Amsterdã
Wout Visser cuidadosamente coloca sobre a mesa uma pequena caixa marrom e abre a tampa. Então tira de lá um livro encadernado em couro marrom claro com as bordas gastas.
A capa, decorada com um padrão de folhagem impresso dentro de um formato retangular, revela pouco sobre o conteúdo. Parece um livro pequeno e não particularmente raro da virada do século passado, algo que poderia ser encontrado com facilidade em um sebo – exceto pela característica peculiar de um buraco de mais ou menos um centímetro perto do canto superior esquerdo. Há uma cavidade do diâmetro de um dedo onde o couro cedeu. Abro cuidadosamente o livro; percebo que o buraco continua na folha de rosto, onde danificou o nome do autor, o escritor judeu português Samuel Usque. Segurando o livro contra a luz que passa pelas janelas altas, vejo que o buraco chega até a última página do livro, e que a pressão deixou o papel do entorno amassado e danificado. A bala retorcida deixou uma mancha cor de cobre; alojado na transversal, o projétil permanece nesta exata posição há setenta anos.
“Este livro foi roubado junto com o resto da biblioteca e levado para a Alemanha pelos nazistas. Na verdade acreditamos que o tiro foi disparado na Alemanha”, diz Wout Visser, um homem de uns 40 anos, com suspensórios e a vaga sombra de um cavanhaque. Ele é bibliotecário e pesquisador da seção de acervos especiais da Biblioteca da Universidade de Amsterdã, que fica em um prédio de tijolos de três andares ao lado do belo canal Singel. Estamos sentados na sala de leitura de um dos acervos mais conhecidos da universidade, a Bibliotheca Rosenthaliana, à qual pertence “o livro com a bala”, como Visser o descreve.
O livro ganhou status quase místico no acervo da Rosenthaliana, dando origem a várias teorias quanto a quem realmente atirou nele. Um exame forense do projétil só aumentou o mistério, já que mostrou que o disparo não partiu de um rifle alemão, e sim de uma submetralhadora fabricada pelos britânicos. Foi possível inclusive rastrear onde possivelmente isso aconteceu, a aproximadamente vinte quilômetros ao norte de Frankfurt, na pequena cidade de Hungen.
Poucas horas antes de minha visita à Rosenthaliana cheguei à Estação Central de Amsterdã, depois de uma viagem de trem de sete horas partindo de Munique via Frankfurt e Colônia. O que me impressionou no caminho até aqui foi a facilidade para atravessar a fronteira entre Alemanha e Holanda. Não há limites naturais aqui, como as montanhosas Ardenas e os Alpes ao sul. Em comparação, as terras baixas flamengas são planas como uma autoestrada, um fato de que Hitler e seus generais estavam bem conscientes. A Holanda se declarou neutra quando a guerra começou em 1939. O país conseguiu se manter de fora da Primeira Guerra Mundial, quando o exército alemão decidiu abrir passagem pela Bélgica. Do ponto de vista dos alemães, em retrospecto, esse tinha sido um grave erro de estratégia militar, porque o exército alemão foi contido por mais tempo do que se esperava por uma feroz defesa belga. Hitler não pretendia repetir o erro. A Holanda ficava no caminho da Wehrmacht para Paris, e foi isso que selou o destino do país em maio de 1940, assim como o destino da Rosenthaliana e de muitas outras renomadas bibliotecas de Amsterdã.
As bibliotecas da cidade contêm uma cultura única, formada pela liberdade religiosa, intelectual e econômica que se tornou a marca registrada dessa cidade de comerciantes marítimos desde a Idade Média. Calvinistas, batistas, quacres, huguenotes, assim como intelectuais e livre-pensadores, foram à cidade pelo rio Amstel. Dois grupos de refugiados em especial colocaram sua marca na cidade e em suas bibliotecas: os judeus asquenazes que fugiram dos pogroms no leste e os judeus sefarditas expulsos da Península Ibérica. No século XVI, Amsterdã era um dos poucos lugares da Europa Ocidental em que os judeus podiam viver em relativa liberdade, o que levou a cidade a ser chamada de Jeruzalem van het Westen [Jerusalém do Ocidente].
Os imigrantes teriam um papel importante na ascensão da Holanda como uma potência internacional ao longo do século XVII. A vida comercial da cidade era especialmente importante, e era a base de seu poder. Amsterdã se tornou o berço de uma revolução econômica. A primeira empresa multinacional do mundo, a Companhia das Índias Orientais, nasceu aqui, assim como os princípios da primeira bolsa de valores moderna e um dos primeiros bancos nacionais do mundo.
Graças a essas novas instituições, a Holanda no século XVII era uma força dominante no comércio mundial e especialmente no comércio de especiarias com a Ásia. A rápida ascensão dos judeus sefarditas no comércio internacional foi facilitada pelo fato de eles já terem uma rede comercial estabelecida com as Américas de língua espanhola e por terem criado também uma rede com a Ásia. Mas isso também era consequência de um sistema de guildas que barrava a entrada de recém-chegados. Isso levou muitos sefarditas a se dedicarem à nova economia, que em pouco tempo mostrou ser consideravelmente mais lucrativa.[1] Algumas das maiores fortunas da cidade foram construídas por esses imigrantes, e, como consequência direta disso, também algumas das suas mais importantes bibliotecas.
A liberdade de Amsterdã servia não apenas às minorias, também ajudava os impressores. A liberdade e o comércio transformaram a Holanda no centro intelectual da Europa no século XVII, um ponto de disseminação de ideias novas, empolgantes e perigosas que se tornou possível com a imprensa. Livre-pensadores, escritores, filósofos e minorias religiosas foram para a cidade, onde podiam publicar o que em outros lugares da Europa levaria à excomunhão e à perseguição. Em Amsterdã, suas obras podiam ser impressas e depois enviadas para todo o continente com a ajuda da maior frota mercante do mundo.
