Chiemsee
A hora sagrada para os alemães chegará quando o símbolo de seu novo despertar – a bandeira com a suástica – tiver se transformado na única verdadeira profissão de fé do Reich.
Alfred Roosenberg
Com o suave tremor de um balanço a balsa deixa o cais do porto sob a vila de Prien. Peguei um lugar bem na popa, a céu aberto, para ter uma boa vista. O deque logo se encheu de aposentados com roupas de cores neon e de adolescentes em idade escolar sentados uns sobre os outros, competindo por um lugar ao sol. Centenas de barquinhos brancos no lago fazem o melhor que podem para aproveitar a leve brisa. Viajei rumo ao sudeste por uma hora em um trem que partiu de Munique, chegando ao ponto em que a paisagem agrícola começa a ser substituída por colinas suaves e depois gradualmente por vales e montanhas – o coração da Baviera, com suas casas em estilo enxaimel, colinas verdes e os Alpes cobertos por neve. No meio do caminho entre Munique e Berchtesgaden, onde ficava Berghof, o retiro de Adolf Hitler nas montanhas, fica o lago Chiemsee. Um grande e límpido lago azul alimentado pelas neves derretidas dos Alpes, o Chiemsee também é chamado de mar Bávaro. Stephan Kellner, da Bayerische Staatsbibliothek, mostrou-me no mapa o lugar que vim visitar, um lugar que fica do outro lado do Chiemsee.
Ainda não saímos da baía que banha Prien, mas o cenário já impressiona. No extremo sul do lago fica o trecho dos Alpes conhecido como Chiemgauer Alpen, cujos picos avançam mais de um quilômetro e meio rumo ao céu. Além deles fica a Áustria. Depois de uma breve travessia a balsa atraca em Herreninsel, a maior ilha do Chiemsee. Os aposentados e os estudantes desembarcam e andam por um trapiche longo e esquelético até chegar, já em terra firme, ao local da ilha que chama a atenção, o Palácio de Herrenchiemsee.
O palácio foi construído no final do século XIX pelo psicologicamente instável rei Ludovico II da Baviera para ser uma cópia mais ou menos idêntica do Palácio de Versalhes de Luís XIV, apesar das dimensões reduzidas. Ludovico II morreu antes de o palácio ficar pronto, e o trabalho foi imediatamente abandonado em função da absurda quantidade de dinheiro que o rei já havia investido ali. De minha parte, estou aqui para ver o projeto de outro lunático à beira do Chiemsee, que também nunca chegou a ser aproveitado – um edifício do qual nenhum tijolo jamais chegou a ser assentado. Esse provavelmente é o motivo para que eu tenha ficado na balsa sozinho enquanto as senhorinhas desembarcavam lentas, mas cheias de ansiedade para ver Herrenchiemsee, mergulhadas nas descrições de seus guias turísticos sobre a Sala dos Espelhos e o maior candelabro do mundo feito de porcelana de Meissen.
Depois de a balsa contornar Herreninsel, a vista se amplia, e já enxergo a terra firme do outro lado do lago. Ao mesmo tempo, também consigo ver o local desse monumento invisível, entre a vila de Chieming no sul e Seebruck, na margem norte do lago, num ponto de onde sai um promontório. O local escolhido para o projeto da universidade de Alfred Roosenberg, a Hohe Schule der NSDAP, foi escolhido com cuidado. A autoestrada ondula ao longo da margem do Chiemsee e do sopé das colinas de Chiemgau, uma ligação entre as regiões leste e oeste no sul da Alemanha. A construção da estrada começou em 1934 como parte de um vasto sistema de autoestradas, o Reichsautobahn, que ligaria toda a Alemanha por vias de asfalto.
Depois da anexação da Áustria em 1938, a autoestrada começou a ser estendida até Viena, como modo de unir o reino-irmão à Alemanha. Para quem viajasse indo para o sul por essa estrada, só seria possível ver o prédio quando se avistasse o lago. Apesar de a universidade jamais ter sido construída, ainda é possível imaginar como ela impactaria os olhos de um contemporâneo. Os desenhos do arquiteto e as fotografias da maquete foram preservados na Biblioteca do Congresso, em Washington.[1] Roosenberg encarregou Hermann Giesler – ao lado de Albert Speer, o mais renomado arquiteto da Alemanha nazista – do projeto do edifício. As plantas e as maquetes indicam que seria um complexo monumental, com vários edifícios interconectados. O que imediatamente salta à vista é o edifício principal, onde uma torre semelhante a um arranha-céu se eleva quatro vezes mais em relação ao entorno. A parte superior da torre tem o formato de um templo clássico. É um exemplo do estilo arquitetônico dominante do Terceiro Reich, um neoclassicismo de proporções monumentais, quase brutais. Os edifícios deveriam impressionar e intimidar o observador, levando-o à submissão.
“A Hohe Schule um dia será um centro para pesquisas e reflexão sobre o nacional-socialismo e sobre ideologia afirmou Adolf Hitler.[2]
Embora o edifício jamais tenha sido construído, outro aspecto do projeto da Hohe Schule certamente foi implantado. Afinal, a escola na margem leste do Chiemsee era uma mera manifestação arquitetônica, a estrutura física para um projeto de pesquisa que já estava em andamento havia muito tempo.
Alfred Roosenberg se tornaria o grande concorrente de Himmler em termos de produção ideológica, pesquisa e educação. Os dois se digladiariam em uma intensa batalha pelas bibliotecas e arquivos da Europa. Suas respectivas organizações fizeram vastas operações de pilhagem durante a guerra, usando unidades de assalto especiais e escritórios locais que iam da costa no Atlântico no oeste até Volgogrado no leste, de Spitsbergen no norte até a Grécia e a Itália no sul. Assim como as atividades da Seção VII da RSHA eram influenciadas pelas inclinações de seu chefe e por sua visão de mundo, os diversos projetos de pesquisa e de bibliotecas que couberam à organização de Roosenberg, a Amt Roosenberg, também seriam um reflexo de seu chefe. Himmler e Roosenberg disputariam o posto de principal fonte ideológica do movimento, mas até certo ponto suas ideias e perfis eram diferentes. Enquanto Himmler tinha uma atração por ideias mitológicas e, até mesmo, inspiradas pelo ocultismo, Roosenberg tinha uma obsessão fanática pelo que entendia ser uma conspiração judaica global. Em relação à produção ideológica, as ambições de Roosenberg eram comparativamente maiores e mais sérias.
