CAPÍTULO 7

A caça aos segredos dos maçons

Haia

“Para compreender a alquimia, você tem que se fazer a seguinte pergunta: o que é o ouro? É o metal que você deseja ou alguma outra coisa? A alquimia tem relação com a busca por um dos grandes segredos da vida, o segredo da vida eterna.”

Jac Piepenbrock me olha vigilante, como se para ter certeza de que estou acompanhando, enquanto explica a essência fundamental da alquimia. Não tenho certeza de que entendo, mas apesar disso balanço a cabeça para dizer que estou acompanhando.

“Mas qual é realmente o sentido da vida eterna? É a vida aqui na terra, ou a ascensão da alma à luz eterna? A alquimia é a busca pelo sentido mais profundo da vida”, Piepenbrock continua. É um homem pequeno, um maçom com belos cabelos brancos e sedosos. Nos braços ele carrega um livro tão grande que são necessárias duas pessoas para virar suas páginas. Enquanto Piepenbrock abre o volume de 20 centímetros de espessura, seu colega Theo Walter cuidadosamente vira as páginas amarelas, quase marrons. Cada página ou cada grupo de duas páginas é ilustrado com xilogravuras curiosas, assustadoras. Cobras se contorcem em torno de humanos. Um campo coberto por esqueletos cercados por revoadas de pássaros. Dragões devoram uns aos outros. Uma multidão com paus e lanças agride um homem caído. Pombas armadas com arco e flecha. Estrelas, anjos, planetas e sinais que eu jamais havia visto. O livro, Bibliotheca chemica curiosa, é uma antologia de 1702 sobre literatura alquímica, compilada pelo médico Jean-Jacques Manget. O livro mágico contrasta fortemente com a sala em que estamos – um pequeno buraco sem oxigênio, abarrotado e sem janelas. As carrancudas prateleiras metálicas cinzentas, que Walter e Piepenbrock empurram para um lado e para o outro, dão a impressão de que você foi parar em um arquivo onde ficam relatórios esquecidos de auditorias. Mas se você conseguir ver além desse ambiente pouco vistoso, a sala contém um dos acervos mais extraordinários da Europa sobre maçonaria, alquimia, magia, os mistérios da antiguidade, construtores de catedrais e sobre os Cavaleiros Templários.

A loja maçônica da Grootoosten der Nederlanden, cuja história remonta a 1756, tem sua sede principal atrás de uma porta verde escura pouco chamativa no centro de Haia. Há poucas décadas, como tantas lojas maçônicas europeias, o local começou a tornar mais transparentes suas atividades, antes tão sigilosas. A loja hoje abriga um centro cultural, o Cultureel Masonniek Centrum, com uma sala de leitura e um museu sobre a maçonaria. A ordem possui uma coleção de mais de 25 mil artefatos valiosos associados à maçonaria: insígnias antigas, objetos de arte, desenhos e gravuras. Mas o acervo mais famoso da loja é a Bibliotheca Klossiana – uma das mais antigas bibliotecas maçons do mundo. O acervo tem suas origens ligadas ao médico, historiador e maçom alemão Georg Kloss, que deu início à biblioteca no início do século XIX. “Kloss era um colecionador fanático de livros e manuscritos sobre maçonaria e outros temas de interesse das lojas. Ele conseguiu montar o melhor acervo sobre o tema na Europa”, diz Piepenbrock, que é o guardião da biblioteca. Depois da morte de Kloss a biblioteca foi comprada pelo príncipe Frederico da Holanda, que doou a coleção para a ordem em que era grão-mestre. O acervo de Kloss tem sete mil livros e dois mil manuscritos.

Além dessa biblioteca havia um vasto arquivo sobre a história de 250 anos da ordem e materiais sobre aproximadamente oitenta ordens maçônicas holandesas que já não existem mais. Hoje o acervo ocupa cerca de oitenta metros de prateleiras. “Kloss colecionava livros e manuscritos para tentar encontrar as origens da maçonaria. Como os rituais foram criados, quando foram colocados no papel, como evoluíram e quais são os verdadeiros rituais da maçonaria”, diz Theo Walter, o bibliotecário da ordem.