A tolerância do governo holandês tinha menos a ver com idealismo do que com pura economia. Poucos estavam preocupados com o que estava sendo impresso, desde que alguém estivesse disposto a pagar, e a venda de ideias era um negócio excelente para o império comercial. E além dos livre-pensadores, os impressores de Amsterdã também serviam a governantes totalitários e fanáticos religiosos. Pedro, o Grande, da Rússia, concedeu a um impressor de Amsterdã um monopólio de quinze anos sobre a impressão de toda a literatura russa. Como muitos outros monarcas europeus, ele temia os perigosos impressores, e queria mantê-los a uma distância segura da Rússia. No século XVII, Amsterdã ficou conhecida como “a editora da Europa”.[2]
Amsterdã também se tornou um centro para a literatura judaica durante o século XVII, quando Menasseh ben Israel se tornou o primeiro judeu a colocar em funcionamento uma impressora em hebraico na Holanda, depois de seus pais fugirem da Inquisição em Portugal. Menasseh era muito mais do que um impressor; era um escritor, rabino e diplomata com uma rede internacional de contatos. Foi Menasseh quem pessoalmente convenceu Oliver Cromwell a permitir que os judeus voltassem para a Inglaterra na década de 1650 – de onde eles haviam sido expulsos no final do século XIX. Ele também foi professor do filósofo Baruch Spinoza e amigo de Rembrandt van Rijn. A impressora de Menasseh ben Israel e outras do mesmo gênero forneciam livros baratos a judeus de toda a Europa.[3]
“Temos uma coleção mais ou menos completa dos livros impressos por Menasseh ben Israel no século XVII. Acho que só falta um punhado deles. Mas também temos livros de vários outros impressores judeus de Amsterdã. Nenhuma outra biblioteca do mundo possui um acervo como esse”, diz Visser, apontando para as estantes à nossa volta na sala de leitura da Rosenthaliana. Nas prateleiras está uma seleção representativa do acervo com foco em história, religião e filosofia. Mas o que se vê aqui é apenas uma fração da biblioteca, que tem mais ou menos 100 mil livros, além de milhares de diários, panfletos, manuscritos e material de arquivo judaicos. Os mais antigos são manuscritos sobre festivais, eventos religiosos e lendas dos judeus datados do século XIII. Dentre as raridades está o primeiro livro impresso em Istambul, um incunábulo de 1493: Arba’ah Turim, do rabino Yaakov ben Asher, um livro sobre a lei judaica do século XIV impresso por judeus sefarditas expulsos em 1492 e que se estabeleceram no Império Otomano. Impressões até 1500 são consideradas incunábulos, porque depois dessa época as impressões eram feitas com tipos móveis. Era comum que muitos desses livros tivessem apenas um exemplar ou, no máximo, uma tiragem pequena. Acredita-se que mais ou menos 150 edições de livros em hebraico tenham sido impressas antes de 1500, das quais 34 podem ser encontradas na Rosenthaliana. O acervo também inclui cópias manuscritas do século XV dos comentários do filósofo árabe Averróis sobre os escritos científicos de Aristóteles.[4]
Apesar de o acervo hoje ser em grande medida dedicado à história dos judeus na Holanda, originalmente a biblioteca vem da Alemanha.
“As origens da biblioteca estão ligadas a Leeser Rosenthal em meados do século XIX. Ele era um rabino nascido na Polônia que trabalhava em Hannover para as famílias ricas da cidade, o que lhe deu a oportunidade de montar o acervo na época. Ele colecionava livros sobre a história dos judeus alemães, escritos religiosos e sobre o Iluminismo Judaico”, Visser me diz.
O Iluminismo Judaico, ou Haskalá, foi um movimento intelectual de judeus inspirado pelo Iluminismo francês. O fundador do movimento foi o judeu alemão Moses Mendelssohn, que tentou uma síntese da religiosidade judaica com o racionalismo filosófico da época. O movimento incentivou os judeus a romper seu isolamento cultural e a serem assimilados pelas sociedades da Europa, aprendendo novos idiomas e adotando novas profissões ligadas às ciências e às artes.
O acervo de Rosenthal acabou indo para a Holanda após sua morte em 1868, porque seu filho se mudou para Amsterdã.
“Quando Rosenthal morreu, a família tentou vender o acervo, mas ninguém queria comprar. Ele foi oferecido ao chanceler alemão Otto von Bismarck, para ficar na Kaiserliche und Königliche Bibliothek, em Berlim. Mas ele rejeitou”, diz Visser.
O acervo de Rosenthal era visto na época como uma das melhores coleções privadas judaicas da Alemanha. A biblioteca era composta de seis mil volumes e uma coleção de manuscritos. Em 1880, a família decidiu que iria doar o acervo para a Universidade de Amsterdã. A família também se ofereceu para pagar um bibliotecário, o que continuou a fazer até o começo da Primeira Guerra Mundial, quando caiu na ruína financeira depois de fazer investimentos na rede de ferrovias húngara.
O acervo cresceu rapidamente depois de ir para Amsterdã, onde foi complementado com literatura sobre os judeus da Holanda. Na época da Segunda Guerra Mundial a biblioteca havia multiplicado várias vezes de tamanho. “Alguns dos colecionadores judeus de Amsterdã esconderam seus livros na Rosenthaliana na esperança de que ficassem a salvo lá. Achamos que alguns desses livros ainda estão aqui, mas não sabemos como encontrá-los”, diz Visser, que poucos anos antes recebeu a missão de rastrear as coleções que ninguém sabia onde estavam.
O bibliotecário-chefe da Rosenthaliana, Herman de la Fontaine Verwey, que tinha bons contatos com colecionadores de Amsterdã, foi responsável pelo armazenamento clandestino de livros.
“Fontaine Verwey escreveu sobre um caso em que um colecionador ‘doou’ sua biblioteca. Se voltasse, ele receberia os livros de volta, do contrário eles ficariam para a biblioteca. Esse foi só um caso. Mas nunca conseguimos encontrar esses contratos, acho que eles foram destruídos depois da guerra, quando se presumiu que os donos jamais voltariam.”
Da população judia de Amsterdã, aproximadamente oitenta mil pessoas, apenas cerca de um quinto sobreviveu ao Holocausto.
“Depois da guerra, Fontaine Verwey não falava jamais desse assunto; nunca ficou claro quantos livros foram deixados no acervo. Tenho que admitir que fracassei nas minhas investigações. Ele levou o segredo para o túmulo, e agora isso é parte da história obscura desta biblioteca”, diz Visser.
Visser abre o livro de registros da Rosenthaliana de 1940. Depois de os nazistas invadirem a Holanda em maio, novos livros continuaram a ser catalogados por mais seis meses. Em 18 de novembro de 1940, alguém catalogou Educação hebraica na Palestina, de Eliezer Rieger, um dos fundadores da Universidade Hebraica em Jerusalém. O livro foi comprado por 2,65 florins. É o último registro, e depois dele só há linhas em branco. Nenhum novo livro foi catalogado nos seis anos seguintes. Naquele dia, a sala de leitura da Bibliotheca Rosenthaliana foi fechada pela SD. Os judeus que trabalhavam na biblioteca, e que constituíam a maior parte dos funcionários, foram imediatamente demitidos sem aviso prévio. Um deles foi o curador da biblioteca, Louis Hirschel, que escreveu abatido para um amigo: “Isso significou um fim temporário para a extraordinária história da Rosenthaliana”.[5]
A algumas centenas de metros da Bibliotheca Rosenthaliana, perto do canal Keizersgracht, fica uma casa branca de pedras de três andares. A julgar pelas fotografias em preto e branco que encontrei dos anos 1930, a casa não mudou em nenhum aspecto importante. Hoje ela é sede de um instituto para meios de comunicação e artes. O número 264 da Keizersgracht não é nem a mais antiga nem a mais bela casa da região do canal, mas tem uma história impressionante.
