Munique
À primeira vista, o colosso amarelo na Ludwigstraße, em Munique, parece uma fortaleza ameaçadora, com fachadas sem ornamentos e janelas pequenas, em fendas. O edifício grande e maciço, que abriga a Bayerische Staatsbibliothek, ocupa um quarteirão inteiro. O historiador Stephan Kellner, um sujeito com cabelos negros eriçados e um brinco em uma das orelhas, me encontra na entrada.
“Esse é o caminho mais fácil”, ele diz, me guiando pela fortaleza. Contornamos o prédio, cruzamos o parque malcuidado que fica atrás da biblioteca. Na extremidade há uma casa pequena, revestida até certa altura com heras. Do outro lado, vê-se o Jardim Inglês, onde em 1937, Adolf Hitler inaugurou seu museu, o Haus der Deutschen Kunst. Nos últimos dez anos, nessa pequena casa atrás da Bayerische Staatsbibliothek, Kellner e seus colegas examinam o enorme acervo da biblioteca, com foco nos roubos ocorridos no período do Terceiro Reich. O acervo, de cerca de dez milhões de volumes, foi construído com base na Biblioteca Estadual da Baviera e, já no século XVI, era considerada a melhor biblioteca ao norte dos Alpes. Seu acervo histórico é um dos mais renomados do mundo, com uma das maiores coleções de livros impressos antes de 1500, os chamados incunábulos. Mas como tantas outras bibliotecas alemãs, a Bayerische Staatsbibliothek também carrega um fardo pesado de objetos roubados.
“Isso não é um hobby para mim, é uma espécie de obrigação. Tem a ver com a história da minha família; meu avô era judeu. Ele viveu aqui, mas foi forçado a emigrar para a Colômbia. É por isso que vejo como um dever pessoal trabalhar nisso”, Kellner diz, me levando a uma sala onde livros foram colocados de modo muito organizado sobre uma grande mesa.
Antes da visita, mandei a Kellner uma lista de desejos, porque, na verdade, a Bayerische Staatsbibliothek é dona de uma coleção singular – alguns dos primeiros livros roubados pelos nazistas. Como a biblioteca ficava exatamente na cidade em que o nacional-socialismo nasceu, uma cidade que desde 1936 foi governada por Rudolf Buttmann, o nazista que tinha a carteira número quatro de integrante do partido, a Bayerische Staatsbibliothek teve oportunidades particularmente boas para participar da pilhagem. Algumas das primeiras coleções que chegaram aqui nos anos 1930 pertenciam às mais destacadas famílias judias em Munique. Também vieram livros de grupos religiosos, lojas maçônicas e outros grupos atacados pelos nazistas.
“Foram poucas as bibliotecas completas que acabaram aqui. Os bibliotecários basicamente escolhiam os livros mais raros, as primeiras edições do século XVIII ou cópias de obras que a biblioteca não tinha”, Kellner me diz.
Livros do acervo particular de Thomas Mann, entre outros, acabaram na Bayerische Staatsbibliothek. Esses foram roubados da casa do escritor, que fica bem perto da biblioteca, às margens do rio Isar, do outro lado do Jardim Inglês. Enquanto estava fora do país dando uma palestra na primavera de 1933, Thomas Mann soube de uma onda de prisões de intelectuais na Alemanha. Sua família aconselhou-o a não voltar, e Mann se estabeleceu temporariamente na Riviera Francesa. Seis meses depois, a casa de Mann na Poschingerstraße foi confiscada.[1]
Depois do fim da guerra, o Exército americano entregou um acervo que era uma verdadeira colcha de retalhos com cerca de trinta mil volumes à Bayerische Staatsbibliothek. Alguns deles estavam dispostos à minha frente, abertos nas primeiras páginas, e essa foi a primeira vez que vi certos carimbos que não deixam muita dúvida ou espaço para interpretação. Na folha de rosto de um livro intitulado Polnische Juden [Judeus poloneses] vi um texto em tinta de carimbo preta: “Reichinstitut für die Geschichte des neuen Deutschland” [Instituto Nacional para a História da Nova Alemanha, chefiado pelo historiador Walter Frank]. Esse texto circunda o brasão do estado nazista, uma águia de asas abertas segurando nas garras uma grinalda decorada com suásticas. No livro Das Deutsche Volksgesicht [O rosto do povo alemão] há outro carimbo da águia alemã, dessa vez maior, oval e circundada pelas palavras “Ordensburg Sonthofen Bibliothek”, uma das escolas de elite do Partido Nazista. É um livro de fotografias, com muitas imagens em preto e branco mostrando rostos de alemães enrugados, com expressões sérias, muitos deles de perfil com o nariz delineado claramente. O último carimbo que vejo nos livros em exposição é bem mais simples – um retângulo azul com o texto “Politische Bücherei. Bayerische Politische Polizei” [Biblioteca Política. Polícia Política da Baviera].