A Hohe Schule era uma tentativa grandiosa de estabelecer as fundações para um tipo totalmente novo de ciência e para uma nova espécie de cientista. A visão nacional-socialista da ciência abrangeria e permearia todas as disciplinas – e seria construída com base na compreensão de que havia uma “ciência alemã” singular, definida racialmente.
Mas talvez o projeto mais importante de Alfred Roosenberg tenha sido fornecer à ideologia nacional-socialista uma base filosófica que poderia trazer certo reconhecimento para o movimento, tanto na Alemanha quanto no exterior.[3] Quando os nazistas assumiram o poder em 1933, o movimento não tinha uma abordagem ideológica completamente desenvolvida; o movimento nacional-socialista continha uma coleção variada de opiniões e grupos que muitas vezes eram contraditórios entre si, indo de nacionalistas conservadores a fanáticos ideólogos raciais. Havia tintas socialistas e tendências sindicalistas. Entre os líderes do partido havia tanto nostálgicos reacionários quanto outros com um perfil comparativamente mais moderno e que, até certo ponto, incluía uma aceitação do modernismo artístico.
Em seu caminho até o poder, o Partido Nazista absorveu uma série de outros movimentos e organizações de extrema direita. Grande parte de seus membros havia antes integrado outros partidos radicais de extrema direita, que abandonaram quando o NSDAP se tornou a força dominante. Forças e grupos diferentes dentro do movimento tentavam levar o tempo todo o partido em diferentes direções políticas. Além de alguns poucos pontos em que tinha posicionamento firme, o nacional-socialismo era subdesenvolvido e, por isso, maleável. Ao longo do período do Terceiro Reich houve diferenças políticas dentro do partido, mas elas se tornaram menos significativas com a passagem do tempo, e a tolerância com a diversidade foi diminuindo. O cerne imutável que mantinha unido esse desordenado movimento político eram basicamente o próprio Adolf Hitler e o princípio de liderança que havia sido moldado com o Führer. Era o chamado Princípio do Führer – obediência cega e absoluta ao líder – o mais importante pilar da ideologia.
Esse princípio se baseava em uma concepção de que os alemães, sem um líder carismático, eram apenas uma massa ingovernável e amorfa; somente depois de estarem totalmente subordinados ao Führer eles se transformariam em um povo unificado com um objetivo e alguém para levá-los até essa meta. De acordo com essa ideia, o líder obtinha legitimidade como sendo a personificação da vontade interior do povo, seu espírito e sua alma. A democracia, por outro lado, era orientada pela vontade popular e não passava de um governo corrompido exercido pela turba, algo como um rebanho de ovelhas sem um pastor.
Sem o princípio da liderança o movimento teria se fragmentado pelos rachas internos e provavelmente jamais teria nem mesmo conseguido se unir. As facções, organizações e líderes dentro do partido estavam em luta permanente, com conflitos que iam de questões sobre como se deveria definir um judeu até discussões sobre o expressionismo alemão. Em última instância, normalmente era Adolf Hitler, e não uma ideologia bem estabelecida, que resolvia as disputas.
Como figura central do culto à liderança, Hitler se transformou em um profeta ideológico, porém sem ser sempre claro em sua visão. Era comum que preferisse se manter afastado de batalhas ideológicas e até mesmo que incentivasse algum grau controlável de rivalidade dentro do movimento como forma de jogar as facções umas contra as outras.
Depois de chegar ao poder em 1933, o partido precisou converter suas visões políticas em práticas políticas. Outro desafio era a quantidade enorme de pessoas entrando para o partido, o que gerava temores de que a máquina política acabasse inundada por oportunistas e infiltrados. Havia uma concepção quase paranoica de que essas pessoas iriam diluir “a verdadeira visão”. A falta de coesão ideológica era, portanto, vista no início dos anos 1930 como um problema cada vez maior. Robert Ley, o Reichsorganisationsleiter – chefe da organização nacional do Partido Nazista – já tinha procurado Alfred Roosenberg, reclamando de uma “séria fragmentação do movimento relativa a como se devia ver o mundo”.[4] Adolf Hitler também reconhecia o problema da “fragmentação” ideológica. Como seria possível para o partido firmar sua posição no poder e lidar com a filiação de centenas de milhares de pessoas sem perder sua alma ideológica? Por isso, em 1934 ele encarregou Alfred Roosenberg como responsável pela educação e pelo desenvolvimento espiritual e ideológico do partido. O título oficial de Roosenberg era Beauftragter des Führer für die gesamte geistige und weltanschauliche Erziehung der NSDAP, ou Representante do Führer para toda Pesquisa Espiritual e Ideológica no NSDAP. No mesmo ano foi criada uma organização em Berlim, com o nome de Dienststelle Roosenberg [Seção Roosenberg]; no entanto, a Amt Roosenberg mais tarde seria um nome guarda-chuva para vários projetos, títulos e organizações liderados por Alfred Roosenberg dentro do partido.
O fator que mais consolidou a posição de Roosenberg como principal ideólogo foi sua obra filosófica O mito do século XX, publicada em 1930. Ele também reuniu em torno de si uma rede de pesquisadores, ideólogos, experts em questão racial e filósofos que muitas vezes eram mais talentosos do que ele próprio – com o objetivo de ajudar a construir, estabelecer e salvaguardar o legado ideológico do nacional-socialismo.
