner, fez uma visita à abandonada Chancelaria para os Territórios Ocupados do Oriente, onde encontrou no subsolo duzentas grandes caixas de madeira com livros. Quando os funcionários voltaram mais ou menos uma semana depois para pegar os exemplares, as caixas tinham sido abertas à força e a maior parte do conteúdo fora levada.

Um dos maiores depósitos de livros saqueados que acabaram na Bergungsstelle era marcado com o número 15, o que significava que os exemplares vinham do principal concorrente de Roosenberg na caça às bibliotecas europeias. Ou, para ser mais preciso, a enorme biblioteca de livros roubados construída na RSHA, SS-Reichssicherheitshauptamt, em Berlim. Trata-se do Gabinete Central de Segurança do Reich, que coordenava os serviços de política e de inteligência do Terceiro Reich, tanto do Estado quanto do Partido Nazista. A RSHA, controlada por Heinrich Himmler, era a célebre organização terrorista da Alemanha nazista. No seu auge, a organização contava com sessenta mil funcionários, que vigiavam e monitoravam os inimigos do país por meio de vários departamentos, como a Gestapo e a SD (Serviço de Segurança).

Um deles era a Seção VII, o Departamento de Pesquisa e Avaliação Ideológica, que fazia um mapeamento detalhado da atividade dos inimigos do Estado. A Seção VII montou uma biblioteca em um edifício confiscado de uma das maiores lojas maçônicas de Berlim, na Eisenacher Straße, e a alimentou com livros roubados em todas as partes da Europa. O projeto se tornou tão ambicioso que acabou sendo necessário adquirir outros prédios. Estima-se que até três milhões de livros tenham sido enviados a Berlim.[3] Depois da guerra, cerca de quinhentos mil deles foram encontrados na Eisenacher Straße. A maior parte da biblioteca tinha sido evacuada nos anos finais da guerra, e outra parte foi destruída pelos bombardeios aéreos. Parte do que foi encontrado foi devolvida aos países de onde os livros haviam sido retirados, mas um número incerto de volumes também foi distribuído entre as bibliotecas de Berlim.

Sebastian Finsterwalder segura um desses, mostrando para mim a folha de rosto com o número 15 escrito a lápis. É uma biografia de capa azul-claro, em mau estado, do filósofo holandês Baruch Spinoza, de 1790. O ex-líbris do dono também pode ser visto dentro do volume, com uma imagem de um pequeno duende sentado sobre um livro. Ele pertenceu ao autor e jornalista judeu alemão Ernst Feder, ativo nos círculos intelectuais da República de Weimar. Depois que os nazistas chegaram ao poder, Feder fugiu primeiro para Paris e depois, após o início da guerra, para o Brasil, onde acabou fazendo parte do círculo de Stefan Zweig, no Rio de Janeiro. O motivo para que esse livro em particular tenha acabado na biblioteca da RSHA provavelmente tem mais a ver com o tema do que com o dono: Spinoza era um filósofo judeu. O objetivo da biblioteca da RSHA era coletar livros, publicações e arquivos que pudessem auxiliar a SS e a SD a estudar, em profundidade, os inimigos do país: judeus, bolcheviques, maçons, católicos, poloneses, homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová e outros grupos minoritários.

Como a Bergungsstelle etiquetava os livros com números, dependendo do lugar de origem, Detlef Bockenkamm e Sebastian Finsterwalder conseguiram rastrear milhares deles. Mas a biblioteca também havia adquirido dezenas de milhares de livros de outras fontes após a guerra, e nesses casos não foi possível encontrar suas origens. Até 2002, quando Bockenkamm notou pela primeira vez a presença dos livros saqueados, as bibliotecas compravam acervos sem investigar sua origem.

O esforço de Bockenkamm e de Finsterwalder para localizar os livros saqueados no acervo da Zentral- und Landesbibliothek Berlin foi um trabalho de Sísifo, tanto em um sentido administrativo quanto em termos da quantidade de pesquisa que isso demandou, já que um único livro podia exigir semanas de trabalho de investigação. A biblioteca adquiriu acervos de diferentes fontes antes, durante e depois da guerra – e em todos esses acervos podia haver livros roubados.

