CAPÍTULO 8

Lênin trabalhou aqui

Paris

Jean-Claude Kuperminc passa os dedos pelos títulos dos livros, lendo-os em silêncio enquanto anda lentamente por entre as prateleiras até encontrar o que procura. Ele tira da estante um volume encadernado em bege e branco. A luz do teto, com seu brilho de amarelo amanteigado, dificulta a leitura do título. Kuperminc abre o grosso blecaute da janela que dá para o pátio interno e expõe a lombada do livro à luz do sol. O título é Welgeschichte des jüdischen Volkes [História mundial dos povos judeus], de autoria do historiador e ativista russo-judeu Simon Dubnow, assassinado em Riga pela SS, em 1941. Na parte debaixo da lombada, uma pequena etiqueta está colada, com a inscrição “B. z. Erf. D. Jud. Frankfurt a. Main”. Em uma das folhas de rosto há um carimbo azul com o mesmo texto, só que sem as abreviações: “Bibliothek zur Erforschung der Judenfrage Frankfurt a. Main”. É a primeira vez que vejo o carimbo do instituto de Frankfurt, de Roosenberg. Até o número de catálogo da biblioteca do instituto foi preservado: “42/1941”, em um garrancho escrito às pressas, mas totalmente legível, escrito com lápis bem apontado.

Quando Kuperminc devolve o livro ao seu lugar, vejo outras etiquetas do instituto em lombadas ao longo da estante. Alguns parecem quase novos, outros estão em diferentes estágios de desintegração. Muitos permanecem aqui, praticamente intocados, desde a Segunda Guerra Mundial.

“Temos milhares de livros com carimbos nazistas”, Kuperminc diz em seu inglês hesitante, de forte sotaque francês.

Peguei um trem de alta velocidade em Haia rumo ao sul indo para Paris. Aqui na capital da França, a ERR e a RSHA dariam início à maior operação de pilhagem na Europa Ocidental. O centro da operação de pilhagem de arte foi o museu Jeu de Paume, no centro de Paris, ocupado pelos nazistas, onde dezenas de milhares de obras foram classificadas, catalogadas e de onde foram despachadas para a Alemanha. Alguns dos mais audaciosos roubos de bibliotecas e arquivos ocorreram aqui na França. Uma das vítimas foi a Alliance Israélite Universelle, no número 45 da rue La Bruyère, em Paris, ao sul de Montmartre, onde encontro Jean-Claude Kuperminc, responsável pela biblioteca e pelo arquivo da organização. Baixo e de cabelos ralos, mais ou menos na casa dos 50 anos, Kuperminc passou anos pesquisando o destino da biblioteca durante a guerra.

A Alliance Israélite Universelle foi criada, em parte, como consequência do chamado Caso Damasco – um pogrom de 1849 que teve início com os boatos de que judeus estavam por trás do assassinato ritual de um monge em Damasco. A sinagoga da cidade foi atacada pela turba e vários judeus foram presos e submetidos a sádica tortura, o que incluiu ter os dentes arrancados. Os fatos tiveram repercussão internacional, e uma delegação judaica foi enviada para negociar.

“Foi um evento importante, porque era a primeira vez que judeus agiam internacionalmente para ajudar outros judeus no Oriente Médio. Foi com base nessa ideia que surgiu a Alliance. O motivo de sua criação foi o desejo de proteger e fortalecer os direitos dos judeus onde quer que eles estivessem. Os fundadores eram filhos da Revolução Francesa. Pertenciam à primeira e à segunda gerações de judeus com permissão para exercer plenamente a cidadania francesa, com igualdade de direitos. A organização foi criada para propagar esses ideais”, explica Kuperminc.

A Alliance ajudava judeus a fugir de pogroms na Rússia tzarista e a encontrar um novo lar na França e nos Estados Unidos. Mas seu trabalho mais importante foi a criação de um sistema escolar internacional para crianças judias. Na virada do século XIX a organização administrava cerca de cem escolas no Norte da África, no Oriente Médio e na Europa Oriental, com um total de 24 mil alunos. A educação era baseada, em grande medida, nos ideais iluministas dos fundadores: cultura, idioma e civilização franceses. No entanto, a Alliance muito claramente se distanciava do emergente movimento sionista, que estava em campanha pela criação de um Estado judeu na Palestina.

“A Alliance trabalhava pela integração dos judeus em seus próprios países. Na França falamos em régénération – a reconstrução da identidade baseada na cultura moderna ocidental lado a lado com o conhecimento e a cultura dos judeus”, Kuperminc explica. “Eles queriam obter conhecimento sobre todas as diferentes culturas judaicas no mundo. Mas também queriam saber sobre a história dos judeus. Alguns dos manuscritos mais valiosos do acervo, do Cairo, são textos judeus do século IX. Outros remontam ao filósofo judeu Maimônides no século XII. Mas acima de tudo a biblioteca é conhecida por seu acervo de livros, periódicos, panfletos e jornais modernos. O acervo inclui uma coleção quase completa de livros e textos publicados sobre a “questão judaica” na Alemanha entre 1700 e 1900, incluindo publicações antissemitas, e a organização também reuniu escritos sobre o célebre caso Dreyfus na década de 1890.

“Na década de 1930 essa era uma das mais importantes bibliotecas judaicas da Europa, talvez a mais importante do mundo. Tudo que se publicava relacionado a temas judaicos era comprado e entrava para o acervo.”