A maçonaria foi um tema que interessou muito aos nazistas, mas, apesar disso, o ataque do Terceiro Reich à maçonaria é um capítulo pouco examinado. Depois da chegada dos nazistas ao poder, as ordens maçônicas alemãs estiveram entre as primeiras organizações atacadas, mas a perseguição de maçons, com poucas exceções, não foi nem tão sistemática nem tão brutal quanto a que se voltou contra judeus e adversários políticos. A oposição nazista às ordens era um ataque ao espírito da maçonaria, vista como um problema ideológico e não como um problema racial, como no caso de judeus, ciganos e eslavos. Em outras palavras, os nazistas queriam se livrar do fenômeno da maçonaria, não tanto dos maçons.

Hermann Göring disse em um estágio inicial que “não há lugar na Alemanha nacional-socialista para ordens maçônicas”.[1] De início o regime tentou de várias maneiras fazer com que as lojas se desmantelassem ou desistissem da maçonaria e passassem a se ocupar de outras coisas. Membros e ex-membros da maçonaria não podiam entrar no Partido Nazista. Maçons também estavam sujeitos a assédios e boicotes e frequentemente eram demitidos caso trabalhassem na esfera pública. No entanto, muitos conseguiram, mais tarde, retomar suas carreiras.

A atividade maçônica na Alemanha era grande, com mais de oitenta mil maçons. Muitos eram ou tinham sido pessoas de destaque na sociedade alemã. Algumas das maiores ordens tentaram já a partir de 1933 se adaptar mudando seus nomes para algo como Ordem Nacional Cristã de Frederico o Grande ou Ordem Benévola Cristã-Alemã.[2] Para seguir em funcionamento, o regime exigia que as ordens parassem de usar a palavra maçom, que rompessem todos os laços com outros países, excluíssem membros não arianos, abrissem suas atividades secretas e abandonassem ritos que pudessem ser associados ao Velho Testamento.

Em 1935, as ordens maçons foram completamente banidas e rotuladas como “inimigas do Estado”. Com isso, as organizações maçônicas alemãs foram desmanteladas e suas propriedades, confiscadas. Heinrich Himmler, que estava profundamente interessado pelas ordens, se certificou de que a SD e a Gestapo saqueassem as bibliotecas e arquivos da maçonaria. Esse material foi a base de um acervo sobre ocultismo na Seção VII da RSHA.[3]

Também na década de 1930, várias campanhas foram realizadas para denegrir a maçonaria, por meio da conversão de algumas das lojas maçônicas confiscadas em museus onde eram realizadas exposições. Um exemplo foi a célebre Entartete Kunst, em 1937, quando os nazistas organizaram uma exposição sobre a arte moderna “degenerada”. A “exposição vexatória” era um conceito a que os nazistas voltariam muitas vezes em sua propaganda, Além das “exposições vexatórias” sobre artes, eventos semelhantes foram organizados sobre temas como jazz e cultura judaica. A exposição Sowjet-Paradies, em 1942, foi particularmente popular, apresentando itens reavidos após a invasão da União Soviética. A exposição, dentro de uma tenda aos moldes de um pavilhão, cobria uma área de mais de 800 metros quadrados. O objetivo era mostrar a pobreza e a miséria na Rússia sob o regime bolchevique. Segundo alguns relatos, cerca de 1,3 milhão de alemães visitou a exposição.[4] As “exposições vexatórias” não deviam meramente tornar seus temas objetos de escárnio e humilhação, eram também medidas preventivas. Nas exposições sobre maçonaria havia um desejo de revelar os segredos das ordens ao deixar que o povo alemão entrasse nas salas dessas fraternidades misteriosas, mostrando como as ordens secretamente se dedicavam a rituais pervertidos, não germânicos e judaicos, que eram verdadeiras ameaças à Alemanha. Objetos rituais como crânios humanos, ossos, textos hebraicos e outros objetos “orientais” receberam ênfase especial. Havia um foco sensacionalista nos supostos rituais de sangue praticados pelos maçons. O maior desses museus, aberto em uma loja confiscada em Chemnitz, teria tido um milhão de visitantes alemães, segundo relatórios.

As ordens maçônicas, na verdade, jamais representaram qualquer ameaça política aos nacional-socialistas. A maior parte das ordens era completamente apolítica. Mas na visão de mundo apocalíptica dos nazistas, os maçons tinham um papel especial na conspiração judaica mundial. As sociedades secretas conspiravam há séculos para derrotar a Alemanha.