Era raro que a Berliner Stadtbibliothek adquirisse acervos completos; em geral, ficava com resquícios de diversos acervos. Por isso, os bibliotecários precisavam rastrear diligentemente as origens dos exemplares vindos de milhares de vítimas individuais. Mesmo quando conseguiam estabelecer que um livro tinha sido roubado, nem sempre era possível afirmar como ele havia chegado à biblioteca, quem o roubara e quem era seu dono. Até aqui, eles encontraram 203 livros da biblioteca da RSHA, mas somente 127 têm algum tipo de marca que permite a identificação dos donos anteriores.

Além disso, eles travam um combate retroativo contra seus antigos colegas, que por décadas apagaram, rasgaram ou falsificaram a origem desses livros – tudo para que eles se misturassem ao restante do acervo. No entanto, nem Finsterwalder nem Bockenkamm vão desistir fácil, e eles conseguiram identificar antigos proprietários estudando fragmentos de etiquetas arrancadas dos exemplares e comparando sua cor e tamanho com etiquetas intactas encontradas em outros livros.

Em 2010, a Zentral- und Landesbibliothek deu início a uma investigação sistemática de seu acervo. Junto com seus colegas, Bockenkamm e Finsterwalder examinaram manualmente cerca de 100 mil volumes. De acordo com a estimativa atual de Bockenkamm, pode haver na biblioteca mais de 250 mil livros saqueados.

A parte mais difícil do trabalho não é encontrar os exemplares roubados, é encontrar os seus donos ou seus descendentes. Apenas cerca de um terço dos livros encontrados por Bockenkamm e Finsterwalder tem algum tipo de ex-líbris, assinatura ou carimbo que torne possível estabelecer quem foi seu dono. Mais difícil ainda é encontrar sobreviventes ou seus descendentes para tentar devolver os livros.

De início, eles tentaram encontrar os donos de volume por volume. E, embora em certos casos tenham conseguido, no fim das contas o trabalho acabou se revelando demorado demais. Em 2012, eles começaram a trabalhar com um banco de dados com informações e imagens do livro roubado, e no qual é possível fazer buscas.

“Estamos tentando fazer com que os descendentes nos procurem, ao invés de irmos até eles. O banco de dados permite buscas pelo Google, assim, muita gente que faz pesquisa genealógica acaba nos encontrando. Está funcionando; devolvemos livros todos os meses”, diz Finsterwalder.

O banco de dados atualmente contém 15 mil livros, e novos títulos são acrescentados o tempo todo. Levará anos para que todos os livros estejam registrados.

No entanto, os recursos são escassos. O projeto é apoiado pela Prefeitura de Berlim e pelo Arbeitsstelle für Provenienzforschung, uma organização federal que financia pesquisas genealógicas. Porém, a alocação de dinheiro para o projeto precisa ser renovada periodicamente.

“Um período de dois anos é suficiente apenas para começar a entender como devemos fazer o trabalho. Precisamos partir do zero, porque ninguém sabe como fazer isso. Bibliotecas raramente tiveram interesse em rastrear a origem de seus livros, normalmente se interessam apenas por seu conteúdo, e etiquetas e assinaturas não são registradas”, diz Finsterwalder.

Ele diz que o nível de interesse no trabalho com os livros saqueados, tanto da parte das autoridades locais quanto por parte das bibliotecas, continua insignificante, e que a maior parte das bibliotecas e das instituições da Alemanha tende a ignorar o tema.

“Não há nem vontade política nem recursos para realmente fazer algo em relação a isso. De milhares de bibliotecas alemãs, apenas cerca de vinte investigaram ativamente seu acervo. Não há colaboração, cada biblioteca faz sua própria pesquisa. As pessoas estão mais interessadas em obras de arte, por serem tão valiosas”, diz Finsterwalder, melancólico.

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Sebastian Finsterwalder me mostra um registro que lista cerca de dois mil livros roubados catalogados durante a guerra. Os livros foram marcados com a letra J, uma abreviação de Judenbücher.

Os livros que foram parar na Berliner Stadtbibliothek, salvo poucas exceções, não têm muito valor financeiro. São exemplares normais que pertenciam a pessoas normais: romances, livros infantis, livros de partituras – livros que podem ser comprados em sebos por poucos euros. Mas é comum que eles tenham um grande valor afetivo quando devolvidos às pessoas.