Os livros sobre a mesa são fragmentos, cacos do início de uma história que mostra a ambição que acabaria levando ao maior roubo de livros do mundo. Talvez seja possível ver nesses livros resquícios arqueológicos desse plano, que partiu de institutos de pesquisa e de escolas de elite e se tornou uma guerra ideológica conduzida por órgãos policiais. É possível descrevê-los como “cacos iniciais” porque esses carimbos representam as primeiras tentativas do regime de estabelecer um programa ideológico de aquisição de conhecimento, que se propunha não só a estudar seus inimigos, mas também a construir uma nova cultura de base ideológica de pesquisa e educação no Terceiro Reich.
À medida que o tempo passava, esses esforços fragmentários se ampliavam e eram substituídos por projetos cada vez maiores e mais ambiciosos, acompanhando o rápido êxito do Terceiro Reich.
A característica comum desse modo de ver as coisas era uma obsessão frenética pela aquisição e pela posse do conhecimento. Os livros sobre a mesa são sobras, componentes de uma série de novas bibliotecas que o regime nazista tinha começado a construir no início da década de 1930.
Como esse acervo de livros de organizações completamente distintas foi reunido e acabou na Bayerische Staatsbibliothek continua sendo um mistério até hoje, de acordo com Stephan Kellner. O mais provável é que os livros tenham sido confiscados pelos Aliados ocidentais de várias instituições, autoridades e organizações do Terceiro Reich. Muitos dos livros foram levados para os Estados Unidos, enquanto outros foram entregues a bibliotecas alemãs para reconstruir o que havia sido destruído durante a guerra.
“Vemos muitos carimbos nessa coleção, de diversas organizações do Terceiro Reich. Havia conflitos constantes e rivalidades por causa desses livros. Construir uma biblioteca própria virou uma espécie de indicador de status no movimento nazista. Colecionar livros era uma mania. O fundamento disso está na ideia da ideologia totalitária, no desejo de controlar todos os aspectos das vidas dos cidadãos. O mesmo pensamento totalitário se aplicava às ciências, em que houve uma tentativa de redefinir todas as áreas. Tudo tinha de ser nacional-socialista. Tudo, em todo lugar. Eles não só se esforçavam para substituir estruturas e sistemas antigos como também queriam criar modelos totalmente novos. Não bastava ‘nazificar’ uma universidade tradicional. Eles tinham que fundar uma nova escola, em um novo prédio, com um nome novo e ensinar uma nova ideologia”, Stephan Kellner me diz, antes de passar ao significado de Mein Kampf na sociedade alemã. “Essa necessidade de substituir tudo, de fazer tudo do zero, tinha aspectos quase religiosos. Antes os casais recebiam uma Bíblia de presente no casamento, mas agora se dava um exemplar de Mein Kampf. Esse é um exemplo de até que ponto eles estavam dispostos a ir.”