Quando o jornal do partido, o Völkischer Beobachter, noticiou em 1935 o desmantelamento das ordens, houve uma acusação espantosa: os maçons haviam começado a Primeira Guerra Mundial. Segundo o jornal, os maçons planejaram o assassinato do sucessor do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, em Sarajevo, em 1914.[5] Portanto, os maçons haviam conspirado para obrigar a Alemanha a ir à guerra e haviam assegurado a derrota alemã.

Teorias conspiratórias como essa prosperaram em círculos da extrema direita alemã no entreguerras. O general alemão Erich Ludendorff, que teve papel decisivo nos últimos anos da Primeira Guerra Mundial, foi um dos mais ácidos críticos da maçonaria. No último ano da guerra, Ludendorff era o homem mais poderoso da Alemanha, responsável tanto pelo planejamento quanto pelo comando da ofensiva alemã no front ocidental em 1918, quando o país esgotou suas últimas forças num ataque final. O fracasso da ofensiva e o contra-ataque Aliado não apenas levaram à queda das defesas alemãs como também causaram um colapso nervoso no próprio Ludendorff. Quando Ludendorff não teve sucesso em negociar uma trégua no outono de 1918, o imperador alemão tirou-o do posto.

A revolução começou na Alemanha em novembro do mesmo ano. Ludendorff fugiu para a Suécia usando um passaporte falso e esperou a revolução acabar na propriedade rural do fazendeiro e adestrador de cavalos sueco Ragnar Olson, em Hässleholm. Esgotado, amargurado, exilado e decepcionado com o humilhante Tratado de Versalhes, Ludendorff escreveu suas memórias de guerra. Publicado em 1919, o livro se tornou uma das fontes da “Lenda da punhalada pelas costas”, que teve papel tão decisivo no destino dos nacional-socialistas. Ludendorff, incapaz de assumir os próprios fracassos na guerra, dizia que foram os social-democratas, os socialistas e os maçons no front doméstico que causaram a derrota. Sem essa “punhalada” nas costas do Exército, a Alemanha teria saído vitoriosa.

A descida de Ludendorff ao mundo sombrio das teorias da conspiração não acabou com seu livro de memórias. Aos poucos ele foi atraído pelos círculos de extrema direita de Munique e pelo NSDAP. Durante o Putsch da Cervejaria, em 1923, quando os nazistas tentaram dar um golpe, Lidendorff marchou ao lado de Adolf Hitler para derrubar o governo. Ao contrário de Hitler, ele escapou de ser condenado à prisão.

Nos anos 1920, Ludendorff começou a ver os maçons como a raiz de uma conspiração global. Em 1927 ele publicou o livro A aniquilação da francomaçonaria através da revelação de seus segredos, em que ele desenvolvia ainda mais as suas teorias conspiratórias. Embora Ludendorff tenha recebido crédito como único autor, o livro na verdade foi escrito em parceria com sua esposa, Mathilde. Mais tarde ela publicaria seu próprio panfleto, A vida de Mozart e sua morte violenta, no qual dizia que o compositor fora assassinado por seus irmãos maçônicos depois de romper o voto de silêncio. Ela também afirmava que os maçons foram responsáveis pelas mortes de Martinho Lutero e Friedrich Schiller.[6]

Os Ludendorff estavam convencidos de que os maçons tinham poderes sobrenaturais e que, portanto, representavam uma ameaça para a Alemanha e seu povo. Eles também acreditavam ter encontrado indícios de que maçons, por meio de suas redes internacionais, teriam vazado segredos militares para os inimigos do país durante a guerra.[7] Em suas memórias, Erich Ludendorff dizia que as ordens maçônicas eram controladas pela Grã-Bretanha.