Entre 2009 e 2014, aproximadamente 500 livros foram devolvidos, uma simples gota no oceano, se lembrar que na biblioteca pode haver 250 mil livros roubados.

“Realmente queremos devolver esses livros. Mas tem pouca gente trabalhando nisso. Do jeito como as coisas são hoje, encontramos quinze mil livros com origem ‘suspeita’ e três mil que definitivamente foram roubados. Levaríamos décadas para encontrar cada descendente, isso quando existe algum descendente”, diz Bockenkamm, enquanto coloca alguns ex-líbris excepcionalmente bonitos em sua mesa. É perceptível que ele tem uma ligação profunda com esses objetos. Conhece cada um deles. Foi por meio dessas imagens que começou a revelar o passado da biblioteca. Ele me mostra um ex-líbris que retrata um anjo lutando contra duas cobras usando um par de lanças. Outro retrata um leão andando ereto, com a língua de fora, e um terceiro traz uma mulher armada com uma pena de ganso, montada num cavalo alado. A maior parte deles também tem a estrela de davi e nomes judeus, como Hirsch, Bachenheimer e Meyer. São obras de arte altamente pessoais, muitas ilustrando eventos das vidas de seus proprietários, e frequentemente também a sua relação com a leitura, a cultura e a literatura. Mas eles também são plenos de simbolismo de um mundo que se perdeu, e de vidas perdidas – ninguém mais é capaz de interpretar seu significado. É um mundo de livros e de leitores que foi aniquilado e se dispersou.

“Pior ainda, é impossível terminar esse trabalho. É impossível! Mas a gente tem que fazer o que é possível”, ele diz.

Muitos dos livros roubados não trazem marcas que possibilitam a identificação de seus donos. Bockenkamm e Finsterwalder não sabem o que irá acontecer nesses casos. Talvez um dia seja possível identificar todos eles, mas isso parece improvável.

“Esses livros são como fantasmas na biblioteca. Sabemos que foram roubados, mas de quem?”, diz Finsterwalder, encolhendo resignadamente os ombros.

Embora só tenha sido possível devolver uma pequena parte do total, Bockenkamm acredita que cada livro devolvido é um ato significativo. Em alguns casos, eles conseguiram devolver exemplares para os próprios sobreviventes do Holocausto. Um deles foi Walter Lachman, um judeu alemão berlinense que era um mero adolescente quando foi deportado com a mãe em 1942 para um campo de concentração na Letônia. A avó foi assassinada, e Lachman foi transferido para o campo de concentração de Bergen-Belsen, onde no mesmo período também estava Anne Frank. Frank morreu, provavelmente de tifoide, apenas um mês antes de o campo ser liberado por forças britânicas, em abril de 1945. Lachman conseguiu sobreviver apesar de ter ficado muito doente de febre tifoide. Depois da guerra ele emigrou para os Estados Unidos.[4] Sessenta e sete anos mais tarde ele recebeu uma ligação de um amigo que tinha lido uma reportagem na revista alemã Der Spiegel sobre os livros saqueados na Zentral- und Landesbibliotekh. Um dos livros que a revista escolheu para mencionar pertencia à infância de Lachman – um exemplar de contos de fadas para crianças judias, que ele ganhara de presente da professora.[5]

“Ele não tinha como vir. Mas a filha veio da Califórnia para pegar o livro. Ele não tinha nada da infância, exceto umas poucas fotos e um boné que usava no campo de concentração. A filha disse que ele nunca falava do passado, mas que isso mudou quando recebeu o livro de volta. Aquilo o fez romper uma barreira e começar a contar a própria história. Agora ele faz palestras em escolas, para crianças”, diz Sebastian Finsterwalder, que acha que esse é apenas um exemplo de por que esse trabalho é tão importante.

“Esse livros são guardiães de memórias. Não têm muito valor financeiro, mas podem ter valor inestimável para as pessoas e para as famílias que eram suas donas antes de se perderem. Em alguns casos, a entrega dos livros foi a primeira vez em que os filhos e netos se depararam com a história de seus pais ou avós. É um processo muito emocionante”, Finsterwalder continua.