Na década de 1930, essa casa foi o epicentro de uma das mais importantes operações de resgate de arquivos e de pesquisa historiográfica. Paradoxalmente, poucos anos depois a mesma casa estava sendo usada como centro de uma das maiores operações de roubo de materiais de arquivo e de livros.
Em junho de 1940, poucas semanas depois da rendição da Holanda, membros da SD foram ao Keizersgracht para isolar a casa branca. A decisão não foi uma coincidência. Ela abrigava o Internationaal Instituut voor Sociale Geschiedenis (IISG) – o Instituto Internacional de História Social. A organização havia sido fundada em 1935 por Nicolaas Wilhelmus Posthumus, primeiro professor de história econômica do país na Nederlandsche Handelshogeschool. O objetivo do instituto era reunir, ou, mais precisamente, salvar, materiais de arquivo de movimentos de esquerda, como sindicatos e partidos socialistas, mas também coleções particulares importantes.
Hoje, o IISG fica no cais leste de Amsterdã, em um escritório moderno que, a distância, parece feito de papelão reciclado. Na entrada encontro Huub Sanders, pesquisador do instituto. Ele explica que foi seu envolvimento no estudo de movimentos de esquerda da década de 1970 que o levou ao instituto. “Fiquei interessado em saber por que o Arquivo Karl Marx estava em Amsterdã”, diz Sanders com um sorriso. É uma pergunta que leva à formação do instituto nos anos 1930 e a seu apaixonado fundador, Nicolaas Wilhelmus Posthumus. “Posthumus era um sujeito que sempre ia em busca de fontes primárias em economia e história social. Ele começou a colecionar materiais relativos à economia antes mesmo da Primeira Guerra Mundial.”
Era de esperar que o instituto fosse a primeira vítima das operações de saque dos nazistas na Holanda. Posthumus havia fundado o instituto como uma resposta direta ao avanço do fascismo na Europa. Uma torrente de refugiados da União Soviética, da Alemanha e da Itália tinha ido para a Europa Ocidental ao longo da década de 1930. Com eles, seguiam documentos valiosos, arquivos e livros. A ideia de Posthumus era, por meio da fundação do instituto, criar um porto seguro para arquivos pertencentes a socialistas, sindicatos e movimentos de trabalhadores que estavam sendo implacavelmente perseguidos por fascistas e bolcheviques.
“Posthumus era a pessoa certa para fazer isso. Ele próprio era um socialista. E tinha uma rede internacional de contatos na política e na academia. A motivação dele era salvar a herança histórica do movimento dos trabalhadores”, diz Sanders, enquanto entramos no elevador industrial que desce até as entranhas do IISG. Aqui, em centenas de metros de prateleiras cinza escuro, fica o maior arquivo do mundo de história social: ao todo, ele contém quatro mil arquivos separados, que vão da Anistia Internacional ao Greenpeace, passando pela Confederação Europeia de Sindicatos, entre outros. Também há milhões de revistas e periódicos. Em uma prateleira, envoltas em papel pardo, ficam as pilhas da revista acadêmica sueca Arbetaren [O trabalhador] de 1932.
Uma parte singular e valiosa do grande arquivo é o que Posthumus, com um pequeno grupo de colegas, conseguiu adquirir em poucos anos no fim da década de 1930. Sanders me leva até uma prateleira protegida por um biombo que não deixa passar luz, que ele desliza para o lado num gesto dramático. Os documentos estão dispostos na prateleira atrás de um vidro.
“Este é o manuscrito do Manifesto Comunista”, diz Sanders, apontando para papéis embranquecidos com linhas escritas numa caligrafia apertada levemente inclinada para a frente. Pego de surpresa, pergunto se esse é realmente “o único”.
“Imagino que só possa existir um”, diz Sanders, rindo.
Os papéis, cobertos de emendas e acréscimos, são quase ilegíveis. Mas consigo ver a assinatura de Karl Marx. Também em evidência estão algumas páginas manuscritas de Das Kapital, uma ata da Primeira Internacional de 1864, e documentos de Leon Trótski.
O Arquivo Karl Marx e Friedrich Engels é composto de mais de cinco prateleiras contendo materiais, anotações, manuscritos e uma longa correspondência entre os dois homens. O acervo foi reunido pelo Partido Social-Democrata alemão e contrabandeado para fora da Alemanha nazista junto com os arquivos do partido em 1933. Os social-democratas alemães, cujo patrimônio havia sido confiscado na Alemanha, passavam por necessidades financeiras, e sua única opção foi vender o arquivo. O mais impaciente candidato a comprador era o Instituto Marx-Engels-Lênin, em Moscou, em outras palavras, Josef Stálin. Arquivos que podiam remontar ao fundador da ideologia eram colecionados freneticamente por lá.
“Eles estavam dispostos a pagar mais. Mas ainda bem que o partido percebeu que seria vergonhoso vender os arquivos para Stálin. Em vez disso, Posthumus conseguiu comprá-los”, diz Sanders.
Documentos da Primeira Internacional foram comprados do partido, junto com o arquivo dos próprios social-democratas. O trabalho de Posthumus para salvar o legado histórico dos socialistas na Europa foi um sucesso fenomenal. O arquivo do movimento anarcossindicalista havia sido retirado da Espanha antes de a Catalunha cair diante das tropas de Franco. Vários arquivos socialistas também foram salvos dos nazistas depois da anexação da Áustria. As coleções particulares eram igualmente impressionantes – o instituto havia conseguido os arquivos dos anarquistas Mikhail Bakunin e Max Nettlau. Além disso, arquivos importantes da Revolução Russa foram comprados, antes pertencentes ao Partido Socialista Revolucionário e aos mencheviques.
Posthumus também abriu filiais do instituto em Paris e em Oxford. A sede parisiense recebeu uma coleção importante de documentos de Leon Trótski, doada por seu filho Lev Sedov. Em 1936 ficou evidente que a ameaça partia não só da direita, quando agentes do temido serviço de segurança de Stálin, o GRU, entraram na filial de Paris na rue Michelet e roubaram os mais importantes documentos de Trótski. Mas esse roubo foi razoavelmente pequeno comparado com o que havia sido salvo. O regime sabia que o instituto havia surrupiado arquivos valiosos bem debaixo do nariz do governo nazista. “Em relatórios alemães, o instituto é descrito como ‘um centro intelectual da luta marxista contra o fascismo’. É por isso que eles achavam tão importante pôr as mãos no acervo do instituto”, diz Sanders.