Outra figura, não exatamente inesperada, também aparecia em A aniquilação da francomaçonaria através da revelação de seus segredos: o judeu. O movimento maçom era, na verdade, criado e controlado pelos judeus. De acordo com os Ludendorff, o segredo das lojas era um modo de ocultar a influência judaica. Os Ludendorff se referiam às lojas como künstlicher Jude, um “judeu artificial”. Eles insinuavam que, embora os maçons oficialmente não fossem judeus, as lojas agiam como agentes dos interesses judaicos. O casal também acreditava que os judeus haviam feito um pacto sigiloso com os jesuítas para juntos controlarem a economia mundial.[8]

O livro não foi aclamado pela crítica como os Ludendorff esperavam. A maior parte dos jornais desprezou suas ideias como algo que beirava a excentricidade e que chegavam a ser ligeiramente dignas de pena. O Tageblatt, de Bremen, insinuou que o velho general estava “psicologicamente instável”.[9]

Mas as ideias foram muito mais bem recebidas nos círculos de extrema direita, onde essa teoria da conspiração estava praticamente estabelecida. O conceito de uma conspiração judaico-maçônica era quase tão respeitável quanto as próprias lojas. Segundo o mito popular, a maçonaria fora criada por associações de homens que construíam catedrais na Idade Média. Nunca se comprovou se foi assim que surgiram as ordens maçônicas, mas era nessa mitologia que o movimento maçom se baseava. As lojas surgiram no princípio do século XVIII, quando a revolução científica e o Iluminismo levaram a um interesse renovado por questões existenciais, misticismo e espiritualidade – assim como por vários tipos de sociedade. Ainda era perigoso questionar abertamente a autoridade da Igreja. Nos séculos XVII e XVIII, portanto, surgiu uma miríade de sociedades religiosas, espirituais e filosóficas em que se podiam discutir e compartilhar essas ideias potencialmente perigosas a portas fechadas.

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Maçons na Bibliotheca Klossiana em Haia me mostram um livro do célebre acervo — a obra ilustrada Bibliotheca chemica curiosa.

A Grande Loja da Inglaterra foi criada em 1717, e é, em geral, considerada a primeira grande loja maçônica. Da Inglaterra, a maçonaria se espalhou para a França e depois pelo continente. As ordens maçônicas buscavam transmitir conhecimento teórico e espiritual por meio de pesquisas filosóficas e religiosas. Um interesse – que voltou a crescer na época – pelo ocultismo, pela magia e pelas sessões espirituais também influenciou as várias ordens. Mas as ordens não eram meros clubes de conversação, eram em grande medida associações exclusivas para a elite social, das quais as mulheres e as pessoas de origem mais modesta não podiam participar.

O segredo, os ritos, os elementos esotéricos e a quantidade de pessoas de destaque que participavam das ordens fizeram com que desde o começo se disseminassem rumores e teorias da conspiração. A primeira condenação oficial partiu do papa Clemente XII, que no fim da década de 1730 criticou a maçonaria como sendo uma prática oposta à fé católica. De início, as críticas tinham base principalmente religiosa; no entanto, depois da Revolução Francesa surgiu uma dimensão política. Na busca generalizada por bodes expiatórios em quem colocar a culpa pela turbulência política, os maçons e os Illuminati bávaros foram falsamente incriminados como conspiradores e instigadores. À medida que o século XIX avançava também surgiu uma crítica feita pelos nacionalistas (liberais). Como muitas ordens eram partes de redes internacionais, o fenômeno era visto pelos nacionalistas como uma ameaça à coesão nacional.

A suposta ligação entre a maçonaria e os judeus era particularmente esquisita já que muitas ordens, especialmente as que tinham foco cristão, não aceitavam judeus.[10] Nas ordens mais humanistas os judeus só foram aceitos a partir da década de 1850. Dos oitenta mil maçons que a Alemanha provavelmente tinha em 1933, estima-se que só três mil tinham origem judaica.[11]

Nos círculos conservadores de extrema direita cultivou-se uma ideia no século XIX segundo a qual os judeus se infiltravam na maçonaria e manipulavam sua ideologia em nome de seus próprios objetivos. O fato de muitas ordens apoiarem ideias iluministas, como a igualdade e uma crença no futuro, era visto como auxílio a “interesses judaicos”, por abrir caminho para a emancipação dos judeus. Acreditava-se que maçons e judeus conspiravam para destruir tanto a Igreja quanto a monarquia com o intuito de igualdade de direitos para os judeus.