“Quando comecei a investigar a história desses livros e procurei na internet os nomes que encontrei neles, os resultados das pesquisas frequentemente indicavam Auschwitz. Toda vez as pistas levavam a Auschwitz. A gente não tem como devolver a vida a alguém, mas talvez seja possível devolver algo. Um livro, e quem sabe uma memória”, diz Detlef Bockenkamm olhando para os ex-líbris espalhados sobre sua mesa.

Olho para o azul intenso do Portal de Ishtar, da Babilônia, que chega até o teto. Mas não tenho tempo para admirar os bois dourados, porque a mulher idosa de cabelos castanhos que me guia passa rápido por eles. Ela já os viu muitas vezes. A poucos metros da Zentral- und Landesbibliothek fica o escritório da Arbeitsstelle für Provenienzforschung, em uma das alas do Museu Pergamon– uma organização federal encarregada de auxiliar e financiar museus, bibliotecas, arquivos e outras instituições que investigam questões relativas a origens ligadas à era nazista.

Sou levado até Uwe Hartmann, um historiador da arte que é chefe do escritório. Hartmann é um sujeito alto, de meia-idade, com um rosto anguloso, cabelos grisalhos bem curtos e óculos com armação só na parte superior das lentes. Ele começou a trabalhar com procedência relacionada a roubo de objetos de arte nos anos 1990, e chefia a organização desde que ela foi criada, em 2008. Em 2013, ele também foi colocado na chefia de uma equipe cuja tarefa era identificar obras saqueadas na célebre coleção – com aproximadamente mil e quatrocentos itens – recentemente encontrada em Munique com Cornelius Gurlitt, filho de um comerciante de arte que trabalhou para os nazistas.

Hartmann arregaça as mangas. O escritório é abafado, apesar das várias janelas escancaradas. A Arbeitsstelle für Provenienzforschung ajudou a financiar o trabalho em andamento na Zentral- und Landesbibliothek.

“Sabíamos há algum tempo que tínhamos esses livros nos nossos acervos. Percebemos quando pudemos ver com nossos próprios olhos as etiquetas, as assinaturas e os ex-líbris. Falava-se aqui e ali sobre ‘crime no subsolo’. Mas ninguém tinha feito nada quanto a isso”, diz Herrmann.

A Zentral- und Landesbibliothek está longe de ser um caso isolado; ela nem foi uma das bibliotecas que teve papel ativo no saque que ocorreu na Alemanha. A biblioteca não recebeu nem a maior parte dos livros nem os exemplares mais valiosos durante o Terceiro Reich. Algumas outras bibliotecas, especialmente aquelas com perfil mais acadêmico, foram amplamente priorizadas pelos nazistas. Ao contrário do que acontecia com bibliotecas públicas como a Berliner Stadtbibliothek, bibliotecas universitárias e de centros de pesquisa fechadas ao público, em geral, também podiam receber livros “proibidos” que haviam sido pilhados.

Uma biblioteca desse tipo que teve um papel muito ativo no saque foi a prestigiada Preussische Staatsbibliothek, hoje conhecida como Staatsbibliothek zu Berlin – a maior biblioteca da Alemanha, cujas origens remontam ao século XVII. Seu acervo inclui o manuscrito original da 9ª Sinfonia de Beethoven, a maior parte das partituras de Johann Sebastian Bach e o texto bíblico com iluminuras mais antigo do mundo, datado de 400. Durante os anos da guerra, a Preussische Staatsbibliothek conseguiu pôr as mãos em livros consideravelmente mais valiosos do que os que foram para a Berliner Stadtbibliothek. A história da biblioteca veio à tona quando um estudante, Karsten Sydow, revelou em sua dissertação de mestrado, de 2006, que poderia haver cerca de 20 mil livros roubados no acervo histórico.[6] Depois de fazer sua própria pesquisa, a biblioteca conseguiu afirmar que aproximadamente 5,5 mil livros foram, sem sombra de dúvida, roubados.[7] Certamente seriam encontrados mais exemplares não fosse pelo fato de que o Exército Vermelho, por sua vez, também saqueou a biblioteca. Estima-se que dois milhões de livros do acervo da biblioteca tinham sido levados para a União Soviética, incluindo a maior parte dos livros e manuscritos judeus e em hebraico.[8]

A Preussische Staatsbibliothek também teve papel importante como canal de distribuição para livros roubados no Terceiro Reich. Havia uma óbvia política de distribuição para milhares de bibliotecas e arquivos que eram roubados na Alemanha e nos territórios ocupados. Os acervos mais importantes, considerados relevantes para o trabalho ideológico, eram divididos entre a RSHA de Heinrich Himmler e a ERR de Alfred Roosenberg. As duas organizações muitas vezes acabaram disputando entre si para ficar com os acervos mais importantes.