Para abrigar a coleção cada vez maior, construiu-se uma biblioteca perto do fim da década de 1930 na rue La Bruyère. A biblioteca em que estamos agora é uma torre funcional de oito andares, localizada no pátio interno de um suntuoso edifício parisiense. O pé-direito baixo e as escadas estreitas, quase claus-trofóbicas, que levam de um andar para o outro, dão ao lugar a aparência de uma garagem de vários andares para livros. O prédio ficou pronto em 1937, e em pouco tempo já abrigava a biblioteca de mais ou menos cinquenta mil volumes da Alliance, um amplo arquivo e o acervo de periódicos.

Mas a nova biblioteca não permaneceria com seus proprietários originais por muito tempo. Em breve as prateleiras estariam cheias de livros totalmente diferentes, trazidos pelas forças de ocupação alemãs.

O barão Kurt von Behr, convocado pelo escritório da Amt Ocidental para comandar as operações da ERR na Europa Ocidental, chegou a Paris com o exército alemão em junho de 1940. O escritório administrativo, de início, ficava no Hôtel Commodore, mas depois foi transferido para uma casa na avenue d’Iéna, confiscada dos Gunzburg, uma família de banqueiros judeus.[1]

Von Behr, um aristocrata que aprendeu francês como prisioneiro de guerra durante a Primeira Guerra Mundial, era quase uma caricatura de um nobre russo – de acordo com testemunhas, era comum que ele vestisse espartilho, botas tão engraxadas que reluziam e um monóculo.[2]

A Alliance Israélite Universelle já havia tomado precauções para salvar o acervo, mas, como muitas outras bibliotecas, organizações e colecionadores, avaliou mal a verdadeira ameaça. A Alliance construiu um bunker no subsolo para proteger dos bombardeios as partes mais valiosas do acervo. No entanto, isso não protegia o material contra saques. Como última e desesperada medida, pouco antes da queda de Paris em junho de 1940, manuscritos e materiais de arquivo foram postos em um caminhão que tentou ir a Bordeaux. O caminhão jamais chegou.

“Ninguém sabe de fato o que aconteceu com o caminhão, mas, levando em conta os detalhes que conseguimos levantar, parece que tropas alemãs confiscaram o veículo.”

Quando garantiu para si o escritório no número 45 da rue La Bruyère, no verão de 1940, a ERR encontrou a parte mais importante do acervo sobre judeus na França ainda intacta nas prateleiras. Como no caso do IISG em Amsterdã, a ERR também tomou conta da sede da organização. Já em agosto de 1940, a biblioteca da rue La Bruyère havia sido embalada em caixas prontas para serem enviadas para a Alemanha. A maior parte da biblioteca foi despachada para o Institut zur Erforschung der Judenfrage, em Frankfurt. As prateleiras vazias da biblioteca da Alliance Israélite Universelle logo foram tomadas por outros acervos saqueados, já que a ERR começou a usar o local como depósito de livros.

Em setembro de 1940, depois de sete semanas de saques, Alfred Roosenberg pôde afirmar com certa satisfação em um relatório que um considerável butim caíra em mãos da ERR em Paris. Entre outros itens, a organização confiscou várias bibliotecas valiosas pertencentes à família Rothschild francesa.[3] Uma apreensão ainda mais valiosa foi feita no famoso banco dos Rothschild em Paris, de Rothschild Frères, que por mais de cem anos foi um dos maiores bancos do mundo. O arquivo gigantesco do banco aparentemente encheu mais de 760 caixas. Do ponto de vista dos nazistas, esse era um material inestimável para “pesquisar” as redes do mundo judeu no capitalismo. Além das bibliotecas dos Rothschild, também foram tomadas bibliotecas de intelectuais judeus de destaque como Léon Blum, Georges Mandel, Louise Weiss e Ida Rubinstein. Várias dessas coleções tinham grande valor histórico e cultural, contendo primeiras edições com dedicatórias pessoais de Marcel Proust, Salvador Dalí, André Gide, André Malraux, Paul Valéry e Wanda Landowska.[4]

Dez mil livros foram roubados da escola rabínica, a École Rabbinique, em Paris, incluindo uma valiosa coleção de Talmudes, e quatro mil livros foram pilhados da Fédération des Sociétés Juives. Sinagogas e livrarias judias também foram saqueadas – por exemplo, a Librairie Lipschutz teve todo o seu estoque de vinte mil livros roubado.

Apenas um punhado de acervos escapou dos saqueadores; por exemplo, a pequena iídiche Bibliotèque Medem, fundada por judeus que emigraram da Europa Oriental. A Gestapo não foi capaz de encontrar o subterrâneo em que os livros foram escondidos. Mas era um consolo pequeno, já que a biblioteca tinha apenas três mil volumes.[5]

O saque na França foi imenso; estimativas sugerem que a ERR roubou 723 bibliotecas maiores que continham mais de 1,7 milhão de livros.[6] Esse número aumentaria dramaticamente depois de a ERR iniciar sua M-Aktion na França e passar a saquear as casas de judeus que haviam fugido ou foram deportados. Somente em Paris, 29 mil apartamentos foram totalmente esvaziados, e tudo foi despachado em trens para o leste.[7]

Havia algo excepcionalmente malévolo nessa expulsão e expurgo sistemáticos dos povos judeus da Europa. Todos os pertences pessoais deixados para trás – coisas como cartas, álbuns de fotos e anotações – eram confiscados, espalhados, queimados ou enviados para fábricas de papel. Depois de as casas serem esvaziadas, novos proprietários tomavam posse. Era como se os judeus que viviam ali – suas vidas, suas memórias, seus pensamentos – jamais tivessem existido.