Perto da virada do século, os maçons tiveram participação em toda conspiração digna do nome. Na França, estiveram supostamente envolvidos no caso Dreyfus, em que o oficial de artilharia francês e judeu Alfred Dreyfus foi considerado culpado por espionagem – com base em documentos falsos. Na Rússia, participaram dos Protocolos dos Sábios de Sião como um instrumento para que os judeus dominassem o mundo. Na Inglaterra, os maçons foram acusados de ligações com Jack, o Estripador.

Um livro escrito pelo político austríaco Friedrich Wichtl, em 1919, teve destaque especial: Os maçons do mundo - Revolução mundial - República mundial. Uma investigação sobre as origens e o final da Primeira Guerra Mundial.[12] Foi Wichtl quem cunhou a expressão “judeu artificial” e mostrou indícios de que o herdeiro do trono austro-húngaro fora assassinado em 1914 por manobras de um grupo de maçons e judeus.

Os Ludendorff e Wichtl encontrariam um apoiador em Alfred Roosenberg, que também havia publicado um livro sobre o tema em 1922: Os crimes dos maçons, judeus, jesuítas e do cristianismo alemão. Em O mito do século XX, ele acusou os maçõns de disseminarem “princípios tolerantes e humanos, por exemplo dizendo que judeus e turcos têm os mesmos direitos de um cristão”, o que, no universo do mito racial de Roosenberg, era uma ideia pavorosa. Foram os maçons, ele dizia, que “lideraram as revoluções democráticas do século XIX”. Foi exatamente esse humanismo, defendido pelos maçons, que causou o declínio democrático, racial e moral em que “todo judeu, negro ou mulato pode se tornar um cidadão com plenos direitos em uma nação europeia”.[13]

Heinrich Himmler estava convencido de que as lojas usavam rituais de sangue. A prática foi descrita com mais detalhes em um relatório da polícia política bávara, a BPP: “O candidato faz um corte no polegar e derrama o sangue em um cálice. Adiciona-se vinho e em seguida sangue dos demais irmãos (de quando realizaram o ritual). O candidato bebe o líquido e absorve o sangue dos maçons, incluindo judeus. Com isso o triunfo do judeu está completo”.[14]

Ao mesmo tempo havia na SS um curioso fascínio pela maçonaria. Himmler via as ordens não como inimigas do Estado e sim como fontes de conhecimento e inspiração. Portanto, não era segredo que grande parte da literatura confiscada das ordens maçônicas alemãs nos anos 1930 tenha ido parar na biblioteca da RSHA. Os rituais, segredos e o simbolismo dos maçons causavam grande interesse em Himmler, que desejava recriar seus próprios rituais e ordens não muito diferentes dentro da SS.

Os nazistas não foram os primeiros a banir a maçonaria no século XX. A maior parte dos regimes totalitários do entreguerras atacou os maçons. Na Itália, Mussolini acusou-os de inimigos do fascismo e os baniu, como fizeram a União Soviética e a Espanha franquista. Na Alemanha nazista, Reinhard Heydrich criou uma divisão especial na RSHA para os maçons. Um dos indivíduos recrutados para registrar maçons alemães foi Adolf Eichmann. É difícil estimar quantos maçons alemães foram vítimas da perseguição nazista, já que muitos também foram detidos e enviados para campos de concentração em função de outras atividades políticas.

A maçonaria era componente importante da propaganda não só contra inimigos domésticos mas também contra inimigos externos. O fato de Winston Churchill e Franklin Roosevelt serem maçons era sempre mencionado na propaganda nazista. Quando o marechal de campo alemão Friedrich Paulus se rendeu em Stalingrado, contra ordens de Hitler, foi chamado pela propaganda alemã de “maçom de mais alta patente”.[15] Mas os nazistas não mencionavam com tanta estridência que Goethe, Mozart e Frederico, o Grande eram maçons.[16]

No verão de 1940, a ERR em Amsterdã mapeou a rede de lojas maçônicas na Holanda. Na lista completa havia trinta e uma lojas maçônicas e dez lojas que pertenciam à Ordem Maçônica Mista Internacional, ordem que aceitava mulheres. Também havia trinta e cinco sedes locais da Odd Fellows e quinze do Rotary. No início de setembro, a ERR iniciou uma série de ataques coordenados, tendo como alvo principal Grootoosten, em Haia. Além da famosa biblioteca, essa loja maçônica era uma organização que servia como guarda-chuva para uma longa lista de lojas regionais que somavam mais de quatro mil membros. “Em 4 de setembro de 1940 todos os membros foram chamados à loja e instruídos a trazer suas insígnias. Quem se recusou teve a casa revistada”, Piepenbrock diz. Os membros foram registrados e as lojas, desmanteladas. A maior parte foi solta, mas o grão-mestre da Grootoosten, Hermannus van Tongeren, foi preso e enviado para o campo de concentração de Sachsenhausen, onde morreu.