Os livros carimbados são uma clara expressão dessa necessidade totalitária. O carimbo da Bayerische Politische Polizei (BPP) em um estudo antropológico sobre cuidados na infância indígena chamou a minha atenção, por sugerir que as forças de segurança tinham ambições maiores do que simplesmente estudar comunistas e grupos politicamente subversivos. Na verdade, essa organização de polícia política seria um dos primeiros elementos na construção do órgão que levaria essa filosofia mais longe no Terceiro Reich: a Schutzstaffel, abreviada como SS.
A Bayerische Politische Polizei originalmente fazia parte do sistema policial descentralizado da República de Weimar, no qual os estados tinham seus próprios departamentos de polícia secreta independentes. Esse sistema policial mudaria radicalmente no Terceiro Reich. Quando os nazistas chegaram ao poder em 1933, a BPP em Munique se viu com um novo chefe: um agrônomo de 33 anos chamado Heinrich Himmler.
Himmler cresceu em uma família conservadora católica em Munique. Ele era visto pelos amigos na escola como uma pessoa introspectiva, que não se sentia confortável em sociedade e que não gozava de boa saúde, tendo problemas estomacais que o incomodariam pelo resto da vida. Apesar disso, ele tentou seguir a carreira militar. Para sua grande decepção, jamais teve tempo de ir para o front antes do Armistício, e acabou optando por cursar Agronomia na Universidade Técnica de Munique.
Himmler admirava os Freikorps, que esmagaram os comunistas em Munique. Ele começou a se interessar pelos pontos de vista da extrema direita, definidos pelo antissemitismo, militarismo e nacionalismo, ao mesmo tempo que desenvolvia profundo interesse por religião, ocultismo e mitologia alemã. Ele entrou para o NSDAP em 1923, recomendado por Ernst Römm, a quem conhecia dos círculos da extrema direita da cidade. Röhm era um herói de guerra condecorado e cofundador e líder do braço paramilitar do partido, conhecido como SA.
Himmler foi lançado diretamente na agitação que se seguiu ao fracassado Putsch da Cervejaria. Ele conseguiu evitar a prisão e ascendeu rapidamente no vácuo criado enquanto o partido era posto na ilegalidade e seus líderes fugiam ou eram presos. Quando o NSDAP foi refundado em 1925, Himmler se tornou membro da SS, um pequeno corpo de guarda-costas de elite dentro da SA cujo principal objetivo era proteger Adolf Hitler de ameaças – incluindo as que vinham de dentro do movimento. De início, essa pequena organização era composta apenas por uma dúzia de homens, mais ou menos. Himmler não era soldado, mas demonstrou talento notável para burocracia, organização e planejamento. Ele também parecia ter uma visão clara sobre o que deveria ser a SS. Em 1927, ele contou a Hitler sobre seus planos de transformar a SS em uma força de elite racialmente pura, um grupo leal militarmente, e em uma ponta de lança ideológica que responderia diretamente ao Führer.[2] Hitler viu nos planos de Himmler uma forma de criar um contraponto à força da SA, que tinha crescido de modo quase incontrolável durante a República de Weimar.
Com apoio de Hitler, Himmler ascendeu rapidamente dentro da SS, e em 1929 foi nomeado Reichsführer-ss, o chefe da organização. A essa altura a SS mal tinha 300 membros. No fim de 1933, teria mais de 200 mil membros.[3]
Diferentemente da SA, que recrutava seus membros principalmente na classe trabalhadora, Himmler preferiu homens bem-educados da classe média. Ele via a SS como uma elite racial e intelectual. Para ser aceito como membro, era preciso conseguir comprovar uma árvore genealógica inquestionavelmente ariana que remontasse a 1750. Normalmente dava-se preferência a pessoas com conhecimento legal, por exemplo. Também era importante ser implacável, fanático, leal e brutal.
A SS foi permeada pelo interesse pessoal que Himmler tinha em história, mitologia e dogma racial. A formação da SS foi inspirada por grupos de elite históricos como os samurais, a Ordem Teutônica e os jesuítas. A SS seria uma classe guerreira ariana cujos integrantes personificariam um novo ser humano, um “super-homem”. Em 1931, Himmler começou a construir o braço de inteligência dentro da SS: a Sicherheitsdienst des Reichsführers-SS – normalmente abreviada como SD.