Não se sabe exatamente quantas bibliotecas e livros foram confiscados pela M-Aktion, mas o número deve chegar à casa dos milhões. A operação foi grande a ponto de ser preciso estabelecer três estações de processamento, operadas por trabalhadores escravos que classificavam, consertavam e carregavam propriedade confiscada. Uma delas, em um galpão do 13° Arrondissement, em Paris, era chamada pelos alemães de Lager Austerlitz. Já os prisioneiros preferiam chamá-la de “Galeries Austerlitz”, uma alusão irônica à luxuosa loja de departamentos Galeries Lafayette.[8] O trabalho com as propriedades confiscadas continuou até as tropas Aliadas ocidentais estarem perto de Paris em agosto de 1944.

Images

Livro da Biblioteca da Alliance Israélite Universelle, em Paris, com etiqueta do Instituto para Pesquisa da Questão Judaica de Alfred Rosenberg ainda na lombada. A biblioteca foi roubada durante a guerra e levada para Frankfurt para ser incorporada ao acervo do instituto.

Uma limpeza literária bem diferente estava sendo realizada na Alsácia-Lorena, anexada pela Alemanha nazista. Ali os nazistas confiscaram toda a literatura francesa numa tentativa de “germanizar” a área e varrer da região a cultura e o idioma franceses.[9]

Embora a ERR tenha ficado com a maior parte do que foi confiscado na França, a RSHA não ficou de mãos vazias. Muitas bibliotecas e arquivos de organizações judaicas mais ativas politicamente foram entregues mais tarde à RSHA, o que incluía certas partes do arquivo da Alliance. Quando o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica foi formalmente aberto e se realizou uma conferência em 26 de março de 1941, muitas bibliotecas parisienses já haviam chegado a Frankfurt.

Em seu discurso inaugural, Alfred Roosenberg se gabou de que o instituto possuía a melhor biblioteca judaica do mundo: “Esta biblioteca, uma parte do Instituto para Pesquisa da Questão Judaica, que se abre hoje, já contém um grande número de documentos significativos para a história judaica e para o desenvolvimento político da Europa. Esta hoje é a maior biblioteca do mundo dedicada ao judaísmo. Nos próximos anos esse acervo vai se expandir de maneira muito considerável”.[10]

Qualquer livro com o carimbo da Alliance Israélite Universelle pertence a uma minoria que pôde ser catalogada. A quantidade de acervos roubada era grande demais para a equipe encarregada de lidar com eles. Em 1943, meio milhão de livros chegou a Frankfurt.[11]

O historiador Philip Friedman afirmou que para os nazistas era importante saquear bibliotecas e instituições judaicas na área de ensino superior, pesquisa e outras atividades intelectuais. O saque teria dupla motivação, servindo tanto para privar a população judaica de sua base cultural e de aprendizagem quanto para enriquecer a pesquisa ideológica nazista. Desse ponto de vista, a Alliance Israélite Universelle era um alvo de grande valor.

O taxista para e aponta para uma rua lateral. Eu hesito. Não parece uma rua em que se possa encontrar uma biblioteca famosa. As varandas manchadas pela fumaça dos carros estão rachadas e parecem estar a ponto de cair a qualquer momento. Peguei o endereço em uma carta e agora estou do outro lado da cidade, na parte sul do Quartier Latin. As casas da rua lembram um conjunto habitacional, mas a arquitetura também tem traços arredondados e algo do Jugendstil. Mais tarde descubro que as habitações foram construídas depois da guerra para dar um teto aos parisienses que haviam perdido suas casas.

O número da casa, que anotei em um pedaço de papel, leva a um bloco de apartamentos com uma entrada comum onde alguém deixou um andador. Depois de passar alguns instantes examinando a longa lista de nomes que me deram, encontro, entre as famílias Missoux e Chauvell, uma pequena etiqueta torta com a inscrição “Bibliothèque Russe Tourgueniev”. Vi esse nome antes, nos relatórios parisienses da ERR, mas não tinha certeza de que a biblioteca continuava a existir até que encontrei um longo ensaio sobre seu destino trágico e fascinante, escrito pela historiadora Patricia Kennedy Grimsted.

No apartamento do primeiro andar encontro Hélène Kaplan, uma senhora idosa com cabelos negros como um corvo e lábios de um vermelho brilhante, que caminha com a ajuda de uma muleta. Kaplan é a bibliotecária e presidente da associação que administra a biblioteca.

Preciso de um momento para que meus olhos se acostumem com a escuridão; somente uns poucos raios de sol esparsos penetram pelas janelas pequenas e cobertas da biblioteca. O apartamento está totalmente abarrotado de livros, do chão ao teto. Entre as estantes há bustos de um amarelo desbotado de autores russos, malas velhas, sacos de lixo e luminárias de leitura deterioradas. Em um canto há uma boneca de pano russa e uma maquete de uma Igreja ortodoxa, esculpida em madeira. Centenas de livros que não cabem nas estantes estão em pilhas no chão ou em mesas que cedem com o peso.

“Temos um andar especial, sabe, livros pesam muito”, diz Kaplan, batendo com a muleta várias vezes no tapete.