As propriedades das ordens foram confiscadas na totalidade, incluindo prédios, insígnias e bibliotecas. Como na Alemanha, as lojas maçônicas muitas vezes acabaram sendo usadas como escritórios, depósitos ou centros de coordenação para várias organizações nazistas.[17]

Outro tema exportado da Alemanha foi o conceito de “exposição vexatória”, usado aqui como tentativa dos invasores de conquistar os cidadãos dos territórios ocupados para sua luta contra judeus, maçons e bolcheviques. Em Paris, uma exposição contra a maçonaria foi inaugurada em junho de 1940, e Bruxelas realizou uma mostra semelhante um ano depois.

Na França, a ERR começou a preparar o saque das lojas maçônicas antes mesmo do que na Holanda. Quando a operação militar ainda estava em curso, Alfred Roosenberg enviou funcionários à França para fazer reconhecimento do que poderia ser confiscado. Em 18 de junho de 1940, um dos emissários, professor George Ebert, relatou que havia ocupado a maior loja maçônica da França, o Grande Oriente da França, na rue Cadet, em Paris.[18]

Na França e na Bélgica, as ordens sofreram uma pilhagem tão completa quanto na Holanda. Na Dinamarca, na Noruega, na Polônia, na Áustria, na Grécia e nos Bálcãs, as ordens também foram invadidas e roubadas.

Houve rixas violentas entre a ERR e a RSHA pelo direito de ficar com as bibliotecas e os arquivos dos maçons. A RSHA frequentemente acabou tendo prioridade, o que forçou a ERR a entregar grande parte da literatura maçônica já confiscada. Considerava-se importante do ponto de vista da segurança poder mapear as redes internacionais de maçons por meio do acesso a seus registros de membros, correspondência e outros materiais. Mas também estava claro que a “literatura ocultista” de propriedade das ordens tinha grande interesse para a SS. A RSHA já havia construído um acervo considerável, roubado das ordens maçônicas alemãs – antes da chegada dos nazistas ao poder o país tinha o segundo maior número de filiados no mundo.[19] O confisco de livros e de materiais de arquivo de lojas alemãs foi enorme, e a maior parte acabou indo para a biblioteca dos inimigos do Reich, na Seção VII da RSHA em Berlim.

Já nos acervos alemães a RSHA encontrou muito material que podia servir de base para fantasias conspiratórias e para o interesse da SS pelo ocultismo. Um desses arquivos era o Schwedenkiste [baú sueco] da loja maçônica Ernst zum Kompass, em Gota. Era um acervo de documentos e cartas da ordem dos Illuminati de fins do século XVII. A ordem secreta, cercada por mitos, foi fundada pelo filósofo alemão Adam Weishaupt. Seu propósito era obter um consenso sobre os valores fundamentais do Iluminismo entre intelectuais e autoridades, e desse modo incentivar reformas sociais racionais com espírito progressista. A organização de Weishaupt recrutava pessoas que concordassem com esses objetivos e se via como uma instituição voltada para o desenvolvimento de uma elite local que coordenaria seus elevados ideais para o aperfeiçoamento da humanidade.

A ordem foi banida pela Baviera, em 1785, e vários membros foram presos. Mesmo assim, apesar da breve duração da ordem, os Illuminati logo foram cercados por diversas teorias conspiratórias, sendo popular a afirmação de que a ordem continuava atuando em sigilo.