Depois da transferência de poder em 1933, teve início o processo de fusão da antiga máquina de inteligência da República de Weimar com a rede de inteligência do próprio partido. Na época, a SS recebeu poder virtualmente ilimitado para se expandir e se infiltrar na sociedade alemã. Himmler em breve controlaria todas as forças policiais da Alemanha.[4]
A considerável expansão da SS nos primeiros anos da década de 1930 inevitavelmente colocou-a em rota de colisão com a organização da qual ela tinha se originado, a SA, que em 1933 tinha se transformado na maior força militar da Alemanha, com mais de 3 milhões de membros. Adolf Hitler, suspeitando que Ernst Röhm planejava um golpe para depô-lo, secretamente deu a Himmler a missão de fazer um ataque preventivo à SA. Nos últimos dias de junho de 1934, a SS atacou a liderança da SA, mostrando a eficiência e a brutalidade que se tornariam marcas registradas da organização. Cerca de duzentas pessoas dos altos escalões da liderança da SA foram presas ou assassinadas naquilo que ficou conhecido como a Noite das Facas Longas.
A polícia secreta estadual mudou seu nome para Gestapo, que também era o nome do departamento de polícia secreta de Berlim, criado por Hermann Göring. A essa altura, a SD já tinha transferido seu quartel-general de Munique para a capital. Associada a esse movimento estava a confecção de um inventário de livros confiscados, que indicava que o acervo já passava de 200 mil livros.[5]
Em 1936 uma nova espécie de biblioteca começou a se formar no novo quartel-general da SD em Berlim. Desde que os nazistas chegaram ao poder, a polícia secreta estadual e a SD vinham observando vários setores do mercado livreiro. Absolutamente tudo, de crítica literária, bibliotecas, edição de livros e importação de livros, até a prisão e o assédio de escritores, livreiros, editores e donos de editoras estavam sob escrutínio. Centenas de milhares de livros tinham sido roubadas dos inimigos do regime. Por outro lado, não havia um plano coerente sobre o que fazer com toda essa literatura. Parte dos livros foi doada para bibliotecas, outra parte era capturada por diversas organizações de maneira mais ou menos estruturada. Não obstante, em 1936, a SD oficialmente criou uma biblioteca de pesquisa para literatura politicamente indesejável em Berlim, e bibliotecários foram contratados para começar a catalogar o acervo.[6] Ao mesmo tempo, Himmler emitiu uma ordem para todos os departamentos de polícia secreta da Alemanha. Eles deviam vistoriar seus acervos de livros confiscados e imediatamente enviar esse material para a Zentralbibliothek für das gesamte politisch unerwünschte Schrifttum, uma biblioteca de literatura sobre “políticos indesejáveis”. O conteúdo da biblioteca logo se expandiu, passando a incluir todo tipo de literatura que tivesse algum tipo de ligação com os “inimigos do Reich” – por exemplo, escritores que de um ou outro modo tinham se oposto à ideologia nazista. De acordo com uma testemunha, em maio de 1936 a biblioteca já tinha entre 500 mil e 600 mil volumes.[7]
Depois de 1936, a chegada de novos livros aumentou enormemente como consequência da intensificação geral da perseguição aos “inimigos internos” do Reich. Em meados de 1937, a SD passou a atacar também igrejas e congregações. O regime atacou aquilo que via como “atividade política” dentro da Igreja. Alguns achavam que a Igreja trabalhava contra a ideologia nazista e que portanto deveria ser banida, mas Adolf Hitler não estava disposto a ir tão longe. A perseguição foi mais dura contra católicos, grupos evangélicos e sacerdotes que se opunham ao regime. E depois da anexação da Áustria em março de 1938, a SS comandou uma varredura em todo o país contra inimigos políticos e ideológicos. O Einsatzkommando Österreich, um grupo de comando especial da SD, confiscou bibliotecas e arquivos de organizações, departamentos de governo, partidos, instituições e indivíduos. Em maio a organização enviou um trem para Berlim com cerca de 130 toneladas de livros e documentos confiscados.