A Bibliothèque Russe Tourgueniev pertence a uma categoria especial de bibliotecas saqueadas durante a guerra: à das bibliotecas de exilados. Por centenas de anos Paris foi uma cidade que atraiu políticos e artistas em busca de refúgio: artistas plásticos, escritores e outros que chegaram à cidade em busca de um lugar onde tivessem liberdade de pensamento e de expressão. Anarquistas, comunistas, dissidentes, aristocratas apátridas, monarcas e ditadores fizeram de Paris sua casa em diferentes momentos.

No século XIX a cidade absorveu a onda de imigrantes políticos vinda do leste. Entre os primeiros estavam os poloneses, forçados a fugir de seu país depois do levante de novembro de 1830 em Varsóvia, uma tentativa de restabelecer um estado polonês livre, que não existia desde 1795. Um dos que se estabeleceram em Paris foi o príncipe e estadista polonês Adam Czartoryski. Durante a era napoleônica ele foi ministro de Negócios Estrangeiros da Rússia Imperial, mas em 1830 ele participou da revolta e foi escolhido como primeiro presidente da Polônia. Depois que o levante foi esmagado em 1831, mais de seis mil autoridades, políticos e intelectuais fugiram ou foram obrigados a deixar a Polônia, naquela que é conhecida como a grande migração. A residência de Czartoryski, no Hôtel Lambert, perto do Sena, iria se tornar um centro para a comunidade de migrantes poloneses e para a oposição que desejava voltar a criar uma Polônia independente. Em 1838, a Bibliothèque Polonaise foi fundada e em breve se tornou o epicentro de uma pitoresca cena cultural franco-polonesa, incluindo personalidades como Frédéric Chopin, George Sand, Zygmunt Krasinski e o poeta romântico polonês Adam Mickiewicz. A biblioteca se tornou a maior instituição cultural autônoma polonesa fora da Polônia e um importante símbolo da luta pela independência polonesa.

Os poloneses não foram o único grupo de exilados que chegaram da Rússia tzarista. Uma onda de refugiados políticos e intelectuais da Rússia também se estabeleceu em Paris no século XIX. Já em 1825, depois da Revolta Dezembrista, vários escritores russos foram exilados pelo tzar. Quantidades ainda maiores migraram depois de os levantes políticos se intensificarem no fim da década. A censura rigorosa imposta pelo regime tzarista levou à criação de uma cena literária e de um ambiente editorial independentes em Paris.[12] Em pouco tempo a Bibliothèque Russe Tourgueniev se tornou o centro dessas atividades. A biblioteca foi fundada em 1875, pelo revolucionário russo German Lopatin com a ajuda de seu compatriota, o escritor Ivan Turguêniev, que na época morava em Paris.

“German não queria meramente criar uma biblioteca, queria criar um ponto de encontro para a juventude revolucionária. Era uma biblioteca russa, mas que tinha total autonomia em relação ao Estado russo. A biblioteca manteve esse perfil até hoje”, me diz Hélène Kaplan enquanto me leva para a pequena sala de leitura. Uma das grandes paredes está totalmente nua, à exceção de um busto de Turguêniev.

Lopatin foi um dos primeiros revolucionários russos influenciados por Karl Marx e Friedrich Engels. Antes, ele tinha sido preso pelo regime tzarista e mandado para o exílio em Stavropol, na Sibéria. Ele conseguiu fugir de lá, chegar à França e se filiar à Primeira Internacional.

O acervo básico da biblioteca foi fornecido por Turguêniev, que doou alguns de seus livros; o escritor também organizou uma matinê literária em Paris para arrecadar doações de dinheiro e de livros. A biblioteca, que recebeu seu nome atual depois da morte de Turguêniev em 1883, organizava leituras, concertos, exposições e festas revolucionárias de Natal.

“Ela se tornou uma das maiores bibliotecas russas na Europa. Havia bibliotecas russas em outras cidades, mas não sobreviveram. Esta é a maior e mais antiga biblioteca do gênero em funcionamento. É algo bastante singular, porque ela jamais recebeu qualquer apoio financeiro da Rússia e só cresceu em função do apoio de vários grupos de exilados russos – muitas vezes pessoas que doavam os próprios livros ou que trabalhavam como voluntários na biblioteca.”

A biblioteca e a esfera revolucionária a seu redor serviriam como berçário para várias gerações de revolucionários russos. Um revolucionário que trabalhou na biblioteca antes da Primeira Guerra Mundial foi um russo chamado Vladimir Ilyich Ulyanov, mais tarde conhecido como Lênin. Depois da fracassada revolução na Rússia em 1905, os bolcheviques decidiram transferir suas atividades para Paris. Lênin, que detestava a cidade e se referia a ela como “um buraco sujo”, chegou a Paris sob protestos em 1908.[13]

A Biblioteca Turguêniev se tornou um ponto de encontro importante para os bolcheviques exilados em Paris. Tão importante, na verdade, que em 1910 o próprio Lênin se assegurou de que a biblioteca e o arquivo do Partido Social-Democrata russo fossem transferidos para lá.

“Nenhum grupo político tinha domínio na biblioteca, todo o espectro de cores estava representado: bolcheviques, mencheviques, revolucionários sociais e anarquistas. Eles eram oponentes políticos, mas na biblioteca podiam se encontrar e debater. Ela se elevava acima das diferenças ideológicas; aqui era a cultura russa que ocupava o lugar central”, Kaplan me diz.