Além dessas, havia uma série de outras organizações nazistas, institutos e departamentos do governo que competiam para pôr as mãos nos volumes saqueados e montar suas próprias bibliotecas. Depois vinham bibliotecas, universidades e outras instituições nacionais.

Depois de os nazistas terem chegado ao poder, a Preussische Staatsbibliothek recebeu a atribuição de distribuir livros roubados de judeus, socialistas, comunistas e maçons na Alemanha. Numa fase posterior à guerra, a biblioteca continuou fazendo o mesmo com livros pilhados na França, Polônia, União Soviética e outras áreas ocupadas.

A Preussische Staatsbibliothek distribuía livros para mais de trinta bibliotecas universitárias alemãs.[9] Mas as bibliotecas também conseguiam livros de outros modos. Muitas vezes, as bibliotecas regionais recebiam uma fatia do bolo quando a Gestapo e outras seções do partido atacavam organizações proibidas. Os livros eram doados a bibliotecas municipais como “presentes do partido”. Não era raro que os bibliotecários locais soubessem muito bem quais eram os melhores acervos da região, os que valiam a pena obter. No entanto, também havia compras de livros, como no caso da Berliner Stadtbibliothek, que adquiria volumes da casa de penhores municipal ou em “leilões judaicos”, nos quais judeus que estavam fugindo tinham como única opção vender seus pertences por uma fração de seu valor real.

“É difícil estimar até que ponto os livros circularam desse modo, porque se dispersaram e foram reagrupados a partir de um número enorme de acervos alemães. Por exemplo, nos anos 1960, a Alemanha Oriental vendeu muitos livros para a Alemanha Ocidental, por razões econômicas, para conseguir moeda ocidental. Esses exemplares foram entregues a universidades recém-criadas no Ocidente. Hoje é possível encontrar nesses acervos muitos livros que foram roubados de judeus, comunistas e maçons”, explica Uwe Hartmann.

“Várias das maiores bibliotecas da Alemanha começaram a examinar seus acervos até certo ponto. Mas temos oito mil bibliotecas menores e só uma delas se inscreveu para receber recursos para examinar sua coleção. Há uma quantidade de trabalho enorme pela frente.”

A maior parte das bibliotecas alemãs ainda não mostrou interesse ou disposição para começar a procurar livros roubados em seus acervos. Quando um expert em propriedades roubadas enviou formulários para seiscentas bibliotecas, apenas 10% decidiram responder.[10] Além de uma relutância geral para enfrentar o problema, também há a questão dos recursos limitados, que tende a impedir que as coisas avancem. Também não existe na Alemanha nenhuma lei que obrigue as instituições a investigar seus acervos, embora já se tenha proposto algo do gênero. O trabalho é voluntário.

De início, a instituição de Hartmann tinha um orçamento de um milhão de euros para distribuir, que foi ampliado para dois milhões de euros em 2012. Esse dinheiro, no entanto, precisa ser compartilhado entre todas as instituições culturais, e a maior parte da verba vai para museus. Até 2013, a instituição financiou 129 projetos, dos quais 90 eram museus e somente 26 eram bibliotecas. A instituição também exige que o financiamento tenha uma contrapartida, o que leva muitas bibliotecas menores a dizer que não têm como participar.

“Infelizmente, o interesse da imprensa pelas obras de artes é muito maior do que pelo caso dos livros. Uma obra-prima recuperada, que pode valer milhões, rende manchetes, enquanto um único livro jamais vai ter essa repercussão, mesmo em casos altamente emocionais.”

Uwe Hartmann fala de outro problema com livros.

“Objetos de arte normalmente têm uma origem. Obras antigas podem ser encontradas em catálogos de exposições, registros de leilões, e são citadas por críticos de arte. É possível rastreá-las. Dificilmente isso acontece no caso dos livros. Se não houver etiquetas neles, é difícil saber de onde vieram. Livros raramente são únicos. O trabalho exigido é imenso.”