A posição de Roosenberg como ideólogo se baseava em seu status como um dos “velhos cavalos de guerra” do movimento que havia sobrevivido, tanto no sentido literal quanto no político. A sobrevivência de Roosenberg se devia em parte à sua lealdade a Hitler, mas também ao fato de que ele jamais chegou a ameaçar a posição de Hitler no partido. Roosenberg não se envolvia em realpolitik, era na verdade mais um idealista fanático: “A tragédia de Roosenberg foi crer no nacional-socialismo”, escreveu o historiador alemão Joachim Fest.[5]
Em fevereiro de 1917, Alfred Roosenberg, na época com 24 anos, morava em um prédio de apartamentos a uma hora de Moscou. Poucos anos antes ele tinha começado a estudar arquitetura na Universidade Tecnológica de Reval, hoje conhecida como Tallinn. Quando em 1915 o front russo começou a ameaçar a Estônia, a universidade – com seus estudantes e professores – foi rapidamente evacuada para o interior da Rússia imperial. Em 1917, Alfred Roosenberg estava perto de se formar e passava os dias lendo Goethe, Dostoiévski, Balzac e filosofia indiana. O aluno sério e introspectivo parecia estar completamente alienado em relação às tensões sociais da Rússia imperial e à violenta onda revolucionária que estava prestes a varrer o país. “No fim de fevereiro chegaram notícias sobre as greves e os motins do pão, e então um dia aconteceu – a revolução.”[6]
De início, Roosenberg ficou entusiasmado com a atmosfera; ele chegou a ir a Moscou e se uniu às centenas de milhares de pessoas que se aglomeravam nas ruas em um estado generalizado de “alegria histérica”. Ele descreve em suas memórias a sensação de alívio que teve ao ver o “corrupto” regime tzarista finalmente cair. Mas depois que as alegres comemorações foram substituídas por anarquia, desintegração e bolcheviques, a sensação que Roosenberg tivera foi substituída por outra coisa.[7] Num dia do verão de 1917, o ano da revolução, enquanto ele estava sentado em seu quarto estudando, um sujeito que ele não conhecia entrou e colocou um livro sobre a mesa. Escrito em russo, que Roosenberg falava fluentemente, o livro continha as atas de uma conferência judaica supostamente realizada em 1897: Os protocolos dos Sábios de Sião. Para Roosenberg, esse documento teria importância decisiva. Do ponto de vista dele, o livro retratava o verdadeiro pano de fundo por trás da queda do tzar. A revolução não havia sido instigada por operários alemães e por camponeses que se revoltaram contra o tzar opressor, mas, sim, era parte de uma conspiração planejada pelos judeus.
No século XIX houve ondas de pogroms dirigidas contra a população judia da Rússia imperial. O regime tzarista condenou em público os ataques contra os judeus, mas ao mesmo tempo apoiava e incentivava os pogroms, numa medida política desesperada de usar o antissemitismo para unir um império multicultural e etnicamente diversificado à beira da implosão. Ao dirigir o ódio aos judeus, havia esperança de que os verdadeiros problemas pudessem ser ocultados. Os instigadores dos pogroms tendiam a ser grupos antissemitas e nacionalistas que viam os judeus como elementos “revolucionários”.
A extrema direita russa começou, em um primeiro momento, a explorar os “judeus revolucionários” em sua propaganda, e isso gerou um legado muito influente para o nacional-socialismo. Na virada do século, o célebre serviço secreto tzarista, a Okhrana, produziu um documento que foi amplamente distribuído na Alemanha no entreguerras, exatamente o mesmo documento que acabou nas mãos do jovem Roosenberg em 1917. Os protocolos dos Sábios de Sião supostamente traziam as atas de uma conferência secreta realizada no final do século XIX, em que um grupo de judeus influentes, conhecidos como Sábios de Sião, jurava que iria dominar o mundo. Por meio de infiltração e corrupção, os judeus cooptariam a ajuda de outras pessoas, entre elas capitalistas, liberais, maçons e comunistas, para controlar o mundo, mas ao mesmo tempo se mantendo invisíveis.
Ler o documento foi um momento decisivo da vida de Roosenberg. Ele próprio era parte da minoria dominante que se via ameaçada pela revolução Ele tinha crescido em Reval e era um germano-báltico, a minoria alemã que havia dominado aquela região desde a Idade Média por meio da Ordem Teutônica e da Liga Hanseática. As cidades eram controladas pela burguesia alemã, e a área rural era dominada pela pequena nobreza alemã, que por muitos anos controlou uma classe basicamente feudal de camponeses bálticos e eslavos. Os germano-bálticos se viam como guardiães de uma cultura mais elevada do que a de seus vizinhos. Como acontece com tanta frequência em comunidades de migrantes, a imagem da terra natal era ao mesmo tempo cultivada e romantizada, um conceito conhecido como Heimat. Para Alfred Roosenberg, a Alemanha era um sonho, uma fantasia, uma sociedade de pessoas idealizadas impregnadas do espírito de Schiller e Goethe. O classicismo de Weimar estava no próprio cerne da identidade dos germano-bálticos.
O fato de Roosenberg ter crescido na Rússia tzarista multiétnica teria papel decisivo no seu pensamento posterior. O conceito da superioridade dos arianos, da conspiração judaico-bolchevique, e o direito dos alemães de se expandir para leste foram todos produtos desse passado. Mais tarde, em O mito do século XX, ele diria que a Rússia devia ser grata a seus invasores arianos: os vikings, a Liga Hanseática e os germano-bálticos. Sem a presença deles em sua história, a Rússia teria se fragmentado no caos e na anarquia exatamente como aconteceu após a revolução de 1917.[8]
Os protocolos dos Sábios de Sião confirmariam as ideias e os equívocos desse jovem germano-báltico. Como devotado adepto da alta cultura alemã, ele já tinha lido uma das obras mais influentes da época – que mais tarde tentaria transcrever em versão nacional-socialista – Die Grundlagen des neunzehnten Jahrhunderts [Os fundamentos do século XIX], de Houston Stewart Chamberlain.