John Robinson, professor escocês e teórico da conspiração, acusou os Illuminati em seu livro Provas de uma conspiração (1797) de ter infiltrado grupos maçônicos no continente e de ter começado a Revolução Francesa. Em 1780, os Illuminati tinham iniciado uma colaboração com os maçons, o que era visto como indício de que a ordem dera prosseguimento a suas atividades subversivas sob o disfarce de lojas maçônicas. O Schwedenkiste era composto de documentos que remontavam à época em que os Illuminati estavam ativos, incluindo informações que identificavam seus membros. O duque Ernst II, de Saxe-Gota-Altemburgo, membro da ordem, considerava o conteúdo sensível a ponto de o ter enviado a seus contatos na Suécia. Em Estocolmo os arquivos dos Illuminati foram protegidos contra publicação, o que foi garantido pela família real sueca. Uma das pessoas listadas como membro dos Illuminati era ninguém menos do que Johann Wolfgang von Goethe. O Schwedenkiste permaneceria na Suécia até 1883, quando o acervo foi remetido de volta para a Alemanha e acabou chegando à loja maçônica Ernst zum Kompass, onde a Gestapo o encontrou na década de 1930.

Havia poucas bibliotecas maçons no continente que podiam rivalizar com a Bibliotheca Klossiana em termos de escopo e profundidade; era uma das mais importantes do mundo para quem quisesse investigar as origens da maçonaria. A biblioteca também continha materiais estudados pelos maçons, como livros sobre história natural, biologia, filosofia e história de várias culturas e suas origens – livros dos séculos XVII e XVIII sobre povos indígenas e seus ritos e religiões. Também havia tragédias clássicas gregas. A biblioteca era absolutamente crucial para as atividades dos maçons. Era por meio desses materiais que eles podiam obter novos conhecimentos sobre si mesmos. “Era um modo de catarse”, diz Theo Walter, o bibliotecário da Klossiana.

Além de livros sobre magia, teosofia, astrologia, alquimia, rituais, música, canções e simbolismo, a Klossiana era um dos acervos mais importantes do mundo de literatura antimaçônica. Mas o valor da biblioteca não se deve unicamente à literatura escrita, e sim também ao acervo de ilustrações, águas-fortes e desenhos que mostram como conduzir os rituais secretos.

Entre as raridades da Klossiana estão cinco dos mais antigos exemplares de A constituição dos maçons livres, publicado pelo escocês James Anderson em princípios do século XVIII e que deu forma ao sistema maçônico britânico. Outro documento ainda mais envolto em mitologias encontrado no acervo era a Charter van Keulen [Carta de Colônia], que dizem remontar a 1535. O documento, em latim, demonstra que a atividade maçônica já havia se disseminado no século XVI. De acordo com o mito, o documento foi encontrado em uma loja inativa em Amsterdã em meados do século XVII, escondido em um baú fechado a três chaves, atrás de três selos diferentes. Ele era muito debatido nos círculos maçons do século XIX. Kloss, o primeiro a se deparar com o documento, era um dos que podia revelar que, muito provavelmente, se tratava de uma falsificação.

Também de interesse dos nazistas era o grande arquivo de materiais de ordens extintas de posse da Grootoosten der Nederlanden, muitas das quais tiveram ligações com a Companhia das Índias Orientais. No arquivo havia algo de valor ao menos comparável, um índice catalográfico de todos os membros de ordens maçônicas na Holanda desde o século XVIII.[20]

Depois das invasões às lojas em 1940, a seção holandesa da ERR pôde informar o significativo sucesso da ação. Centenas de milhares de livros e de outros materiais foram confiscadas.[21] Também foram apreendidos obras de arte e artefatos rituais, incluindo o martelo dourado do grão-mestre encontrado em Grootoosten. A ERR estimou o valor do martelo em 3 mil marcos.

Não havia dúvida sobre qual era considerado o troféu mais importante: “Para calcular o valor da Bibliotheca Klossiana, que contém muitas obras raras, deve-se considerar que em 1939 maçons americanos ofereceram à Grootoosten cinco milhões de dólares pela biblioteca”, a ERR escreve em um relatório.[22] Mas não se dava ênfase apenas ao valor financeiro; na verdade, afirmava-se que os livros saqueados tinham “extraordinário valor científico”: “É possível afirmar sem hesitação que a biblioteca da Hohe Schule, sem um trabalho excessivamente grande, irá agora oferecer uma quantidade bastante impressionante de tesouros que irá colocar a biblioteca em uma posição de destaque em questões relacionadas a judeus e maçons”.[23] Mas a ERR não se contentou apenas com a biblioteca: “Além disso, estantes de aço suficientes para acomodar cerca de 30 mil livros foram removidas do local”.