No fim de 1938, houve uma onda de novos acréscimos ao acervo, em função de outro evento dramático – a Noite dos Cristais [Kristallnacht]. Em um pogrom que ocorreu em todo o país em novembro de 1938, mais de mil sinagogas foram incendiadas, e mais de vinte mil judeus foram presos e enviados para campos de concentração.[8] Isso também fez surgir uma nova onda de fogueira de livros na Alemanha nazista, dessa vez destinada a queimar literatura religiosa judaica. Em centenas de cidades, bibliotecas de sinagogas foram saqueadas por nazistas e moradores locais, que levaram rolos da Torá, Talmudes e livros de oração para as ruas, rasgaram-nos, pisaram neles e os incendiaram. Assim como em 1933, a destruição da literatura teve um ritual, uma atmosfera festiva que em muitos casos atraiu milhares de espectadores e participantes. Na pequena cidade de Baden, nazistas marcharam pelas ruas com rolos de Torá antes de jogá-los no fogo. Em Viena, bairro judeu, os textos e os artefatos religiosos de várias sinagogas foram empilhados e queimados. Em Hesse, rolos da Torá foram abertos nas ruas, enquanto crianças da Juventude Hitlerista passavam de bicicleta sobre os textos sagrados. E na pequena cidade de Herford, no oeste da Alemanha, crianças usaram os textos para produzir confetes para uma festa popular. Em outros lugares, os textos judaicos supostamente foram usados como papel higiênico, ou como bola para jogos de futebol. Em Frankfurt, judeus foram forçados a rasgar e queimar rolos da Torá e outros escritos religiosos.[9]
Mas apesar da gigantesca destruição, muitos acervos foram salvos por uma mão inusitada. Assim como em 1933, quando as partes mais importantes da biblioteca e do arquivo do Institut für Sexualwissenschaft foram salvas das chamas pela SA, algumas das coleções judaicas mais importantes escaparam da pilhagem generalizada da Noite dos Cristais. Por uma ordem secreta, vários arquivos e bibliotecas especialmente valiosos foram removidos.[10] Mais de 300 mil livros de setenta diferentes congregações judaicas, incluindo a Israelitische Kultusgemeinde, no bairro Viena, e o Seminário Teológico Judaico de Breslau, foram confiscados e levados para Berlim.
Em 1939, houve uma ampla reorganização do crescente aparato de segurança do regime, o que levou à criação do Escritório Central de Segurança do Reich: Reichssicherheitshauptamt (RSHA), uma superorganização em que instituições policiais e de inteligência como a Gestapo, a SD e a Kriminalpolizei eram reunidas para combater os inimigos do Estado. A biblioteca que a SD havia começado a construir em Berlim acabou no novo departamento Amt II (segundo escritório) da RSHA, encarregado da investigação de inimigos políticos. Franz Six, um SS-Brigadeführer, foi escolhido para chefiar a seção. Como chefe do Amt II, Six descreveu da seguinte maneira o propósito da biblioteca: “Para compreender as armas espirituais de nossos inimigos ideológicos, é necessário mergulhar a fundo nos escritos por eles produzidos”.[11] No entanto, essa biblioteca de pesquisa em breve passaria para uma seção completamente diferente da RSHA, da qual Franz Six ficou encarregado. O escritório sete, Seção VII, era uma divisão de pesquisa mais especificamente dedicada à “pesquisa e avaliação ideológica”.[12]
Somente com o início de guerra a RSHA tem sua grande oportunidade de saquear livros. No fim de 1939 chegaram os primeiros despojos, seis vagões cheios de literatura judaica vinda da Polônia. Esses livros tinham sido retirados de apenas uma biblioteca pertencente à Grande Sinagoga de Varsóvia. Milhares de bibliotecas acabariam sendo saqueadas somente na Polônia.[13] A atividade da Seção VII acabou se tornando ampla a ponto de precisar ser transferida para duas lojas maçônicas confiscadas na Eisenacher Straße e na Emser Straße, em Berlim. A biblioteca da Seção VII acabou sendo formada por uma série de departamentos que se concentravam em vários inimigos. O maior de todos era o departamento de literatura judaica. Também havia o departamento de literatura sindical, anarquista, comunista e bolchevique, assim como um departamento de literatura pacifista e cristã, entre outros dedicados também a seitas e minorias.