Chamberlain, um filósofo cultural britânico, tinha sido seduzido pela cultura alemã na juventude ao estudar em Genebra. Ele se estabeleceu em Bayreuth e casou com Eva von Bülow, enteada de Wagner. Em sua principal obra, com cerca de mil e quatrocentas páginas e publicada em dois volumes perto da virada do século XIX, Chamberlain tentava construir um raciocínio ligando o idealismo cultural alemão ao mito racial ariano. Como referência, ele usou o mais importante ideólogo racial do século XIX, o conde e diplomata francês Arthur de Gobineau, e sua obra histórico-filosófica Essai sur l’inegalité des races humaines [Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas]. Gobineau tentou, de maneira semelhante ao que Carl von Linné fez no reino botânico, dividir a humanidade em raças. Ele acreditava que não era a economia o principal motor da história – era a luta racial.[9]
Segundo Gobineau, as diferentes raças eram irreconciliáveis, e a maior ameaça para a sociedade ocidental era o cruzamento inter-racial – o sangue nobre dos arianos sendo diluído no sangue de pessoas de extração inferior. Do ponto de vista dele, os pedidos por reformas sociais, democracia e igualdade do século XIX eram sinais de que essa queda era iminente. A humanidade, como consequência, seria lançada em um estado de maior bestialidade, tornando-se incapaz de produzir cultura refinada. A visão apocalíptica de Gobineau de que a queda da humanidade era iminente causou profunda impressão em Chamberlain. Em seu próprio livro, meio século mais tarde, ele se concentraria nos judeus como causa dessa desintegração, uma visão já proposta por seu sogro no panfleto O judaísmo na música, em que Wagner sugeria que os judeus, ao se infiltrarem na cultura ocidental, começaram a avariar a verdadeira cultura que tinha raízes em um povo.[10] Em Fundamentos do século XIX, Houston Stewart Chamberlain tentou uma fusão da teoria racial de Gobineau com o antissemitismo de Wagner, ao mesmo tempo que levava essas ideias um passo adiante. No universo de Chamberlain, alemães e judeus eram polos opostos, lutando em uma batalha histórica entre bem e mal. Os alemães altos, louros e de olhos azuis eram naturalmente impregnados de ideais como dever, liberdade e lealdade. Os judeus representavam o oposto, especialmente em seu impulso de destruição do que era puro e belo.
Alfred Roosenberg se via como herdeiro das ideias de Chamberlain. Ele também ofereceu soluções mais tangíveis para a “questão judaica”. Roosenberg diz que começou a trabalhar em sua obra O mito do século XX já no verão de 1916, quando alugou uma casa com sua jovem esposa, Hilda, em Skhodnya, perto de Moscou.[11]
Como muitos outros germano-bálticos, Roosenberg tinha esperanças de que o exército alemão libertasse a Estônia dos bolcheviques, um desejo que acabou se realizando em fevereiro de 1918. No entanto, a esperança de que os germano-bálticos se unissem à sua Heimat foi por água abaixo logo depois de surgir, quando o Império alemão implodiu em novembro de 1918. No mesmo mês Alfred Roosenberg tomou a decisão de abandonar sua terra natal e voltar ao que via como pátria espiritual.[12] Antes de partir no final de novembro, ele fez seu primeiro discurso público na prefeitura de Reval sobre o tema que o definiria como político: a “questão judaica” e a conexão entre os judeus e o marxismo.
Como muitos outros que emigraram do Báltico, Roosenberg se estabeleceu em Munique, onde vários de seus amigos moravam. Os círculos da extrema direita de Munique acabaram se revelando solo fértil para sua teoria da conspiração judaico-bolchevique. Roosenberg, que queria escrever sobre suas experiências russas, logo entrou em contato com Dietrich Eckart, dramaturgo, jornalista e espécie de figura central na extrema direita de Munique. De acordo com Roosenberg, as primeiras palavras que ele disse para Eckart foram “Você precisa de um guerreiro contra Jerusalém?”.[13]
Em pouco tempo Roosenberg estava filiado ao obscuro partido político de Eckart, o NSDAP – ele foi um dos primeiros membros. Foi também na casa de Eckart que ele encontrou pela primeira vez um cabo reformado de 30 anos chamado Adolf Hitler. Segundo Roosenberg, eles falaram sobre como o bolchevismo tinha o mesmo efeito degenerativo sobre a nação que o cristianismo tivera sobre o Império Romano. Nenhum deles jamais admitiu abertamente ser influenciado pelo outro, e durante todo o período de amizade os dois ideólogos achavam difícil expressar para o outro qualquer espécie de reconhecimento.
Muito mais tarde, Hitler comentou que Roosenberg era um germano-báltico com um modo de pensar “horrivelmente sofisticado”, enquanto por sua vez Roosenberg jamais conseguiu fazer elogios a Mein Kampf.[14] No entanto, Hitler acabou admitindo indiretamente o papel de Roosenberg como um dos principais arquitetos da ideologia nazista ao fazer dele em 1937 o vencedor do recém-estabelecido Deutscher Nationalpreis für Kunst und Wissenschaft [Prêmio Nacional Alemão para Arte e Ciência]. Essa foi uma tentativa da Alemanha nazista de substituir o Prêmio Nobel. Hitler havia decretado que os alemães não podiam aceitar receber o Nobel depois que o prêmio da Paz de 1935 foi concedido a Carl von Ossietzky, que estava em um campo de concentração alemão. Roosenberg recebeu o novo prêmio “por ter ajudado a estabelecer e a consolidar a perspectiva global do nacional-socialismo por meio tanto da ciência quanto da intuição”.[15]
A real influência de Roosenberg sobre o desenvolvimento ideológico tem sido tema de debate entre historiadores desde a Segunda Guerra Mundial. Sua importância como uma figura no regime foi percebida de diferentes maneiras, dependendo das tendências da pesquisa historiográfica. Depois da guerra ele foi visto como o cérebro demoníaco por trás de toda a ideologia. Mais tarde, nos anos 1960, seu papel foi reduzido quando a perspectiva histórica se afastou das descrições personalistas em busca de mecanismos estruturais e sociais. Nos anos 2000, Roosenberg voltou aos holofotes, em boa parte devido ao trabalho do historiador alemão Ernst Piper, autor da extensa tese biográfica Alfred Roosenberg: Hitler´s Chief Ideologue [Alfred Roosenberg: O principal ideólogo de Hitler], que sugere que Roosenberg teve importância decisiva na disseminação da propaganda antissemita, na transformação de teorias conspiratórias em “verdades” e no estabelecimento de ideias relativas à conspiração judaico-bolchevique na Alemanha. Por essas razões, Piper acredita que há bons motivos para dizer que ele foi o mais importante ideólogo do movimento, o que vem sendo frequentemente questionado por outros historiadores.