A Revolução Russa teve um impacto negativo sobre a Biblioteca Turguêniev, quando Paris ficou sem a presença de seus revolucionários, que foram às pressas se unir ao levante. No entanto, esses exilados russos logo foram substituídos por uma nova e consideravelmente maior comunidade de exilados russos depois da revolução, quando dezenas de milhares de russos chegaram à capital. Os mais destacados dentre esses eram os chamados imigrantes Brancos de diversas e variadas origens, incluindo aristocratas, burgueses nacionalistas, reacionários, intelectuais, militares e padres. O que os unia era a sua oposição ao comunismo. Mas também havia socialistas aqui, muitos dos quais eram os mesmos exilados russos de antes – socialistas, comunistas e social-democratas, que tinham participado da revolução, mas depois acabaram sendo forçados a se exilar quando os bolcheviques tomaram o poder.

Um deles era o pai de Hélène Kaplan, Venedikt Mjakotin. “Meu pai era um historiador russo socialista, uma das pessoas que deu início à revolução antes de os bolcheviques assumirem o controle. Ele se recusou a se unir aos bolcheviques. Mas ele teve sorte; depois da guerra civil Lênin permitiu que uma pequena caravana de intelectuais, de gente que tinha sido importante para a revolução, saísse da Rússia. Não eram mais de duzentas pessoas, e isso só aconteceu uma vez”, diz Kaplan, que nasceu em Praga, onde Mjakotin e a esposa se refugiaram. “Evidente que ele foi quase totalmente apagado da história do regime soviético.”

No entreguerras, um novo círculo de intelectuais russos exilados se unia em torno da Biblioteca Turguêniev, muitos dos quais eram escritores, jornalistas e artistas que haviam caído em desgraça aos olhos do regime da União Soviética. Foi o auge da biblioteca – a época em que Paris se tornou a capital da comunidade de exilados russos. O círculo em torno da Biblioteca Turguêniev incluía escritores como Mikhail Osorgin, Mark Aldanov e Ivan Bunin (presidente da fundação que administrava a biblioteca), que em 1933 se tornou o primeiro autor russo a receber o Prêmio Nobel de Literatura.

Com essa nova onda de imigrantes o acervo cresceu exponencialmente. Na virada do século havia mais ou menos 3,5 mil livros na biblioteca. Em 1925 ela já chegava a 50 mil livros, e dez anos depois o acervo tinha dobrado de tamanho. Em breve, a Biblioteca Turguêniev seria considerada uma das principais bibliotecas russas do mundo. À medida que o renome da biblioteca se disseminava, ela também ganhava apoios. Na década de 1930, a cidade de Paris ofereceu à biblioteca a possibilidade de deixar seu modesto endereço na rue Val de Grâce e ir para o suntuoso Hôtel Colbert, na rue de la Bûcherie.[14]

“Aqui você achava todos os livros que tinham sido banidos na Rússia. Ela se tornou conhecida como a grande biblioteca para literatura de exilados”, Kaplan explica.

Além da literatura de exilados russos, ela tinha primeiras edições de Voltaire, François de La Rochefoucauld e do autor russo Nikolai Karamzin – e também obras de valor histórico como Sudebnik, o livro de leis escrito pelo tzar Ivan IV, de 1550, com comentários do historiador e estadista Vasily Tatishchev. O acervo incluía arquivos pessoais e documentos pertencentes a escritores exilados russos e livros com anotações e autógrafos, entre outros, de Bunin e Lênin. No entreguerras, outra biblioteca de imigrantes se formou em Paris: a Biblioteca Symon Petliura. Symon Petliura era um jornalista, escritor e político ucraniano que em 1917 esteve envolvido na formação da breve república popular da Ucrânia. Foi uma tentativa de libertar a Ucrânia da sombra da Rússia e da revolução. Mas a república de Petliura deixou como célebre legado a mais sangrenta perseguição aos judeus antes do Holocausto. Durante a breve existência da república popular da Ucrânia, acredita-se que dezenas de milhares de judeus tenham sido assassinados em mais de mil e trezentos pogroms.[15] Quando o Exército Vermelho ocupou a Ucrânia, Petliura foi obrigado a fugir, e em 1924 se estabeleceu no Quartier Latin, em Paris, de onde presidia a República Nacional da Ucrânia no exílio. Tendo a Biblioteca Turguêniev e a Bibliothèque Polonaise como modelos do que ele queria fazer, Petliura planejou dar início a uma biblioteca pública ucraniana. No entanto, o projeto da biblioteca nem havia começado direito quando Petliura foi assassinado por outro imigrante, o poeta judeu russo Sholom Schwartzbard.[16]

Depois do assassinato, uma biblioteca foi fundada em sua homenagem e a Bibliothèque Ukrainienne Symon Petliura foi inaugurada em 1929. A biblioteca, que ficava em um apartamento da rue de La Tour d’Auvergne, organizou um arquivo importante de documentos do governo ucraniano e de seu líder, assim como da biblioteca pessoal do próprio Petliura. Quando a guerra começou em 1939, o acervo tinha aproximadamente 15 mil volumes, comparados aos 100 mil volumes da Biblioteca Turguêniev e aos 136 mil volumes da Bibliothèque Polonaise.