Em geral, a biblioteca da Seção VII reflete os temas pelos quais o próprio Himmler se interessava, não se restringindo meramente aos “inimigos do Estado” – era um reflexo da visão de mundo de Himmler e da SS. As inclusões mais curiosas da biblioteca da RSHA eram as seções dedicadas ao ocultismo. A relação da SS com o ocultismo em geral tem sido explorada pela cultura popular, em documentários e livros que muitas vezes tendem para o sensacionalismo. No entanto, a inclusão de livros sobre ocultismo na biblioteca da RSHA é uma prova da seriedade com que o tema era encarado na SS. Uma “biblioteca ocultista” já vinha sendo organizada na SD antes da criação da RSHA. Isso serviu como base para uma biblioteca dedicada ao assunto: a Zentralbibliothek der okkulten Weltliteratur.[14] Ela incluía, entre outras coisas, uma seção chamada Sonderauftrag H, com foco nas artes mágicas e encantamentos. Havia um acervo de livros sobre ciências ocultas, Geheimwissenschaftlichen, e outras obras sobre teosofia, seitas e astrologia. Grande parte dessa literatura remonta à pilhagem das lojas maçônicas. Outra seção, a Sonderauftrag C, tratava de assuntos pseudorreligiosos e também contava com um grande acervo pornográfico e de literatura sobre sexologia. No entanto a SS não se limitava a roubar livros para a Seção VII – paradoxalmente, ela também roubava seres humanos. Vários estudiosos e intelectuais foram raptados e levados aos depósitos de livros da RSHA em Berlim, onde eram forçados a trabalhar em bibliotecas, às vezes elucidando para a SS textos escritos em hebraico e iídiche.
A biblioteca ou, melhor dizendo, as bibliotecas da Seção VII da RSHA eram manifestações bastante tangíveis das ambições amplamente totalitárias da SS e de Himmler. A pesquisa em andamento na RSHA não cuidava apenas de melhorar a compreensão que os nazistas tinham sobre seus inimigos para poder superá-los de maneira mais eficiente – a intenção também era injetar conhecimento no desenvolvimento ideológico e intelectual da SS. A SS estava em guerra contra aquilo que via como o intelectualismo judeu, o modernismo, o humanismo, a democracia, o Iluminismo, os valores cristãos e o cosmopolitismo. Mas essa batalha não era travada apenas por meio de prisões, execuções e campos de concentração. Certamente não é coincidência o fato de Heinrich Himmler ver sua organização como um equivalente nacional-socialista da ordem jesuíta, que, depois da propagação do protestantismo no século XVI, foi uma espécie de ponta de lança da Contrarreforma católica. De acordo com a visão de mundo de Himmler, a SS teria o mesmo papel de funcionar como um bastião contra os inimigos da ideologia nazista. O risco de ver a relação entre nazismo e conhecimento por um único ponto de vista é que isso pode ocultar algo ainda mais perigoso: o desejo da ideologia totalitária de governar não apenas as pessoas, mas também seus pensamentos. Há uma tendência em ver os nazistas como destruidores desvairados de conhecimento. Também é verdade que muitas bibliotecas e arquivos se perderam ainda sob o controle do regime, ou por destruição sistemática ou indiretamente em consequência da guerra. Apesar disso, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: o que é mais assustador, a destruição do conhecimento por um regime totalitário ou seu desejo de possuí-lo?