Os historiadores há muito tempo afirmam que Hitler já era um antissemita e antimarxista convicto quando foi a Munique – algo que parece estar pronto para ser reavaliado pela pesquisa contemporânea. Desde os anos 1990, cada vez mais historiadores têm ressaltado o clima espiritual e revolucionário de Munique; e dito que isso teve um efeito transformador sobre o Führer, transformando-o em um antissemita fanático. Essa, por exemplo, é a afirmação feita pelo historiador Volker Ullrich em sua importante obra de 2013, Adolf Hitler: Die Jahres des Aufstiegs [Adolf Hitler: Os anos de ascensão]. Com base nessa perspectiva, o experiente Roosenberg deve ter sido uma grande influência.[16]
É muito provável que Hitler tenha recebido Os protocolos dos Sábios de Sião ou de Roosenberg ou de Eckart. O documento foi tão decisivo para ele como, poucos anos antes, havia sido para Roosenberg. Pouco depois, Hitler fez seu primeiro discurso mencionando a conspiração judaico-bolchevique em uma das cervejarias da cidade.
A ideia de uma conspiração tinha força explosiva na época. A revolução na Rússia e o movimento revolucionário internacional de trabalhadores eram vistos como uma ameaça não apenas pela extrema direita; na verdade, a revolução fez tremer o solo sob os pés da burguesia. Ao dizer que o movimento revolucionário era uma conspiração judia, e não uma expressão das demandas sociais das classes trabalhadoras e das mudanças sociais, os nazistas obtiveram uma legitimidade que ultrapassou em muito seus estreitos círculos.
Adolf Hitler acabou fazendo de Roosenberg o editor do jornal do partido, o Völkischer Beobachter, cargo que ele manteria até 1937.
Roosenberg, que havia encontrado a missão de sua vida, lançou-se nos círculos de extrema direita de Munique com uma produtividade fanática. Durante a década de 1920 houve uma verdadeira torrente de ensaios, antologias e livros de autoria de Roosenberg, dos quais a maior parte era variação sobre um mesmo tema: os judeus. Dentre esses estavam Die Protokolle der Weisen von Zion und die jüdische Weltpolitik, uma edição de Os protocolos dos Sábios de Sião comentada por ele. Não era a primeira edição em alemão, mas o livro de Roosenberg vendeu bem e foi reimpresso três vezes em um ano. Dois anos mais tarde, Adolf Hitler usou o texto como fundamento para seus ataques antissemitas em Mein Kampf. O documento original já havia sido denunciado como uma fraude, mas Hitler dizia que isso era propaganda judaica: “É absolutamente irrelevante saber dos lábios de quais judeus isso vem; o mais importante é que isso revela, com uma apavorante certeza, a natureza essencial do povo judeu”.[17] Joseph Goebbels, que de sua parte estava convencido de que os Protocolos eram uma fraude, expressou em seu diário uma abordagem mais pragmática, que se tornaria lugar-comum no movimento, de que ele cria “na verdade inata mas não factual dos Protocolos”.[18]
Em 1930 foi publicado o livro que, mais do que qualquer outro, consolidaria a posição de Alfred Roosenberg como principal ideólogo do nazismo: O mito do século XX. Roosenberg, assim como Houston Stewart Chamberlain havia tentado fazer algumas décadas antes, quis criar uma filosofia para seu tempo. Mas ele estava tentando resolver um problema.
O nacional-socialismo não tinha verdadeiras bases filosóficas. Os nazistas não tinham um Karl Marx ou um “texto sagrado” em que se basear. Sabe-se que Mein Kampf ganhou status quase bíblico na Alemanha nazista, mas, ao contrário de Marx e Engels, Hitler não havia criado um sistema filosófico fundamental ou atemporal que pudesse ser aplicado cinquenta ou cem anos depois de sua morte. Hitler gostava de falar do Reich de Mil Anos, mas em Mein Kampf ele se ocupou principalmente de assuntos cotidianos: a República de Weimar, os judeus, o Tratado de Versalhes, os bolcheviques e a expansão para o leste. Esses eram desafios políticos que poderiam ser resolvidos durante a vida dele. Mas o que aconteceria depois disso? Roosenberg queria preencher esse vácuo.
O mito do século XX não teve o mesmo impacto político que Mein Kampf; o livro era sofisticado, empolado e em vários sentidos, na descrição de Hitler, era tão “horrivelmente sofisticado” quanto seu autor. Sua pedra fundamental era quase banal em sua simplicidade: a eterna batalha entre o bem (os arianos) e o mal (os judeus). Essa batalha era como uma linha divisória que percorria a história ocidental. Quanto a isso Roosenberg não estava muito distante de Chamberlain, a única diferença prática é que Roosenberg tornaria esse mito racial politicamente útil.