Para os nazistas, o Arquivo Marx e Engels era o Santo Graal. Sendo ao mesmo tempo judeu e pai do comunismo, Marx era considerado um dos cérebros por trás da conspiração mundial sionista. O instituto de Posthumus também foi incluído na conspiração, e depois de seu fechamento um relatório afirmava que a invasão da Holanda havia impedido o surgimento de “uma poderosa organização global”.[6]
A missão de Nicolaas Wilhelmus Posthumus de salvar os registros históricos do movimento de trabalhadores da Europa chegou a um fim trágico e abrupto no verão de 1940, quando a casa branca no número 264 da Keizersgracht foi lacrada. Posthumus não só viu seu arquivo ser roubado como também perdeu seu cargo de professor. Quem se mudou para a casa foi a recém-criada organização de Alfred Roosenberg, a Einsatzstab Reichsleiter Roosenberg (ERR), que a transformou em um quartel-general das operações de saque de Roosenberg na Holanda. Reichsleiter [líder nacional] era uma referência à patente de Roosenberg no Partido Nazista, o segundo maior na hierarquia do NSDAP. Os líderes nacionais formavam o primeiro escalão do partido e só respondiam ao próprio Adolf Hitler.
A ERR foi criada em junho de 1940, como consequência direta da bem-sucedida guerra no front ocidental. O início da guerra havia suspendido temporariamente os planos de construção da Hohe Schule der NSDAP perto de Chiemsee. Mas os preparativos para a criação da escola continuavam, e iam se intensificar à medida que as hostilidades aumentassem.
As atividades ideológicas da Amt Roosenberg, que antes haviam se concentrado principalmente em assuntos domésticos, agora se ampliavam para uma operação internacional. Até 1939 os nazistas haviam se dedicado a combater inimigos internos, como judeus alemães, socialistas, comunistas, liberais, maçons e católicos. Essa guerra ideológica agora iria se espalhar pela Europa no rastro das vitórias da Wehrmacht.
Os nazistas combatiam em duas frentes: primeiro, por meios convencionais, com seus exércitos enfrentando outros em conflitos armados, e, segundo, com uma guerra contra a oposição ideológica. Essa segunda parte não era um conflito que ocorria em campo de batalha, era uma guerra silenciosa de desaparecimentos, terror, tortura, assassinato e deportações, que tinha como soldados do front a Gestapo, a SD e outras partes da máquina de terror do regime. Era uma guerra em que a intenção não era vencer e, sim, liquidar. No front oriental, inicialmente na Polônia, mas mais tarde também na União Soviética, as guerras convencional e ideológica se fundiram integralmente pela primeira vez, com consequências terríveis.
A guerra ideológica não se combatia apenas pelo uso do terror, pois também se tratava de um combate entre pensamentos, memórias e ideias, uma batalha para defender e legitimar a visão nacional-socialista do mundo. Nessa guerra, por assim dizer, a ERR mobilizava a infantaria acadêmica. A organização jamais se envolveria em atos sanguinários e brutais, que ficavam nas mãos da SS. A ERR só era acionada depois de essa parte estar concluída. Quando a organização foi formada no verão de 1940, Alfred Roosenberg já havia selecionado mais ou menos uma dúzia de áreas de interesse para a Hohe Schule. Para ele, o complexo da Hohe Schule perto de Chiemsee era uma mera manifestação arquitetônica de um projeto com ambições bem mais grandiosas. A Hohe Schule estendia seus tentáculos como um polvo por todo o Terceiro Reich, por meio de uma série de institutos de pesquisa localizados em cidades de todo o país, que agiam como entidades independentes sob o guarda-chuva da Hohe Schule. Pelo menos dez institutos independentes foram planejados, cada um com uma área de pesquisa específica:
Munique: Instituto de História Indo-Europeia
Stuttgart: Instituto de Biologia e Estudos Raciais
Halle: Instituto de Estudos Religiosos
Kiel: Instituto de Pesquisa Alemã
Hamburgo: Instituto de Pesquisa Colonial Ideológica
Münster e Graz: Instituto de Folclore Alemão
Praga: Instituto de Estudos Orientais
Römhild: Instituto de Estudos Celtas
Estrasburgo: Instituto para o Estudo do Germanismo e do Galicismo
Frankfurt: Instituto para Pesquisa da Questão Judaica
O Institut zur Erforschung der Judenfrage, mencionado por último, o maior de todos, foi o único a ser oficialmente inaugurado durante a guerra. Roosenberg abriu o instituto em Frankfurt em março de 1941, com uma conferência sobre a “questão judaica”. A tarefa que se punha diante da ERR era proteger arquivos e bibliotecas em territórios ocupados para que eles pudessem ser usados posteriormente pelos institutos. Mas também havia planos de criação de uma ambiciosa biblioteca na Hohe Schule: a Zentralbibliothek der Hohen Schule. Em 1939, Roosenberg havia escolhido Walter Grothe como diretor e bibliotecário-chefe, com a responsabilidade de montar o acervo. Grothe era um filólogo que havia trabalhado anteriormente na Rothschild’sche Bibliothek, em Frankfurt, fundada pelo ramo de Frankfurt da família Rothschild no final do século XIX.
Ele havia entrado para o partido em 1931 e, entre outras coisas, trabalhou na função denominada Parteiredner, um orador público treinado em retórica pelo NSDAP. Em um documento de outubro de 1941, Grothe descreveu o objetivo da Zentralbibliothek der Hohen Schule: “A meta é criar a primeira grande biblioteca científica nacional-socialista, uma espécie completamente nova de biblioteca”.[7] Em janeiro de 1940, Adolf Hitler deu instruções sobre como deveriam ocorrer os trabalhos da Hohe Schule durante a guerra:
“A construção [da Hohe Schule] irá ocorrer depois da guerra. Mas para facilitar os preparativos, determino que o líder do Reich, Alfred Roosenberg, inicie os trabalhos preparatórios – particularmente para que a pesquisa e a criação de uma biblioteca possam ir em frente. Quaisquer departamentos do Estado ou do partido que sejam afetados por isso devem dar a ele todo o apoio possível nesse empreendimento.”
Seis meses depois Roosenberg foi encarregado de executar as seguintes operações nos territórios ocupados: primeiro, confiscar artefatos de valor cultural considerados “propriedade judaica sem dono”. Segundo, fazer buscas em bibliotecas e arquivos à procura de materiais de valor para a Alemanha. E, por fim, procurar e confiscar materiais pertencentes a Igrejas e ordens maçônicas.[8]
No verão de 1940, a ERR parisiense estabeleceu um quartel-general para os territórios ocidentais ocupados, denominado Amt Ocidental. No mesmo ano uma rede operacional foi estabelecida na Europa Oriental com vários grupos de trabalho locais encarregados de fazer batidas, classificar e confiscar materiais – conhecida como Hauptarbeitsgruppen. Cada grupo era responsável por sua própria área geográfica: França, Bélgica e Holanda. Subordinadas a esses grupos, várias unidades especializadas se dedicavam a diferentes tipos de materiais. A Sonderstab Bildende Kunst se dedicava às artes, enquanto outros departamentos cuidavam de música, igreja, arqueologia e história antiga. A Sonderstab Musik, que saqueava instrumentos, partituras e literatura musical, roubou aproximadamente oito mil pianos somente na França.[9] O primeiro departamento criado dentro da ERR foi a Sonderstab Bibliothek der Hohen Schule – esse grupo destinado a acervos bibliográficos era liderado por Walter Grothe, chefe da Zentralbibliothek der Hohen Schule; e Wilhelm Grau, chefe do instituto de Roosenberg em Frankfurt.[10] A ERR seria responsável pela pilhagem de mais de mil grandes bibliotecas na Europa Ocidental.