As bibliotecas de exilados desempenharam um papel excepcionalmente importante para essas comunidades de minorias. Elas se tornaram lares literários para pessoas que haviam perdido sua língua e sua cultura. Muito mais do que manter culturas perdidas, elas serviam de pontos de encontro em que identidades linguísticas e nacionais podiam sobreviver e continuar a evoluir. Nesse sentido, elas eram absolutamente cruciais. Ao mesmo tempo também serviam como uma espécie de movimento de resistência. Para os poloneses, a Bibliothèque Polonaise era um modo de proteger a cultura de seu país, que estava sujeita a enormes pressões que queriam germanizá-la e russificá-la – especialmente por meio de perseguição, opressão e depreciação da língua e da cultura nas áreas falantes de polonês.

Essas bibliotecas também simbolizavam uma versão alternativa da história escrita. Elas apontavam para a outra Rússia, para a outra Polônia, e preservavam as histórias que, não fosse por isso, se perderiam. Nas bibliotecas de exilados, as literaturas russa, polonesa e ucraniana podiam continuar evoluindo e ser lidas, debatidas e criticadas. Para os poetas, escritores e jornalistas que haviam perdido não só sua terra natal como também seus leitores, isso era especialmente importante. No entanto, uma catástrofe estava à espera das comunidades de imigrantes em Paris, e ela partiria de um inimigo que não pretendia meramente reprimir as culturas russa, polonesa e ucraniana: queria arrasá-las e exterminá-las.

No início de um dia de outono de 1940, a escritora russa exilada Nina Berberova foi de bicicleta da pequena casa onde morava na periferia de Paris até o centro da cidade. Ela tinha migrado em 1922 com o poeta e crítico Vladislav Chodasevitj. Em Paris, eles faziam parte de um círculo empobrecido, mas destacado, de jovens escritores no exílio, como Vladimir Nabokov e Marina Tsvetajeva. A própria Nina Berberova tinha estreado no exílio e ficaria conhecida por seus contos, que retratavam a vida de migrantes russos em Paris no entreguerras.

Ela sempre fazia esses passeios de bicicleta para comprar leite, batatas e livros. Mais ou menos um mês antes, ela tinha pego emprestado um livro do filósofo Arthur Schopenhauer, em tradução russa, na Biblioteca Turguêniev ou, como ela era chamada pelos exilados, “Turgenevka”. A ideia era devolver o livro naquele dia.

“O Hôtel Colbert fica numa pequena rua perto da Notre-Dame. O relógio não estava marcando nem dez horas quando entrei. O pátio inteiro estava cheio de caixas de madeira do tamanho de caixões – três dúzias delas de pé ou deitadas no chão. Estavam vazias. Bati na janela da zeladora, que me conhecia, e perguntei se ela podia ficar com o livro até as quatro. Ela me olhou irritada: ‘Eles estão aqui’.

“Imediatamente subi as escadas. As portas estavam escancaradas. Havia duas caixas no patamar da escada e mais duas dentro da sala. De modo rápido, eficiente, com movimentos ritmados, os livros eram encaixotados. Fiquei chocada. Mas perguntei no meu alemão ruim o que estava acontecendo, embora fosse muito claro. A resposta educada que recebi era que os livros estavam sendo despachados. Para onde? Ninguém respondeu.”[17]

Nina Berberova pedalou imediatamente para a casa de Vasily Maklakov, um velho político, democrata e diplomata russo. Maklakov era embaixador do país em Paris em 1917, quando os bolcheviques tomaram o poder. Ele ocupou a embaixada russa por sete anos antes de a França ser forçada a reconhecer a União Soviética e botar Maklakov porta afora da embaixada.

Reunidos com o historiador Dmitry Odinets, chefe do comitê gestor da biblioteca, eles concordaram que o único modo de salvar a biblioteca era fazer um apelo a seu segundo pior inimigo: Stálin. Odinets foi às pressas à embaixada soviética para tentar impedir que o saque continuasse. Na embaixada ele foi levado a um cômodo, depois a outro. Perguntou se podia ver o secretário, o primeiro cônsul, ou se possível o embaixador. Ele falou com uma pessoa, depois outra, depois com uma terceira – sem que qualquer um deles sequer se apresentasse. Vez após vez ele explicava o motivo de sua visita: tentar salvar a biblioteca russa.

“Ela foi fundada por Turguêniev”, ele explicava, “o autor de Pais e filhos e Rudin, na época em que morou em Paris.” Mas o rosto deles seguia impassível. Ele continuava: “Seria importante agir rápido, antes que os livros sejam levados...”. O pessoal da embaixada simplesmente deu de ombros: “Que importância isso tem para nós? Textos dramáticos de imigrantes!”.

“De repente”, Odinets me disse, “tive uma ideia. Expliquei que Lênin em certo momento trabalhou nessa biblioteca. Que havia livros com anotações dele nas margens, e outros que ele doara para a biblioteca. Até a cadeira dele estava lá!” Nunca antes, ele admitiu, sua imaginação trabalhou tanto. “As pessoas começaram a correr à minha volta preocupadas. Eles chamavam outras pessoas. Tive que repetir o que tinha acabado de dizer sobre Lênin.” Ele resumiu a história: “Me levaram por outras portas. Eles continuavam abrindo e fechando portas. Alguém prometeu que eles iam intervir, mas não acreditei. E pensar que um telefonema podia fazer a diferença! Naquela noite fiquei outra vez com meus amigos em Boulogne. No dia seguinte, quando cheguei ao Hôtel Colbert, tudo tinha acabado. Os baús tinham sido levados, as portas estavam fechadas e lacradas. A maior biblioteca russa no exílio tinha deixado de existir”.[18]

Nina Berberova ficou com seu Schopenhauer. Outro imigrante, o historiador Nikolai Knorring, também testemunhou o saque. A julgar pelos números nas caixas, ele imagina que novecentas caixas de livros e material de arquivo foram levadas. Outras fontes, porém, indicam uma quantidade menor.[19] De acordo com Knorring, a ERR também roubou pinturas, bustos e retratos. Alguns poucos itens escaparam por entre os dedos dos nazistas: entre outras coisas a bibliotecária Maria Kotljarevskaja conseguiu salvar parte da correspondência entre o anarquista Peter Kropotkin e o filósofo Pavel Bakunin.