Não era exatamente uma nova filosofia que Roosenberg estava interessado em fundamentar, era quase uma nova religião. A linguagem solene do livro, semelhante à de algo retirado do Velho Testamento, era um instrumento proposital. Roosenberg queria evocar uma profecia, uma teoria racial baseada em um modelo místico, escrevendo: “Hoje uma nova religião se agita e desperta – o mito do sangue; a crença na defesa do sangue equivale à defesa da natureza divina do homem”. Segundo Roosenberg, o “sangue nórdico“ enfim começava a ser vitorioso, e substituiria “os antigos sacramentos”.[19]
Assim como Chamberlain, Roosenberg achava que as raças haviam herdado atributos, e que o amor pela liberdade, a honra, a criatividade e um verdadeiro sentido de consciência só podiam existir nas “raças nórdicas”. O principal desses atributos era “a vontade heroica”. Era recorrendo a essa ideia que surgiria o novo alemão, um homem heroico ligado à sua terra pelo sangue – pronto a se sacrificar em uma morte heroica. Entre os dois extremos raciais, os arianos e os judeus, Roosenberg criou subdivisões de outros povos como árabes, chineses, mongóis, negros e indianos, examinando em cada caso as características morais e as realizações artísticas. Era preciso reconhecer que os árabes haviam criado os adoráveis arabescos, mas “isso não é verdadeira arquitetura, e sim mero artesanato”.[20] Em casos em que “atributos nórdicos” apareciam em outras raças, era em função ou da imitação ou do cruzamento com o sangue nórdico. Judeus, por outro lado, não tinham qualquer capacidade de formar uma cultura mais elevada “porque o judaísmo, como um todo, não tem uma alma de onde possam brotar virtudes mais elevadas”.[21]
O mito do sangue não era uma crença individualista, pois o sangue ariano estava ligado a uma “alma racial” coletiva, mais elevada. Essa era a alma que unia todos os arianos: “A alma racialmente interconectada é a medida de todas as nossas ideias, de nossa vontade e de nossas ações”. Para Roosenberg, o individualismo era tão danoso quanto o universalismo. “Um ser humano por si só não é nada; ele só adquire personalidade ao se integrar sensorialmente e com sua alma a milhares de outros de sua raça”. Roosenberg também afirmava que a história da filosofia omitia qualquer consideração a esse mito sanguíneo porque não era possível expressá-lo dentro de um sistema racional. Não era possível compreender a “alma racial” em termos racionais, lógicos, porque “a raça é intangível – é uma voz interior, uma sensação, uma vontade. Os alemães precisam despertar e ouvir a voz de seu sangue”. Roosenberg terminou esse livro com uma profecia sobre quando isso iria ocorrer: “A hora sagrada para os alemães chegará quando o símbolo de seu novo despertar – a bandeira com a suástica – tiver se transformado na única verdadeira profissão de fé do Reich”.[22]
Cerca de um mês após Roosenberg ter sido nomeado para chefiar “a educação e o desenvolvimento espiritual e ideológico” do partido, em 1934, ele fez um discurso no teatro Kroll, em Berlim, para onde o parlamento alemão havia se transferido depois do incêndio no Reichstag. Os gauleiters do país, líderes locais do Partido Nazista espalhados por toda a Alemanha, haviam se encontrado para ouvi-lo. Do pódio, Roosenberg disse: “Se nos satisfizéssemos somente por ter poder sobre o Estado, o movimento nacional-socialista não teria atingido seu objetivo. A revolução política no Estado está completa, mas a tarefa de forjar a consciência do ser humano intelectual e espiritual está apenas no começo”.[23] Foi esse o objetivo que ele formulou em O mito do século XX, e que agora seria colocado em prática: “Essa é a grande tarefa do século: com base neste novo mito da vida criar um novo ser humano”.[24]
A principal ferramenta para essa transformação seria o sistema educacional do Terceiro Reich. A propaganda podia ter efeito sobre as pessoas, mas a educação era capaz de mudá-las em sua própria essência. A nazificação do sistema escolar tradicional em todos os níveis, do jardim de infância à universidade, foi implantada gradualmente depois de 1933. Os nazistas passariam a ver o sistema educacional como parte significativa do rearmamento ideológico do Terceiro Reich, mas essa era uma meta de longo prazo – uma transformação que moldaria as futuras gerações.
Algumas das primeiras medidas foram bem previsíveis. Uma foi a “limpeza” promovida nas escolas para eliminar a “influência judaica”, tendo como alvos tanto professores quanto alunos. Já em 25 de abril de 1933, aprovou-se uma lei para limitar o número de alunos judeus nas escolas públicas. Grande parte dessa limpeza ocorreu organicamente pela rejeição de matrículas de alunos judeus e pela demissão de professores judeus sem qualquer explicação. Nas universidades, professores judeus eram atacados por agremiações estudantis pró-nazistas, que exigiam suas demissões. Aqueles que se agarravam a seus empregos enfrentavam discriminação e humilhação. Entre outras coisas, a associação de alunos de Berlim exigiu que toda pesquisa “judaica” deveria ser publicada apenas em hebraico, o que era um modo de ao mesmo tempo banir os judeus da língua alemã e de expor a sua suposta infiltração.[25] Mesmo professores de inclinações liberais se tornaram alvos desse pogrom intelectual. Não só os judeus e os livre-pensadores foram excluídos do sistema educacional como os nazistas também se opuseram a que as mulheres tivessem acesso ao ensino superior, que, segundo se acreditava, podia levar a pedidos de igualdade. Na visão de mundo nazista, o papel das mulheres era principalmente produzir filhos para a nova “raça superior”.
Em 1936, professores judeus foram proibidos por lei de dar aulas em escolas públicas, e em 1938 todos os judeus foram banidos das universidades – tanto professores quanto alunos. Os nazistas e os ideólogos pró-nazistas receberam cargos de destaque nas mais importantes universidades. Muitos deles faziam parte do círculo de Alfred Roosenberg, incluindo Ernst Krieck e Alfred Baeumler, dois dos mais importantes pedagogos nazistas no Terceiro Reich, que também ficaram encarregados de estabelecer as bases do novo sistema educacional alemão. O regime obteve uma legitimação especial do famoso filósofo Martin Heidegger, que se filiou ao NSDAP e foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo.
Uma das primeiras grandes reformas foi a centralização do sistema escolar, que, como a maior parte das coisas na Alemanha, antes era bastante descentralizado. Essa era uma medida necessária para fazer com que o sistema educacional servisse ao dogma nazista. A Alemanha jamais foi tão unificada quanto no Terceiro Reich e jamais voltaria a sê-lo – um resultado dos esforços do regime totalitário para criar “um povo”.
Quando os nazistas assumiram o poder, o sistema escolar e universitário alemão era considerado um dos melhores do mundo. Nenhum outro sistema escolar tinha produzido tantos vencedores do Prêmio Nobel. Em 1933 a Alemanha havia recebido trinta e três prêmios Nobel, enquanto os Estados Unidos haviam obtido apenas oito. A Universidade de Gotinga, administrada por Niels Bohr, era vista como o mais avançado centro de física teórica no mundo. O problema para os nazistas, porém, era que um número desproporcionalmente grande de prêmios Nobel havia sido concedido a judeus alemães, como Albert Einstein, Gustav Hertz e Paul Heyse.