Na Keizersgracht, em Amsterdã, a ERR estabeleceu uma operação de tamanho considerável com dezenas de funcionários – chefiados pelo rigoroso SS-Sturmbannführer Alfred Schmidt-Stähler, que orgulhosamente assinava suas iniciais em alfabeto rúnico inspirado pela SS. O fato de os membros da SS também estarem trabalhando na Amt Roosenberg é mais um detalhe complicado na estrutura de poder do Terceiro Reich. Integrantes da SS eram encontrados em todas as áreas do Estado nazista e da máquina do partido, apesar de sua lealdade se dever principalmente a quem pagava seus salários.
Mais tarde, no outono de 1940, a ERR recebeu a responsabilidade de saquear arte na França, o que acabaria se transformando na maior operação da organização durante a guerra. No entanto, o roubo de obras de arte seria uma atividade secundária do ponto de vista de Alfred Roosenberg. A maior parte das obras de arte confiscadas pela ERR foi vendida, reservada ao Führermuseum de Adolf Hitler em Linz, ou repassada para a coleção particular de Hermann Göring em Carinhall. Hitler distribuía o lucrativo butim entre várias organizações. Um dos motivos para que essa tarefa fosse atribuída frequentemente, mas não sempre, à ERR era o fato de Roosenberg não ter nenhum plano para os objetos de arte nem qualquer interesse particular por eles.
Mas a história era completamente diferente quando se tratava de livros, arquivos e documentos, pelos quais a ERR e Roosenberg se envolviam em ferozes batalhas burocráticas com uma longa fila de concorrentes, principalmente com a SS e a Seção VII da RSHA. Era um confronto entre dois projetos concorrentes de biblioteca, em que se utilizava de quaisquer meios disponíveis para a guerra interna continuamente travada dentro do movimento: subterfúgios, mentiras, adulação, alianças e barganhas. Mas muitas vezes a competição entre organizações e líderes no Terceiro Reich era também uma questão de dinamismo – em outras palavras, tratava-se de saber quem chegava primeiro. A SS, com sua enorme força militar e policial, tinha evidente vantagem. A organização de Roosenberg não tinha soldados próprios; no entanto, ele equilibrava isso com várias alianças estratégicas, sendo a mais importante com Hermann Göring. Certamente era uma aliança curiosa, porque Göring provavelmente era a pessoa menos ideológica no alto escalão da liderança nazista, mas isso servia a um interesse comum. Roosenberg conseguia os soldados de que precisava e o transporte da Luftwaffe, e Göring podia ficar com todos os objetos de arte que conseguisse enfiar em seu trem particular.
A enorme escala e intensidade da operação de saque nazista precisam ser compreendidas desse ponto de vista – seu vigor era alimentado pela feroz vida interna do Terceiro Reich. Mas para que essa competição não degenerasse em pura anarquia, era preciso seguir regras e regulamentos. Por isso, uma aliança pouco provável foi formada entre a SS e a Amt Roosenberg. Himmler ficaria com as bibliotecas e arquivos que fossem úteis para “objetivos de inteligência” – em outras palavras, material útil para a SD e a Gestapo em sua luta contra inimigos da nação. Roosenberg ficaria com as bibliotecas e arquivos que tivessem valor para pesquisas ideológicas. Em termos simples isso podia ser visto como uma subdivisão entre material “histórico” e “contemporâneo”. Mas na realidade as coisas nunca eram tão simples.
Uma das primeiras batalhas, uma luta cruel e prolongada, foi travada pelo valioso arquivo do IISG na Keizersgracht. Reinhard Heydrich tentou garantir que o arquivo ficasse com a RSHA, enquanto Arthur Seyss-Inquart, Reichskommissar na Holanda, queria mantê-lo em Amsterdã. Robert Ley, líder do movimento sindical nazista, afirmava que sua organização era a destinatária apropriada para esse legado socialista.[11] A ERR ganhou a briga e ficou com o arquivo, que realmente ficava na jurisdição da RSHA, porque Hitler acabou dando seu apoio a Roosenberg – e porque a ERR havia tomado posse fisicamente do arquivo. A ERR também foi a primeira a entrar na sede parisiense do instituto, que abrigava algumas das partes mais importantes do acervo pertencente a migrantes russos. O escritório foi invadido apenas três dias depois da queda de Paris. No entanto, apesar de ter chegado antes da concorrência, a ERR perdeu a batalha burocrática pelo controle desse arquivo, que ficou nas mãos da SS.
Depois de a ERR ter feito uma primeira avaliação do arquivo e da biblioteca do IISG, ficou confirmado que aquele foi o maior confisco realizado pela organização na Holanda. Somente na biblioteca do instituto havia mais de 100 mil livros, e o arquivo continha pelo menos 180 metros de estantes de material. A ERR levou até 1943 para embalar tudo em nove grandes caixas de madeira, enviadas para a Alemanha por trem e navios cargueiros. No entanto a ERR não encontrou uma parte essencial do arquivo: os documentos de Karl Marx e Friedrich Engels.
“Depois do Acordo de Munique de 1938 quando as potências ocidentais deram a Tchecoslováquia a Hitler, Posthumus estava convencido de que a guerra era inevitável, e por isso enviou o arquivo de Marx e Engels para a filial do instituto em Oxford. É preciso admitir que ele teve muita visão”, diz Huub Sanders, sentado em seu gabinete.
Os funcionários do IISG também tiveram tempo para destruir os papéis mais comprometedores, como a correspondência com prisioneiros políticos da Alemanha. Posthumus foi interrogado pela SS, mas como não era politicamente ativo, e por isso visto como um acadêmico, conseguiu ser libertado. A perda do IISG não impediu que Nicolaas Wilhelmus Posthumus desse imediatamente início à montagem de outro acervo.
“É incrível que ele tenha conseguido criar um novo instituto, que passou a recolher materiais sobre a guerra enquanto ela ainda estava em curso. Era parte da natureza dele estar sempre em busca de materiais, independentemente das circunstâncias. Esse instituto foi formalmente criado três dias depois da libertação da Holanda, em maio de 1945, e hoje é conhecido como Instituut voor Oorlogs-, Holocausten Genocidestudies. No entanto, quando Posthumus voltou para a Keizersgracht depois da libertação da Holanda, não havia restado muita coisa. Tudo havia sido roubado; estava tudo vazio. Os nazistas levaram até a mobília.”