Hélène Kaplan abre um dos catálogos da biblioteca do pré-guerra sobre a mesa. Esses registros também não foram levados pelos nazistas e na verdade foram encontrados há poucos anos em uma caixa velha de papelão no subsolo do Hôtel Colbert. Os catálogos são uma prova da vastidão do acervo antes da guerra, com uma abundância de livros não só de literatura como também de várias áreas, da geografia ao direito, passando pela economia.

Uma história semelhante à que Berberova descreve também ocorreu na Bibliothèque Polonaise, que ficava a uma pequena caminhada do Hôtel Colbert, em uma casa do século XVII na Île Saint-Louis, no meio do Sena. A biblioteca, que recentemente celebrara seu centenário, tinha 136 mil livros em seu acervo, além de 12 mil desenhos, 1 mil manuscritos, 2,8 mil mapas antigos, 1,7 mil moedas e medalhões poloneses e um rico arquivo fotográfico.[20] Era uma coleção inestimável, que representava a cultura de uma Polônia livre, e que foi organizada com muito trabalho ao longo de todo um século de exílio.

O acervo também contava com a Bíblia Pelplin, uma Bíblia impressa por Gutenberg, salva depois do ataque à Polônia em 1939. A Bíblia de Gutenberg é o equivalente literário de uma pintura de Leonardo da Vinci. A Bíblia, encadernada em dois volumes, foi impressa por Gutenberg em meados do século XV e é considerada a primeira edição importante de livros impressos na Europa. Só há vinte exemplares completos conhecidos. Nenhuma Bíblia de Gutenberg é posta à venda desde os anos 1970, mas estima-se que o valor de mercado atual ultrapassaria 35 milhões de dólares. A chamada Bíblia Pelplin era famosa por ter uma marca única, que se acredita ter sido causada quando o impressor derrubou parte dos tipos sobre o papel. A Bíblia Pelplin era enfeitada com ouro e encadernada em pelica vermelha. Também era uma das nove Bíblias Gutenberg que ainda tinha a encadernação original do século XV.[21] Quando a guerra começou em 1939, a Bíblia estava em uma biblioteca em Pelplin, uma pequena cidade numa área do oeste da Polônia que seria brutalmente germanizada e integrada ao Terceiro Reich. Os nazistas viam as Bíblias Gutenberg como tesouros nacionais alemães, que necessariamente deviam retornar ao Reich. Por isso, a edição Pelplin, única Bíblia de Gutenberg na Polônia, era um troféu cobiçado. O padre Antoni Liedtke, do seminário de Pelplin, tinha dolorosa consciência disso, e encomendou ao seleiro local uma mala de couro com compartimentos secretos em que escondeu os dois volumes, que juntos pesavam quase quarenta quilos. Em outubro de 1939, enquanto a Polônia se rendia, a Bíblia estava sendo levada às escondidas em um navio cargueiro carregado de grãos, com destino à França e à Bibliothèque Polonaise. Junto também viajavam alguns livros valiosos salvos da Biblioteca Nacional, em Varsóvia.[22]

Images

A bibliotecária Hélène Kaplan mostra um dos poucos livros da Biblioteca Russa Turguêniev que foram devolvidos. A singular biblioteca de exliados, onde entre outras coisas Lênin trabalhou, foi roubada e desmantelada durante a Segunda Guerra Mundial.

Depois de receber relatórios da Polônia, os funcionários da Bibliothèque Polonaise sabiam o que esperar caso o país fosse derrotado. Quando Amiens, no norte da França, foi ocupada por forças alemãs em maio de 1940, a Bíblia foi transferida novamente. No início de junho, um caminhão carregado com uma coletânea da herança literária da Polônia, incluindo a Bíblia Pelplin, viajou para o sul. Os livros partiram em um pequeno vapor polonês, que zarpou horas antes de os alemães atacarem a cidade. O barco também conseguiu atravessar o Canal da Mancha, repleto de submarinos alemães. Por fim, a Bíblia estava em mãos seguras.[23]

No entanto, o acervo da Bibliothèque Polonaise era grande demais para ser salvo na íntegra. Os itens mais importantes foram transferidos: desenhos, mapas e manuscritos originais de Adam Mickiewicz foram escondidos em várias bibliotecas francesas. Apesar desses esforços, a maior parte da biblioteca permaneceu no prédio da Île Saint-Louis, vasculhado pela polícia alemã dois dias após a queda de Paris.[24]

Dois meses depois, em 25 de agosto, chegavam funcionários do escritório parisiense da ERR. De acordo com o chefe da biblioteca, o historiador Franciszek Pulaski, que testemunhou os fatos, o trabalho foi supervisionado por três homens do escritório de Roosenberg e por mais ou menos quarenta franceses, que colocaram o acervo em caixotes como os que Berberova vira na Biblioteca Turguêniev. O conteúdo de cada caixa era cuidadosamente anotado, e, no total, o material ocupou 780 caixas, das quais 766 continham livros, jornais e outros materiais impressos.[25]

Em outubro de 1940, a biblioteca foi transportada para La Chapelle, no norte de Paris, e despachada em um trem com destino à Alemanha. Dessa vez, a ERR também teve de compartilhar o butim com outra organização, conhecida como Publikationsstelle Berlin-Dahlem, um departamento do arquivo estatal prussiano dedicado ao que ficaria conhecido como estudos orientais.[26] O tema já existia antes de 1933; no entanto, agora seu objetivo era promover a expansão alemã para o oriente. A maior parte da Bibliothèque Polonaise foi levada para a Publikationsstelle Berlin-Dahlem.