Assim como Chamberlain e Roosenberg classificaram os povos segundo suas habilidades herdadas ou raciais para a arte, a arquitetura, e até segundo suas personalidades, cada raça também tinha sua “física” e sua “ciência” singulares. O médico alemão e nazista Philipp Lenard, que recebeu o Nobel em 1905, desenvolveu essas teorias em uma obra em quatro volumes ao longo da década de 1930. Lenard propôs a existência de algo que descreveu como “física japonesa”, “física árabe”, “física negra”, “física inglesa” e “física ariana” – sendo a última a única verdadeira. A mais danosa de todas era a “física judaica”: “O judeu quer criar contradição em toda parte e dissolver as relações existentes de modo tão absoluto que o pobre alemão ingênuo não consiga mais ver sentido algum nela”.[26] De modo semelhante ao que ocorria na esfera cultural, havia um conceito de que a ciência tinha caído em desgraça e criado uma “realidade fragmentada”, como disse o ministro da Educação, Bernhard Rust, e isso era obra dos corrosivos judeus.[27] Em outras palavras, a teoria da relatividade era confusa demais para se encaixar na visão de mundo totalitária dos nazistas, determinados a transformar o mundo fragmentário novamente em algo uno. Como era de esperar, Roosenberg era admirador e protetor de Lenard. Um resultado positivo dessas ideias distorcidas foi desacelerar a pesquisa atômica nazista. Ironicamente, a pesquisa que em grande medida era realizada em universidades alemãs por cientistas judeus como Albert Einstein, Niels Bohr e Robert Oppenheimer acabou dando aos Estados Unidos a primeira bomba atômica.
Apesar da excelência do sistema escolar alemão reconhecida internacionalmente, a nazificação encontrou pouca resistência interna. Um dos motivos para isso era o forte apoio ao nazismo nas associações de professores e estudantes. Acredita-se que até um terço dos professores tenha apoiado os nazistas em sua ascensão ao poder, o que é muito mais do que em outras profissões. Os professores eram, haviam muito, vistos pelos nazistas como um grupo-chave na sociedade, e já em 1929 eles haviam formado uma associação alternativa: a Nationalsozialistische Lehrerbund [Liga dos Professores Nacional-Socialistas, NSLB], com o propósito de fazer com que o professorado se virasse para a direção ideológica adequada. Depois de 1933, a NSLB se tornou a única associação de professores no Terceiro Reich.
A NSLB se tornou uma ferramenta importante no processo que se seguiria, vindo de cima para baixo, de transformação dos fundamentos filosóficos e pedagógicos do sistema educacional, assim como de seus valores. Livros didáticos foram reescritos, professores foram substituídos, e, acima de tudo, cérebros foram doutrinados.
Assim como ocorria no Exército, os professores eram forçados a jurar lealdade ao Führer. A NSLB, que muito oportunamente era dirigida por um soldado que havia participado dos Freikorps, Hans Schemm, criou os Schulungslager, campos de doutrinação para os quais os professores eram enviados para “retreinamento”. Em 1937 havia mais de quarenta campos desse tipo. De acordo com um observador britânico, as mais importantes fontes de materiais ideológicos usadas eram o Mein Kampf e os escritos de Alfred Roosenberg. Novos temas foram incluídos no currículo escolar, como “higiene racial”. A meta, nas palavras de Roosenberg, era que a ideologia nazista permeasse todos os aspectos do currículo, da história à matemática.
Os professores de fato se tornaram “Führers” em suas salas de aula, e muitos decidiram ir à escola com o uniforme do partido. Sob os nazistas, a sala de aula se tornou um microcosmo do Estado totalitário. Sempre havia um retrato de Adolf Hitler, e o dia na escola começava e terminava com a saudação a Hitler – em certos casos isso era repetido no começo de cada aula. No sistema educacional do Terceiro Reich não somente os professores mantinham os alunos sob vigilância como eles próprios também eram vigiados por seus estudantes. Professores que expressavam opiniões “não germânicas” podiam ser delatados por seus alunos para a Juventude Hitlerista ou para a Gestapo.
Ao longo da década de 1930, embora não liderasse pessoalmente a reforma das instituições de ensino e pesquisa, certamente Alfred Roosenberg pairava sobre o processo na forma de um espírito ideológico. Roosenberg tinha um manual intitulado Teses ideológicas, que descrevia brevemente os principais fundamentos da visão nacional-socialista do mundo. O livro pretendia ser um guia básico para todo o sistema educacional alemão. O ministro da Educação, Bernhrard Rust, se certificou de que as bibliotecas de todas as escolas do país tivessem um exemplar de O mito do século XX.[28] A nazificação do sistema educacional nunca foi completada no período do Terceiro Reich, mas é possível ver as reformas como um embrião da utopia totalitária vislumbrada por nazistas como Roosenberg. O novo ser humano só podia surgir dentre aqueles que estivessem livres das máculas que causaram a degeneração no passado: em outras palavras, dentre as crianças.
Para formar a geração que dirigiria o Terceiro Reich rumo ao futuro, o sistema educacional tradicional não bastava. Para criar um ser humano fundamentalmente novo, era necessário um novo modelo de escola. Por isso, na década de 1930 foram estabelecidas as bases para algumas escolas de elite: a NS-Ordensburg e as escolas Adolf Hitler. A primeira escola Adolf Hitler foi inaugurada em 20 de abril de 1937, no aniversário do Führer. Para serem aceitos na escola os alunos precisavam demonstrar atributos de liderança e se submeter a rigorosos exames raciais e médicos. Os professores das doze escolas Adolf Hitler em geral saíam da SS, da SA, da Gestapo e de outras áreas da máquina de terror nazista.
Os jovens que passavam por essa educação mais tarde eram preparados para entrar em uma das quatro escolas Ordensburg, que recebiam acólitos do partido entre 25 e 30 anos; os alunos selecionados eram submetidos a rígido treinamento ideológico e militar. O treinamento incluía testes regulares da coragem dos alunos, com atividades como salto de paraquedas, mas também havia imersões na máquina do partido. Assim como na SS, um misto de crueldade e inteligência era incentivado. “Para nós, a batalha de Leuthen é um teste de caráter tanto quanto o Fausto ou a “Eroica”, de Beethoven”, afirmou Alfred Roosenberg.[29]
O terceiro e último estágio depois da escola Adolf Hitler e da Ordensburg seria a Hohe Schule der NSDAP, de Alfred Roosenberg.[30] A ideia era que esses jovens graduados formassem a liderança do Terceiro Reich no futuro. Sua educação iria colocá-los em uma “fraternidade” ideológica – a ordem dos cavaleiros nazistas, por assim dizer. Era considerado necessário criar uma “classe dominante”, e era assim que a ideologia seria preservada e protegida para o Reich de Mil Anos. Ao mesmo tempo, essas escolas eram uma maneira de controlar o legado dos líderes da época.