Não muito longe da Casa de Rembrandt fica a Sinagoga Portuguesa, um grande prédio de tijolos aparentes do final do século XVII. A sinagoga, descrita como uma das mais belas do mundo, é um monumento à presença dos judeus sefarditas em Amsterdã. Do lado de fora, encontro Frits J. Hoogewoud, um sujeito de uns 70 anos, que joga os braços para o ar como um regente enquanto fala. Hoogewoud, hoje aposentado, foi bibliotecário-chefe da Bibliotheca Rosenthaliana. Ele tomou como missão de vida mapear as bibliotecas judaicas da cidade e descobrir o que havia acontecido com cada uma durante a guerra.
A sinagoga está cercada por uma construção baixa, de tijolos, que funciona quase como um muro em torno do perímetro. Sigo Hoogewoud até uma das casas do lado de fora da sinagoga onde fica a Ets Haim, a célebre biblioteca – o motivo da minha visita. A mais antiga biblioteca judaica ainda em uso, a Ets Haim é o centro cultural e intelectual da comunidade sefardita da cidade desde o século XVII.
“A biblioteca tem quase 400 anos. Começou como escola para judeus que fugiram da Espanha e de Portugal”, diz Hoogewoud. A luz é suave nas três grandes salas da biblioteca, forradas, do chão até o teto, de livros em tons marrom-dourado, vermelho-vinho e azul-cobalto. Por duas aberturas octogonais é possível vislumbrar o andar superior da biblioteca, ao qual se chega por uma bela escada em espiral de madeira.
“A biblioteca é absolutamente singular, este prédio foi erigido especificamente para ela, e foi construído para deixar que a luz natural entre. Era perigoso ter chamas na biblioteca, claro”, diz Hoogewoud, apontando para as claraboias.
O que realmente torna a Ets Haim singular é o fato de ela refletir a crise existencial enfrentada por muitos judeus sefarditas depois de chegar a Amsterdã. “Muitos judeus sefarditas haviam se convertido ao cristianismo. E de repente eles chegaram a um lugar onde podiam novamente praticar sua religião original. Não era uma coisa fácil. Eles precisavam descobrir sua identidade, e fizeram isso lendo, escrevendo e participando de debates. Quem eles realmente eram? A fé judaica é mais verdadeira do que a cristã? Esta biblioteca é o produto dessa busca”, Hoogewoud explica enquanto nos instalamos na sala de leitura da biblioteca.
A identidade sefardita se formou durante uma das verdadeiras idades de ouro da história. Os judeus espanhóis e portugueses levaram consigo para suas novas casas uma cultura educacional sem paralelos – que, por muitos anos, foi a melhor da Europa.
A Península Ibérica, chamada Al-Andalus pelos árabes, havia sido conquistada pelos muçulmanos do Norte da África, no início do século VIII. Foi o começo de uma época de quase quinhentos anos de alta cultura islâmica, com excelência em áreas como arte, astronomia, filosofia, literatura e poesia – que devia muito a uma invenção que havia se disseminado a partir do Oriente. Os chineses haviam inventado um modo de produzir papel já na dinastia Han em 200 a.C., mas foram os muçulmanos que levaram a tecnologia para a Europa.[12] A disseminação do papel facilitou o movimento muçulmano de tradução, em que obras da era clássica de várias disciplinas eram copiadas e traduzidas para o árabe. O califado, que financiava grande parte do trabalho, enviou eruditos para todo canto do mundo para obter manuscritos. O centro desse movimento era a Casa da Sabedoria, em Bagdá – o equivalente à biblioteca de Alexandria no mundo muçulmano – onde centenas de milhares de textos de literatura romana, grega, chinesa, persa e indiana foram traduzidas, copiadas e comentadas. Grande parte da tradução era feita por cristãos sírios e judeus, proficientes em grego, latim e árabe.
Córdoba se tornou outro centro desse movimento. A concorrência entre a dinastia Omíada da Península Ibérica e a dinastia Abássida, que governava a partir de Bagdá, não era apenas militar, era também cultural. No século x, Córdoba tinha uma das maiores bibliotecas do mundo – acredita-se que a biblioteca omíada contivesse cerca de 400 mil volumes. Não havia nada comparável no mundo cristão e seriam necessárias centenas de anos para que o uso do papel se tornasse amplamente disseminado.
Al-Andalus também foi uma idade de ouro para a cultura judaica. Assim como em Bagdá, muitos tradutores eram estudantes e acadêmicos judeus. Subordinadas aos governantes muçulmanos, as comunidades judaicas gozavam de um alto nível de autonomia, e os intelectuais judeus se dedicavam à filosofia, à medicina, à matemática, à poesia e aos estudos religiosos. O motivo para a existência de tantos intelectuais, tradutores e eruditos judeus no mundo muçulmano era a singular cultura escolástica judaica, que, mesmo na época, já tinha mais de mil anos de idade, com base em um discurso intelectual, religioso e filosófico sobre como se devia interpretar a Torá e viver de acordo com ela.
Muitos judeus sábios de Al-Andalus tinham cargos de destaque na corte. No entanto, apesar de terem maior liberdade do que na Europa cristã, os judeus não escaparam totalmente de perseguições. Quando a estabilidade política que havia sido a marca de Al-Andalus começou a se desfazer depois do ano 1000, a insegurança para os judeus sefarditas tornou-se cada vez maior. Um terrível despertar veio quando a população judaica de Granada foi massacrada em 1066, em um pogrom muçulmano. A grande catástrofe ocorreu depois de o último bastião muçulmano de Granada cair diante dos cristãos espanhóis em 1492. Os conquistadores cristãos deram três escolhas à população judia da cidade: a conversão ao catolicismo, e a consequente permissão para permanecer ali; o exílio da Espanha; e, caso não escolhessem nem se converter nem emigrar, a terceira opção era a morte. A maioria decidiu emigrar para o leste e formar novas colônias em Veneza, Belgrado e Tessalônica. Outros foram para o oeste, incluindo os judeus portugueses que mais tarde foram expulsos de Portugal.[13]
Mas milhares de judeus sefarditas decidiram se converter para pode ficar. Apesar dessa concessão, os marranos – ou conversos, como eles eram comumente chamados – jamais foram aceitos. A Inquisição do século XVI perseguiu implacavelmente os marranos, milhares dos quais foram vitimados pela tortura e pela morte na fogueira. No final a maior parte dos marranos acabou forçada a migrar, encontrando no exílio mais humilhações e isolamento, já que muitas vezes eram rejeitados pelas comunidades judaicas.
Muitos membros desse povo duplamente condenado decidiram ir para a Holanda, onde foram tratados com mais compreensão do que na maior parte dos lugares. Eles são o tema do livro com o buraco de bala na Bibliotheca Rosenthaliana. Samuel Usque era um judeu marrano português, e Consolaçam às tribulaçoens de Israel era um livro de autoajuda religioso para judeus convertidos, escrito em 1553. Ele conta a história das longas aflições do povo judeu, e fala sobre o consolo que pode ser encontrado no estudo da Torá e dos profetas. Usque diz que os marranos só podem ser libertados de seus tormentos voltando abertamente à fé judaica. A maior parte dos judeus que foram para Amsterdã fez exatamente isso, mas mantendo também certos aspectos de sua cultura singular.