Ninguém tem como estimar o número de livros roubados escondidos nas bibliotecas da Alemanha hoje.

“Essa é uma pergunta muito difícil de responder. Milhares de bibliotecas alemãs nem avaliaram seus acervos ainda. São milhões de livros que precisam ser checados manualmente.”

Não é fácil determinar quantas bibliotecas foram saqueadas. Milhares das que foram roubadas jamais foram restabelecidas e seus livros nunca foram devolvidos. Também não há registros e catálogos que possam nos dizer o tamanho de suas coleções, ou o que havia nelas. Por exemplo, antes de os nazistas chegarem ao poder na Alemanha havia no país milhares de “bibliotecas do povo”, criadas por sindicatos, organizações socialistas e pelos sociais-democratas. No total, havia mais de um milhão de livros nessas bibliotecas. A maior parte jamais foi devolvida.

Milhões de livros foram roubados de lojas maçônicas, obrigadas a se dissolver depois de os nazistas chegarem ao poder. Em 1936, um acervo montado pela SS apenas com obras de lojas maçônicas alemãs tinha de 500 mil a 600 mil volumes.[11] Esses livros estavam fadados a acabar na biblioteca do Conselho de Segurança Nacional, numa época em que vários órgãos de segurança do país estavam reunidos sob o controle executivo da RSHA, no fim dos anos 1930.

No entanto, mesmo esse roubo foi modesto quando comparado aos saques realizados pelos nazistas em toda a Europa. Somente na França, a ERR confiscou os acervos de 723 bibliotecas, contendo mais de 1,7 milhão de livros, dezenas de milhares de manuscritos antigos e medievais, incunábulos e outros volumes e escritos valiosos.[12]

Na Polônia, provavelmente o país mais atingido, estima-se que 90% dos acervos de escolas e bibliotecas públicas tenham se perdido. Além disso, 80% dos acervos privados e das bibliotecas particulares desapareceram. Segundo uma estimativa, 15 milhões dos 22,5 milhões de livros poloneses sumiram, mas não fica claro quantos desses foram roubados, perdidos ou destruídos durante a guerra.

É mais difícil estimar o tamanho do saque na União Soviética. De acordo com a maioria dos cálculos disponíveis, as perdas são quase astronômicas. Segundo uma sugestão da Unesco, até 100 milhões de livros foram destruídos ou pilhados na antiga União Soviética.[13]

Nem todos os livros roubados acabaram em acervos nazistas depois da guerra. A maior parte dos enormes acervos que os nazistas obtiveram por meio de saques acabou sendo roubada novamente, se espalhou para outros lugares e desapareceu. Acima de tudo, as potências que venceram a guerra se serviram à vontade. A Biblioteca do Congresso em Washington enviou uma delegação especial à Alemanha que remeteu para os eua mais de um milhão de livros.[14]

O Exército Vermelho acabou confiscando mais de dez milhões de livros. Ninguém sabe quantos livros foram destruídos pelos ataques aéreos. As bibliotecas localizadas nos centros das cidades eram vítimas facilmente inflamáveis dos bombardeios incendiários dos Aliados. No total, acredita-se que algo entre um terço e metade dos acervos alemães se perdeu em consequência dos incêndios, bombardeios e saques.

Entretanto, apesar de todas essas perdas, quantidades enormes de livros saqueados permaneceram nas bibliotecas alemãs. Muitas, como no caso da Zentral- und Landesbibliothek, preencheram as lacunas em suas coleções com livros de diversas organizações nazistas. O historiador alemão Götz Aly estimou, em 2008, que havia pelo menos um milhão de livros roubados nas bibliotecas alemãs.[15] Era uma estimativa conservadora, e provavelmente o número real seja muito mais alto. Assim como no caso da Zentral-und Landesbibliothek, os números tendem a crescer quando a biblioteca começa a investigar seu próprio acervo. Quando pergunto a Uwe Hartmann quanto tempo levaria para analisar todos os acervos de livros da Alemanha, ele responde com um sorriso.

“Quando dou aula, normalmente falo para meus alunos que isso é algo que vai levar a vida toda deles. Vai levar muitas, muitas décadas ainda. A próxima geração que assumir as bibliotecas e museus também será obrigada a lidar com isso. Esses objetos carregam uma história que não podemos ignorar.”