A Bibliothèque Ukrainienne Symon Petliura também foi visitada pelos saqueadores. Em janeiro de 1941, a biblioteca da rue de La Tour d’Auvergne foi esvaziada em questão de dias e despachada para o centro de triagem da rue La Bruyère – que já havia servido de sede para a Alliance Israélite Universelle.

De início, a intenção era enviar a biblioteca Petliura para a RSHA em Berlim, mas, depois de avaliar o acervo, chegou-se à conclusão de que ele não tinha relevância para os serviços de inteligência. Os livros foram entregues para a ERR. Alfred Roosenberg encontraria um lugar para o acervo em uma nova biblioteca que estava sendo organizada em Berlim sob sua liderança – a Ostbücherei, uma biblioteca de pesquisa subordinada à Amt Roosenberg, que agregaria tudo que dissesse respeito a bolchevismo, Rússia e Europa Oriental em geral. A Biblioteca Turguêniev acabaria integrando esse projeto. Essas bibliotecas de imigrantes do “Ocidente” seriam a base de um acervo que depois da invasão soviética cresceu exponencialmente.[27]

A historiadora Patricia Kennedy Grimsted afirma que os ataques nazistas às bibliotecas de imigrantes em Paris eram parte dos preparativos para a invasão da União Soviética, que já estava ocorrendo de maneira muito sigilosa em 1940. As bibliotecas eram vistas como possíveis fontes de informações valiosas para a guerra iminente.[28]

Hélène Kaplan se ergue, pega a muleta e vai até um armário de metal cinza com portas de vidro jateado, que abre. Ela põe a mão lá dentro e passa a ponta dos dedos pelas lombadas dos livros. O que imediatamente me chama a atenção é o mau estado dos exemplares. As lombadas de alguns deles racharam. A encadernação está solta e é possível ver fios da costura. Alguns estão em tal estado que parecem só não se desintegrarem por estarem entre outros volumes na prateleira. Eles não são velhos nem valiosos, mas tiveram uma vida difícil – migrantes, alguns chegaram como refugiados da Rússia antes da guerra, tendo de voltar para lá mais tarde. Mais de sessenta anos depois voltaram para casa em Paris.

Já Hélène Kaplan chegou a Paris na terceira onda de imigrantes russos, depois da Segunda Guerra Mundial, quando sua família partiu de uma Europa Oriental que estava prestes a ficar presa atrás da Cortina de Ferro. Só no fim dos anos 1980, depois da Perestroika, ela conseguiu visitar sua terra natal. A essa altura, já estava envolvida com a Biblioteca Turguêniev; mais tarde, após sua aposentadoria, quinze anos atrás, se tornou sua protetora.

“Depois da guerra não tinha sobrado nada. Tudo foi roubado, e por isso não tivemos permissão para ficar no Hôtel Colbert. Digo, não havia livros para preservar. Mas então, lentamente, começamos a reconstruir o acervo, e no fim da década de 1950 conseguimos abrir a biblioteca neste apartamento, cedido pela prefeitura”, Kaplan me diz.

A Biblioteca Turguêniev nunca conseguiu fazer o acervo voltar a ser algo comparável ao que era antes da guerra. No entanto, assim que voltou a operar, começou a exercer seu papel na cena literária autônoma e de oposição em relação a seu país de origem. Durante a Guerra Fria, livros de autores russos que estavam na lista negra na União Soviética começaram a ser colocados novamente na biblioteca. Hoje a biblioteca não tem qualquer ligação com a Rússia e sobrevive com um pequeno valor anual doado pelo município.

“Dá para pagar o aluguel e comprar alguns livros. Mas a biblioteca nunca foi rica. As pessoas sempre trabalharam aqui sem receber por isso. É parte da cultura. Acho que vai dar para sobreviver. Já sobrevivemos a tanta coisa”, diz Kaplan em seu francês com sotaque russo, e depois sorri para mim.

Ela volta ao armário de metal cinza. Os livros gastos nas prateleiras não parecem grande coisa, mas têm um valor especial para ela. Esses poucos livros, 112 para ser preciso, são os únicos volumes da Bibliothèque Russe Tourgueniev original, que voltaram dos 100 mil desaparecidos. Ela tira da prateleira um livro cinza claro que em algum momento foi preto e abre na folha de rosto. Não consigo ler o alfabeto russo, mas o carimbo da biblioteca está em francês, com o antigo endereço da rue du Val-de-Grâce.

“Havia um boato de que os alemães pegaram essa biblioteca para dar a Stálin – como mostra de amizade. Isso enquanto a Alemanha e a União Soviética eram aliadas. Mas isso nunca aconteceu. Alfred Roosenberg estava muito interessado nessa biblioteca. Afinal, ele falava russo e morou em Moscou. Então eles levaram tudo embora.”