“O que os judeus sefarditas trouxeram para cá foi a fusão cultural que havia ocorrido na Espanha entre as culturas judaica, árabe, cristã e até mesmo a cultura clássica. É possível ver as influências nas belas ilustrações dos manuscritos que temos aqui. Há padrões florais surpreendentemente abundantes, inspirados na arte muçulmana. Eles foram em grande medida formados pela cultura de onde vieram. É evidente que eles não queriam simplesmente deixar tudo para trás, que queriam também lembrar a terra perdida”, diz Heide Warncke, bibliotecária da Ets Haim, que se junta a nós na sala de leitura.
A biblioteca foi fundada em 1616 e hoje contém cerca de trinta mil livros e mais de seiscentos manuscritos, o mais velho datado de 1282. O acervo cobre um amplo espectro de temas: poesia, gramática, caligrafia, filosofia, misticismo e religião. “A biblioteca reflete o desenvolvimento da comunidade sefardita em Amsterdã por um período de quatrocentos anos. Aqui você pode mapear as mudanças espirituais, religiosas e culturais pelos quais essa sociedade passou”, Hoogewoud me diz.
Os judeus sefarditas que foram marranos formariam sua própria comunidade e sua própria identidade cultural dentro da sociedade judaica. Eles sempre foram uma minoria, mesmo dentro da população judaica. Mas depois de vários séculos, como havia acontecido durante a expulsão da Espanha em 1492, a perseguição também chegou à “Jerusalém do Ocidente”.
“Na verdade, logo depois do começo da ocupação em 1940, as coisas não mudaram muito. A vida continuava como antes. Além disso, as atividades culturais não pararam, as pessoas escreviam livros, organizavam seminários e montavam peças. Para nós é difícil entender, agora que podemos ver tudo em retrospecto. Mas eles estavam tão acostumados à liberdade e à tolerância que não conseguiam conceber que aquilo seria tirado deles”, diz Warncke.
“Tudo aconteceu aos poucos. Passo a passo a população judia foi isolada dos outros, assim como os nazistas haviam feito na Alemanha”, Hoogewoud interrompe.
A ERR não tinha pressa para confiscar as bibliotecas judaicas. Só em agosto de 1941 teve início uma operação que se concentrou nos acervos judaicos mais importantes. No primeiro ano, a preocupação foi quase unicamente com oponentes políticos como o IISG, a Igreja e ordens maçônicas. Não foi surpresa que os acervos judeus tenham recebido os holofotes em 1941, já que esse foi o momento em que a política em relação aos judeus se tornou mais dura. Desde o começo do ano, os judeus da Holanda foram forçados a se registrar, e em fevereiro começaram a acontecer as primeiras deportações para Buchenwald. Em agosto, a SD fechou várias bibliotecas judaicas, entre elas a Ets Haim e a Rosenthaliana, cujas salas de leitura já estavam fechadas para o público em geral. A Bet Hamidrash, uma valiosa biblioteca dos judeus asquenazes, também foi fechada. As bibliotecas não estavam disponíveis para ninguém exceto para os integrantes da SS e da ERR. O que eles não haviam percebido é que a maior parte dos livros mais valiosos já havia sido escondida.
Seis meses antes a congregação portuguesa havia escolhido suas obras de arte mais valiosas, que foram enviadas para o bunker do Rijksmuseum sob as dunas de areia perto do litoral. Eles também retiraram cinco caixas de livros e manuscritos da Ets Haim, incluindo oito incunábulos hebraicos, sessenta manuscritos dos séculos XVII e XVIII e mais de 150 ilustrações impressas. As caixas foram colocadas em um cofre do banco Kas-Associate on Spuistraat, em Amsterdã.[14] O motivo dessa precaução não era o risco de saque, que na época provavelmente não era levado muito em conta, e sim o medo de que a biblioteca pudesse ser avariada ou destruída por um bombardeio aéreo.
A operação de resgate de Fontaine Verwey na Rosenthaliana teve maior consciência da precariedade da situação. O antigo curador da biblioteca, Louis Hirschel, organizou uma lista secreta dos textos mais valiosos que precisavam ser salvos. Juntos, os dois entraram no prédio lacrado e tiraram de lá, entre outras coisas, mais ou menos sessenta manuscritos, cerca de vinte incunábulos e um desenho de Spinoza do século XVII, todos escondidos no subsolo.[15] Também esconderam o catálogo da biblioteca para a ERR não poder checar o que havia desparecido.
A ERR estava interessadíssima em pôr as mãos na Ets Haim e na Rosenthaliana, e pode-se perceber isso em um relatório semanal enviado pelo quartel-general da organização na Holanda, no mesmo mês em que as bibliotecas foram lacradas:
É possível que fontes anteriormente desconhecidas da era Cromwell possam ser descobertas aqui, relativas tanto à chamada Revolução Gloriosa de 1668 quanto à aliança entre Inglaterra e Holanda. Em especial, podem surgir novas conclusões sobre as relações de Cromwell com os judeus – e talvez até sobre a influência judaica na criação do serviço secreto inglês.[16]
O relatório demonstra quanto o trabalho da ERR tinha motivações ideológicas. A principal razão para que as bibliotecas e os arquivos fossem roubados não era o fato de se tratar de “propriedade judaica” e, sim, por se acreditar que isso pudesse revelar materiais que ajudassem a dar sustentação à teoria de uma conspiração judaica mundial. Havia um histórico particularmente curioso no interesse dos nazistas pelas relações entre judeus e britânicos. Hitler e Roosenberg eram ambos admiradores do Império Britânico e achavam fascinante que uma minoria fosse capaz de governar a Índia, com uma população na casa das centenas de milhões de pessoas. Roosenberg tentou até o fim fazer com que a Alemanha nazista firmasse um pacto antibolchevique com a Grã-Bretanha. O próprio Hitler seguia a mesma linha de pensamento. A guerra com a Grã-Bretanha, e a teimosa recusa em fazer as pazes, era, em parte, culpa da “influência judaica”. O fato de Cromwell, como resultado da diplomacia de Menasseh ben Israel, ter permitido que os judeus voltassem à Inglaterra era visto como evidência dessa influência judaica.
“É uma maneira ridícula de ver as coisas. Achar que o verdadeiro inimigo era a conexão judaico-britânica. Mas é importante entender que eles realmente viam as coisas assim. Era assim que os nazistas legitimavam suas ações. Em última análise, eles queriam provar que o nazismo estava certo, que essa era a lógica do que eles estavam fazendo”, Hoogewoud explica.