Como ressaltaram alguns nazistas, havia um problema evidente sempre que alguém tentava fundir habilidades físicas e intelectuais – afinal, era muito comum que essas últimas acabassem levando vantagem. Poucos integrantes da classe dominante da época eram grandes espécimes do ponto de vista físico – dificilmente se poderia comparar o queixo de Himmler ao dos integrantes da SS. A pureza racial dos líderes era altamente duvidosa, e muitas vezes um segredo bem guardado. Falando francamente, a elite nazista era um grupo de gente pouco saudável. Göring era corpulento e usava morfina. Goebbels tinha pé torto, e Hitler tinha dores estomacais crônicas e provavelmente, perto do fim da vida, sofria de Parkinson. Os líderes nazistas eram menos “uma fraternidade ligada por juramentos” do que um bando de lobos prontos a atacar uns aos outros quando tivessem a chance. Adolf Hitler havia criado uma cultura darwinista de liderança que na verdade funcionava surpreendentemente bem em um sistema totalitário como o Terceiro Reich, um sistema em que uma mistura de esperteza, intrigas, terror, adulação, deslealdade, habilidades burocráticas e crueldade era o que levava alguém ao topo, em oposição à força muscular ou à pureza do sangue. Perdidos em sua utopia ariana de um novo ser humano, eles eram incapazes de ver que o caminho rumo ao poder na Alemanha nazista era tudo, menos heroico.
A hora de Roosenberg só chegou ao final da década de 1930. No começo, a Amt Roosenberg era uma organização apenas no nome, com um escritório modesto perto de Tiergarten e um pequeno número de funcionários. Mas aos poucos Roosenberg conseguiu assumir cada vez mais áreas de responsabilidade. Como chefe da ideologia, ele tinha a possibilidade de interferir em uma grande variedade de departamentos. Sempre que via atividades se desviando da disciplina ideológica, ele estava lá com seu sabujo. O fato de que ele continuava sendo o editor do Völkischer Beobachter, que ele estava mais do que disposto a usar em suas batalhas ideológicas, tornava difícil para os outros líderes nazistas ignorar completamente esse pretensioso germano-báltico.
A Amt Roosenberg funcionava como um think tank [fábrica de ideias], trabalhando com vigilância ideológica, lobby e pesquisa. Havia departamentos para questões eclesiásticas, artes visuais, música, educação, teatro, literatura, história antiga, judeus e maçons. Um departamento especial criado em 1934 para questões científicas era supervisionado por Alfred Baeumler, que estabeleceu as bases para uma espécie totalmente nova de cientista. “A ciência não é um produto do intelecto superficial, e sim uma criação que surgiu das profundezas do intelecto heroico”, disse Alfred Baeumler em uma de suas palestras.[31] De acordo com Baeumler, tanto a lógica quanto a razão já haviam desempenhado seu papel na ciência, que agora só podia ser levada adiante por esse intelecto heroico. Na verdade, era o mesmo velho “heroísmo” de Alfred Roosenberg e dos escritores freikorps.
A ciência heroica era política em seu cerne, o que Baeumler ilustrou comparando o novo e o velho cientistas. O tipo tradicional, a que ele se referia como “o homem teórico”, era caracterizado pela passividade, pela pura consciência e pela absoluta contemplação. O novo, o “homem político”, por outro lado, se destacava pelo dinamismo, liderança e participação. Do ponto de vista de Baeumler, o cientista não devia se limitar a um exame objetivo do mundo; devia ativamente buscar moldá-lo. O que ele estava descrevendo era um novo tipo de cientista, disposto a ser um instrumento do regime – absolutamente crucial para dar uma aura de legitimidade científica aos muitos mitos, mentiras e teorias da conspiração dos nacional-socialistas.[32]
A escola de Roosenberg, a Hohe Schule der NSDAP, recebeu o aval de Hitler em 1937. O embrião dessa escola vinha se desenvolvendo na Amt Roosenberg havia alguns anos. Planos para uma escola secundária foram mencionados na correspondência da organização em 1935. Assim como a educação dos líderes do futuro não podia ser deixada para o sistema educacional tradicional, era preciso cuidar igualmente do futuro da ciência. O projeto de Hermann Giesler e a maquete da nova escola foram mostrados para Adolf Hitler, que pessoalmente a examinou e aprovou. Também foi Hitler que decidiu que ela devia ser construída na margem leste do Chiemsee. A Hohe Schule der NSDAP, como todas as demais escolas de elite nazistas, devia estar sob administração direta do partido.
Vista de uma perspectiva mais ampla, a Hohe Schule serviria acima de tudo para o propósito que era o centro da obra de Alfred Roosenberg: a criação de pilares filosóficos e científicos para o nacional-socialismo. Roosenberg achava que havia identificado o ponto fraco do movimento. Mesmo se o Partido Nazista se dedicasse a criar uma nova classe dirigente que mais tarde assumisse o poder, isso nem de longe garantiria o futuro do movimento. Roosenberg tinha uma dolorosa consciência de que, em última instância, era o Princípio do Führer, não o nacional-socialismo em si, que mantinha o Terceiro Reich unido. Adolf Hitler não poderia liderar o movimento para sempre, como Roosenberg ressaltou em um discurso já em 1934. Portanto, disse ele, era “nosso desejo que o movimento nacional-socialista estabelecesse as bases que irão preservar esse Estado por centenas de anos no futuro”.[33]
As pessoas evoluem, mudam e morrem, mas ideias são imortais. No fim, apenas uma sólida base ideológica poderia garantir a continuidade do Reich de Mil Anos. Os nazistas tinham de criar estruturas que tivessem força ideológica suficiente para sobreviver à passagem do tempo – e acima de tudo à morte do Führer. A visão de Alfred Roosenberg era de que a Hohe Schule der NSDAP, descrita como “o principal centro de pesquisas, educação e ensino do nacional-socialismo”, seria um pilar dessa catedral ideológica.