Em 1942, tanto a Ets Haim quanto a Rosenthaliana foram visitadas por um certo Johannes Pohl, que Alfred Roosenberg havia nomeado no ano anterior para chefiar a seção judaica do Institut zur Erforschung der Judenfrage, em Frankfurt. Pohl tinha sido padre católico, mas se converteu ao nacional-socialismo. No fim da década de 1920, ele havia sido um promissor estudioso da Bíblia cuja tese de doutorado era sobre o profeta Ezequiel. No início dos anos 1930 ele passou vários anos em Jerusalém, estudando arqueologia bíblica.
Quando voltou à Alemanha em 1934, Pohl desistiu do sacerdócio para se casar e começou a publicar artigos em periódicos antissemitas como o Der Stürmer. Estranhamente, ele nunca havia expressado ideias antissemitas durante seus anos de pesquisa, o que parece sugerir ou que ele fosse um oportunista ou que havia cultivado um antissemitismo pessoal, que apenas ousou articular quando os nazistas assumiram o poder. Pohl alertou especialmente sobre os perigos do Talmude, sobre o qual também escreveu um livro antissemita.[17]
Pohl era um defensor da Judenforschung ohne Juden – pesquisa sobre judeus sem judeus – o que o levou aos círculos de Roosenberg e também ao instituto em Frankfurt, onde mais tarde ele se transformaria no maior saqueador de livros da organização.
Depois da inspeção de Pohl em 1942, ficou decidido que tanto a Ets Haim quanto a Rosenthaliana deviam ser levadas para o instituto em Frankfurt. No outono de 1941, a ERR e a RSHA também começaram a saquear coleções particulares na Holanda. Uma das mais conhecidas bibliotecas a ser roubada foi a de Isaac Leo Seeligmann, filho do historiador, bibliófilo e sionista Sigmund Seeligmann, morto em 1940. Isaac Leo Seeligmann herdara uma das melhores bibliotecas particulares judaicas na Europa. Ele próprio era um estudioso da Bíblia e professor de história judaica, e havia seguido os passos do pai ao montar um impressionante acervo por conta própria. Juntas, as duas bibliotecas continham de 20 mil a 25 mil livros.[18] A RSHA assumiu o controle do acervo de Seeligmann, provavelmente por seu pai ter sido um conhecido sionista. Outra valiosa coleção de livros judaica confiscada pela ERR pertencia a Paul May, o banqueiro, que se suicidou junto com a esposa ingerindo cianeto no mesmo dia em que a Holanda se rendeu aos nazistas.
Em 1942, a ERR comandou a operação M-Aktion [algo como Ação Mobília], junto com a Zentralstelle für jüdische Auswanderung [Escritório Central para Migração Judaica], que cuidou da deportação dos judeus holandeses para campos de concentração. Como parte da operação, casas pertencentes a judeus deportados foram saqueadas para fornecer artigos domésticos a soldados e outros alemães que estavam se estabelecendo no leste.
Alfred Schmidt-Stähler escreve em um relatório que a organização realizou 29 mil incursões bem-sucedidas na Holanda.[19] Na maior parte dos casos as casas já não tinham mais mobília ou artigos domésticos, que haviam sido levados em trens ou navios para a Alemanha ou para a Europa Oriental. A operação também fez uma limpeza da herança literária dos judeus holandeses, esvaziando até as menores estantes e pegando volumes esparsos de mesinhas de cabeceira. Estima-se que a ERR tenha roubado entre 700 mil e 800 mil livros. Alguns foram distribuídos para escolas na Holanda ou entregues a nazistas locais.[20] Outros foram vendidos ou enviados para a Alemanha.
Só em meados de 1943 a ERR finalmente terminou de encaixotar a Ets Haim. Pior ainda, a organização encontrou uma lista de documentos que haviam sido levados para um cofre num banco, uma lista que os funcionários haviam se esquecido de esconder. A secretária da congregação foi levada à força até o banco, acompanhada por funcionários da ERR e da SD, onde a maior parte dos livros e manuscritos foi confiscada. Em agosto o conteúdo da biblioteca, 170 caixas, foi colocado em um trem para Frankfurt.
A Rosenthaliana só sairia de Amsterdã um ano depois, já que a biblioteca havia se tornado alvo de mais uma disputa. O acervo pertencia à Universidade de Amsterdã, e portanto era propriedade pública, não judaica. Até mesmo o prefeito pró-Alemanha de Amsterdã entrou em cena para salvar o acervo e mantê-lo na Holanda. Enquanto a guerra de palavras era travada, Herman de la Fontaine Verwey aproveitou a oportunidade para tirar da biblioteca os documentos escondidos no subsolo. No outono de 1943 a universidade começou a evacuar outros acervos valiosos para bunkers sob as dunas de areia em Zandvoort, perto de Haarlem. Ao esconder os manuscritos da Rosenthaliana em meio a esses documentos Fontaine Verwey conseguiu mantê-los em segurança.[21] Apesar dos protestos, ninguém conseguiu impedir que a ERR se apossasse da Rosenthaliana. “A lei da propriedade não significa nada quando se trata de objetos judaicos”, foi a resposta final de Alfred Roosenberg ao prefeito de Amsterdã. Em junho de 1944 a biblioteca foi embalada em 143 caixas e despachada de trem para o leste.
As deportações em massa de judeus holandeses começaram em meados de 1942. A maior parte foi enviada para o campo de passagem de Westerbork. Quase toda terça-feira até setembro de 1944, um trem de carga partia para o leste. Sessenta e oito trens, levando 54.930 pessoas, partiram para Auschwitz-Birkenau. Dezenove trens, com 34.313 pessoas, foram para Sobibór. A maior parte dos deportados foi assassinada na chegada.[22] Outros trens, com quantidade bem menor de passageiros a bordo, foram para os campos de concentração de Bergen-Belsen e Theresienstadt. Em dois anos, três quartos da população de judeus na Holanda foram exterminados. Dos judeus sefarditas, só cerca de oitocentos sobreviveram.
O curador da Rosenthaliana, Louis Hirschel, e Isaac Leo Seeligmann estavam entre os deportados; os dois foram enviados com suas famílias para Westerbork. De acordo com um colega que visitou Hirschel no alojamento em que ele estava confinado, ele trabalhou até o fim em uma bibliografia que seria a base para um livro sobre a história dos judeus na Holanda: “No alojamento escuro, cercado por desgraça e miséria, ele escreveu sua extensa bibliografia, sem qualquer acesso a outra literatura, em pequenas tiras de papel”.[23] Hirschel foi deportado com a esposa e quatro filhos para a Polônia. Sua mulher morreu em Sobibór em novembro de 1943. Hirschel sobreviveu até março de 1944: provavelmente ele foi selecionado para trabalhar como escravo, o que estendeu sua vida por alguns meses.[24] Isaac Leo Seeligman teve “sorte” – seu nome estava em uma lista de judeus “escolhidos” para serem enviados para um “campo modelo” nazista, Theresienstadt. Por uma coincidência impressionante, Seeligmann voltou a se unir com sua biblioteca antes de a guerra acabar.